
Imagem: Vitor Rosa / Palácio Piratini
Por Clara Aguiar* e Eloisa Beling Loose**
O Marco de Sendai, documento internacional orientado para prevenir e reduzir os riscos de desastres, instituído em 2015, aponta como uma de suas prioridades “melhorar a preparação para desastres para uma resposta efetiva e ‘reconstruir melhor’”, ou seja, tornar a infraestrutura mais resiliente do que era antes do desastre. Contudo, depois do ápice das inundações que afetaram o Rio Grande do Sul, como a imprensa tem fiscalizado essa reconstrução?
A relação entre jornalismo e políticas públicas, especialmente no contexto dos desastres climáticos, exige uma cobertura contínua e aprofundada diante da perspectiva da construção de cidades resilientes. Aqui a ideia de watchdog (Traquina, 2005), que se refere à vigilância e ao monitoramento de decisões públicas, se faz especialmente relevante.
Observando a cobertura da reconstrução do desastre climático que ocorreu em maio de 2024, perguntamos: O jornalismo local gaúcho tem se debruçado sobre essa questão? Se sim, de que forma?
Realizamos uma breve análise da cobertura sobre o tema entre o período de 1º de janeiro e 6 de fevereiro, feitas por GZH, Correio do Povo, Brasil de Fato e Sul 21, neste início de 2025, e identificamos não apenas diferentes abordagens sobre o tema, mas também lacunas significativas no tratamento da questão. Para identificar os conteúdos, utilizamos os buscadores dos próprios veículos, com as seguintes palavras-chave: enchentes, reconstrução, prevenção e resiliência.
A cobertura da GZH sobre a reconstrução tem sido abordada de forma fragmentada, com ênfase nas colunas de opinião e, portanto,com menos notícias e reportagens. Ao que indica, o jornal delegou aos colunistas a responsabilidade de cobrir a fase da reconstrução. Os conteúdos tratam de atrasos de editais, dificuldades burocráticas e desafios econômicos, como:
- “Atualização de anteprojetos adia editais de obras contra enchentes no RS” (4 de fevereiro)
- “Fechamento definitivo de seis comportas do sistema de proteção contra cheias de Porto Alegre não tem data para começar” (4 de fevereiro)
- “Oito meses após enchente, 1,1 mil famílias ainda precisam deixar o Sarandi para que obras em diques avancem” (24 de janeiro)
- “‘Estamos flexibilizando, mas não podemos comprar casa rachada’, diz ministro sobre demora na entrega de imóveis no RS” (28 de janeiro)
- “Sob impacto de enchente e juro alto, Porto Alegre registra queda de 10,2% nos lançamentos imobiliários em 2024″ ( 5 de fevereiro)
- “Oito meses depois, enchente ainda afeta logística no Estado” (19 de fevereiro)
- “Quais os planos das prefeituras em 2025 para evitar prejuízos à economia por causa de eventos climáticos” (21 de janeiro)
Já o Correio do Povo adota uma abordagem centrada em números e dados sobre investimentos e andamento das obras de infraestrutura realizadas pelo Estado, como a construção de pontes e rodovias. As matérias limitam-se a trazer informações sobre prazos e investimentos, como:
- “Governo federal anuncia R$ 60,9 bilhões em nova fase de apoio ao RS após enchentes” (28 de janeiro)
- “Governo do Estado anuncia investimento de R$ 1,2 bilhão para construção e reforma de pontes e rodovias” (20 de janeiro)
- “Projeto de recuperação emergencial vai restaurar 50 moradias danificadas pela cheia em Eldorado do Sul” (5 de fevereiro)
- “Casas temporárias em Porto Alegre devem começar a receber famílias atingidas pela enchente até o final do trimestre” (13 de janeiro)
- “Dmae conclui primeira etapa de elevação do Dique do Sarandi” (7 de janeiro)
O jornal Brasil de Fato, embora tenha um número menor de notícias, apresenta uma cobertura voltada para os Direitos Humanos, denunciando a falha do governo em garantir moradia digna para as famílias atingidas. O jornal foca nas dificuldades enfrentadas pelos moradores de Canoas e Porto Alegre, onde as soluções habitacionais continuam escassas e as remoções geram revolta. Reportagens como “Famílias atingidas pelas enchentes seguem sem solução habitacional em Canoas” (14 de janeiro) e “‘Quem tirou o meu espaço não foi a enchente, foi a Prefeitura, porque passou com a patrola e me deixou sem casa’, diz morador de Canoas” (4 de fevereiro) evidenciam o sofrimento das vítimas e o descaso das autoridades. A cobertura do Brasil de Fato conecta o desastre à questão das desigualdades sociais, enfatizando a responsabilidade do poder público.
