Imagem: captura de tela do Jornal Nacional – Edição de 30 de novembro de 2022 disponível na plataforma Globoplay
Por Débora Gallas Steigleder*
Na última quarta-feira, dia 30 de novembro, foram divulgados os números do programa Prodes, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), referentes ao desmatamento da Amazônia entre agosto de 2021 e julho de 2022. O monitoramento é anual e realizado através de satélites. Apesar da diminuição em relação ao ano anterior, a supressão da vegetação nativa no maior bioma do país segue acima de 10 mil km², conforme destacou reportagem da Folha de S. Paulo, e o índice deste ano é o segundo pior em 14 anos, como lembrou William Bonner no Jornal Nacional. A matéria de Vladimir Netto explicouque os 11.568 km² devastados equivalem a duas vezes o território do Distrito Federal.
Além do desafio de contextualizar números para evidenciar ao público a grande dimensão dos impactos registrados, o jornalismo precisa explicar por que os índices de eliminação da floresta se mantêm altos, sobretudo no estado do Amazonas – onde o desmatamento cresceu desde 2021. Isto não foi difícil para Jornal Nacional, Folha de S. Paulo e outros veículos nacionais que repercutiram o tema, como g1. Afinal, desde o início da gestão de Jair Bolsonaro, o crescimento desses números foi uma constante.
As principais fontes consultadas para repercutir o tema são os próprios cientistas do INPE, responsável pelo levantamento, e especialistas da academia e do terceiro setor que têm alertado para a política de destruição da natureza levada a cabo pelo governo federal, como Observatório do Clima e MapBiomas. Já é evidente para o público que o sucateamento de estruturas como a de fiscalização de infrações contribui diretamente para esses números. As derrubadas de floresta com fins especulativos na área conhecida como AMACRO – que engloba os estados do Amazonas, Acre e Rondônia e contém a BR-319, que liga Manaus a Porto Velho – são consequência direta dessa política.
Chama atenção, portanto, a ausência de vozes do governo nessas reportagens para comentar os índices e trazer alguma explicação. O Ministério do Meio Ambiente nada quis declarar à reportagem da Folha de S. Paulo. Um breve contraponto do Ministério da Justiça foi lido por Bonner ao fim da reportagem de Jornal Nacional, no formato de nota pelada. Já o g1 não detalha se procurou o governo para comentar o assunto.
Nós, pesquisadores em Jornalismo Ambiental, sempre frisamos a importância da diversidade de vozes nas coberturas ambientais para ir além do factual e do discurso padrão das fontes oficiais. Porém, o que fazer quando a fonte oficial precisa dar explicações à sociedade e se exime de suas reponsabilidades? Vemos que, principalmente após a fala do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva na COP27, a pauta climática já é direcionada à equipe de transição. Mas Jair Bolsonaro ainda é presidente e Joaquim Leite, seu Ministro do Meio Ambiente. Cabe ao jornalismo não desistir de cobrar as justificativas que eles nos devem.
*Jornalista, doutora em Comunicação, pesquisadora do GPJA
Recentemente o site lunetas (lunetas.com.br) — um portal de jornalismo para famílias interessadas na temática da infância, mantido pelo Instituto Alana — publicou uma matéria que traz 13 projetos feitos por alunos para preservar a natureza e garantir um futuro mais sustentável. Os projetos foram desenvolvidos por crianças de escolas públicas brasileiras e selecionados na premiação do Desafio Criativo da Escola.
“Treze projetos sobre meio ambiente criados por crianças e jovens” (https://lunetas.com.br/projetos-meio-ambiente-criancas-jovens/), integra o especial “Emergência climática e as infâncias: por um futuro no presente”, proposta lançada pelo Lunetas em setembro de 2021 e que se estendeu ao longo de 2022. Durante todo o ano foram publicadas reportagens com conteúdos aprofundados por jornalistas e especialistas, que mostram os diferentes impactos da emergência climática às crianças brasileiras, além de reflexões, inspirações, caminhos e soluções para combater a crise.
Esta iniciativa maravilhosa, que mostra ações de formiguinhas com as novas gerações para enfrentamento da crise climática e de mobilização pela não destruição do planeta, nos mostra o quanto é importante a ação humana e o acesso a informações seguras e confiáveis, o que nem sempre tem ocorrido nos espaços de imprensa tradicionais.
Por isso, cada vez mais espaços de informação e de jornalismo de qualidade estão surgindo, mostrando que o acesso à informação é possível e que existem sim jornalistas preocupados com a ação humana, com a comunicação cidadã e que contribuem para um futuro melhor. Mudanças de atitudes e apoio à ação climática passam pela apresentação de iniciativas que contribuem para a mitigação e à adaptação climática.
Nosso desejo é que o tema ambiental esteja no dia a dia de nossos pensamentos e ações, no jornalismo feito por iniciativas privadas nas redes sociais e na internet, mas, sobretudo, na grande imprensa.
*Carine Massierer é jornalista, mestre em Comunicação e Informação pela UFRGS e integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS).
Imagem: Site do Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa
Em 2019, neste observatório, Carine Massierer abordou a nova fronteira da mineração no Rio Grande do Sul. De lá até aqui, muitos passos foram dados em relação aos projetos citados em sua análise. O Mina Guaíba, de extração de carvão, foi arquivado em março deste ano. Também arquivou-se o Projeto Caçapava do Sul, que propunha a implantação de uma mina de Chumbo, Zinco e Cobre às margens do rio Camaquã. O projeto Retiro, de extração de Titânio, ainda está em discussão. Atualmente, mais de 150 plantas de mineração manifestam interesse de se instalar no estado. Dentre estes, o Projeto Fosfato Três Estradas, em Lavras do Sul, que teve suas Licenças de Instalação (LI) liberadas pela Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema) e Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), no início deste mês.
O projeto que prevê a extração, beneficiamento e comercialização de minério de fosfato destinado à elaboração de fertilizantes para a agricultura, em Lavras do Sul, já havia sido trancado anteriormente por constarem vícios no processo de licenciamento, causando prejuízos ao meio ambiente e às comunidades e povos tradicionais do Pampa. Para esta análise, tomamos notícias publicadas sobre o assunto no momento da liberação da LI, a fim de entender como o contraponto à posição da empresa interessada, a Águia Fertilizantes, foi apresentado.
Em 1º de novembro, o Diário de Santa Maria divulgou online e, também, em sua edição impressa, que “Lavras do Sul terá a primeira mina de fosfato da região sul do Brasil”. O texto foi uma reformulação de release enviado pela prefeitura de Lavras do Sul, também publicado pelo jornal Minuano, de Bagé, maior cidade da Campanha Gaúcha, região na qual Lavras está inscrita. Neste, com o título “Águia Fertilizantes obtém licença de instalação de mina de fosfato em Lavras do Sul”, o texto descreve os participantes do evento, do que consta o empreendimento e quanto material será extraído, além da geração de empregos e vida útil da mina. Destaque para a perspectiva de dobrar a produção inicial entre oito a dez meses. Nada sobre os perigos dessa extração para o meio ambiente foi citado. A liberação foi destaque na capa do referido jornal.
Até o momento, no mês de novembro, apenas duas publicações foram feitas no Jornal Minuano sobre o assunto. Além da matéria já citada, mais uma inserção sobre o Projeto Fosfato Três Estradas foi feita pelo Minuano na edição de 5,6 e 7 de novembro, sob o chapéu “Política”, também em sua capa. No texto intitulado “BRDE firma termo para financiar mina de fosfato”, são destacados os R$15 milhões de aporte para as obras. Novamente, trata-se de texto exclusivo sob a perspectiva da empresa, sendo o CEO da Águia Fertilizantes a única fonte a se pronunciar.