Ao destacar o andamento das obras e as parcerias público-privadas, o Sul 21 indica que a reconstrução está sendo conduzida por meio de parcerias público-privadas e financiamento de grandes agentes econômicos, em vez de ações exclusivamente governamentais. O portal enfatiza a reconstrução da cidade, questionando quem financia e conduz esse processo. A reportagem “Do Gasômetro ao Lami, reconstrução da orla é feita por contrapartidas de grandes empreendimentos” (20 de janeiro) sugere que o setor privado tem um papel central na recuperação da orla, levantando possíveis implicações sobre desigualdade no acesso e interesses econômicos.
O jornal também dá visibilidade à responsabilização do Estado e aos direitos da população atingida. A matéria “Advogados defendem indenização pelo Estado a vítimas de enchentes” (31 de janeiro) coloca em pauta a necessidade de reparação, levantando uma discussão sobre omissões governamentais.
No entanto, a reconstrução do estado também deve ser tratada pela perspectiva da emergência climática, recorte que amplia a discussão, conectando o desastre a fenômenos globais e reforçando a necessidade de adaptação, mitigação e resiliência. Os conteúdos encontrados, em sua maioria, reportam o andamento da recomposição da infraestrutura, sem discutir se são obras pensadas para serem melhores do que aquelas destruídas pelo desastre.
A reconstrução de uma cidade após um desastre não deveria deixá-la como era antes. Quando falamos em “cidade resiliente”, estamos nos referindo a um conjunto de práticas e políticas que não apenas restauram o que foi perdido, mas também preparam as cidades para enfrentar futuros eventos climáticos com maior eficácia e menos impacto. Nesse contexto, surge uma questão central: o jornalismo local está questionando se as ações implementadas na reconstrução do estado buscam realmente fortalecer a resiliência das cidades, ou se, ao contrário, estão apenas buscando devolver os municípios ao seu estado anterior, mantendo o status quo e perpetuando um ciclo de vulnerabilidade climática?
Se a cobertura jornalística local se limitar a cobrir o processo de reconstrução sem considerar as mudanças climáticas, falhará em trazer para o debate público as necessidades de adaptação das cidades aos novos desafios. A verdadeira resiliência vai além da reconstrução de casas, pontes e rodovias; ela implica em transformar as cidades para que sejam preparadas para enfrentar as consequências das mudanças climáticas de forma mais eficiente. Isso inclui, por exemplo, a implementação de infraestrutura verde, como áreas de drenagem natural, reflorestamento de encostas e a criação de espaços urbanos que absorvam as águas das chuvas, além de políticas de planejamento urbano que priorizem a adaptação ao clima.
O jornalismo local pode questionar se as ações de recuperação estão atendendo a essas necessidades mais profundas e estruturais ou se estão sendo apenas paliativas. A falta de uma abordagem crítica nas coberturas jornalísticas pode resultar em uma “amnésia coletiva”, onde a sociedade, movida pela urgência da reconstrução imediata, não consegue enxergar a longo prazo. O jornalismo, como um mediador do debate público, deve estar atento a como as cidades estão sendo reconstruídas, de modo que consigam enfrentar os riscos climáticos já previstos.
Referência:
TRAQUINA, Nelson. Teorias do Jornalismo: Porque as notícias são como são. Vol. I. Florianópolis: Editora Insular, 2005.
*Clara Aguiar é estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). E-mail: claraaguiar14@hotmail.com.
**Eloisa Beling Loose é jornalista e pesquisadora na área de Comunicação de Riscos e Desastres. Coordenadora do Laboratório de Comunicação Climática (CNPq/UFRGS). E-mail: eloisa.loose@ufrgs.br.