Ainda em 1º de novembro, o Correio do Povo publicou “Licença para minerar fosfato em Lavras”, texto que mescla as mesmas informações do release da prefeitura de Lavras com fala do secretário da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural, Domingos Velho Lopes, para quem “[…]esse empreendimento não se afasta um centímetro do ambientalmente correto”. O texto aponta, ainda, que o estudo recebeu atenção de um grupo técnico multidisciplinar da Fepam e do Departamento de Recursos Hídricos da Sema. Nenhuma menção é feita aos povos tradicionais do Pampa ou mesmo aos perigos da exploração de fosfato.
A Zero Hora publicou sobre o assunto em 8 de novembro apostando na proposta de que a exploração de fosfato no estado ajude a reduzir a dependência nacional de importação de fertilizantes, com a expectativa de que o projeto de Lavras impulsione a produção noutras regiões. Do mesmo modo, o jornal não ofereceu uma linha para tratar das ameaças da exploração para o meio ambiente e para os povos tradicionais.
Com tantas plantas de mineração buscando instalação no estado e a falta de interesse do jornalismo em abordar quaisquer outras perspectivas da questão que ultrapassem a economia, o Bioma Pampa, bem como os povos tradicionais, seguem em perigo. Do lado de cá, propomos criar espaços em que se possa ouvir e multiplicar as perspectivas dissidentes, de modo que a pressão popular traga efeitos, como os vistos na Mina Guaíba e no Projeto Caçapava do Sul. A Licença de Operação para o Projeto Fosfato Três Estradas ainda não foi concedida. Pode haver tempo.
A eleição de 2022, definidora do futuro da democracia brasileira, colocou em cena também, entre tantos outros temas, a pauta socioambiental e a beira de um possível abismo. Se o futuro brasileiro aos votos pertence e o novo governo tem as credenciais para o tema, um recorte temporal apenas sobre as matérias da última semana indica o presente devastador em que estamos inseridos.
Na quinta-feira, 27/10, foi publicado o relatório anual de lacunas de emissões do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), e o diagnóstico é de um ínfimo avanço no sentido de redução das emissões até 2030, desde a COP26, de Glasgow em 2021. O relatório aponta que as novas metas climáticas submetidas pelos países permanecem insuficientes para preencher a lacuna de emissões, caso desejemos limitar o aquecimento do planeta aos 2ºC acordados em Paris, em 2015.
Se números, acordos e metas de emissão por vezes soam abstratos, as consequências são das mais concretas. Na quarta-feira, 26/10, um relatório da premiada revista The Lancet apontou um aumento de 68% na mortalidade relacionada ao calor, para pessoas acima de 65 anos. Além disso, o documento expõe o aumento de 29% em áreas do planeta afetadas por secas extremas, entre outras consequências da emergência climática que podem ser verificadas nesta matéria publicada pela Folha de São Paulo. Ainda sobre os efeitos do calor, no mesmo dia a UNICEF publicou o prognóstico de que, até 2050, todas as crianças devem estar expostas à alta frequência de ondas de calor. Outros detalhes sobre este relatório foram publicados também pela Folha, evidenciando um papel importante do jornal na informação da pauta climática.
O mundo assiste, preocupado, aos efeitos da crise climática e a inépcia de governantes, ao mesmo tempo em que observa, de longe e aflito, os desdobramentos das eleições brasileiras. A pauta do desmatamento é central, e ninguém menos que o New York Times publicou que a eleição brasileira irá determinar o futuro do planeta. Por fim, e fechando este sobrevoo pelas matérias da semana que passou, o STF formou maioria para determinar a reativação do Fundo Amazônia pelo governo federal em até 60 dias. A notícia é boa, mas mais importante são as escolhas que o governo eleito fará para gerir este e tantos outros recursos.
* Jornalista, doutorando em Sociologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ) e mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). E-mail: michelmisse93@gmail.com.
Captura de tela – Vídeo do sexto episódio da série especial de entrevistas do projeto Planeta em Transe do jornal Folha de S. Paulo
Por Roberto Villar Belmonte*
Com duração de um ano, Planeta em Transe “é uma série de reportagens e entrevistas com novos atores e especialistas sobre mudanças climáticas no Brasil e no mundo”. Ainda segundo descrição publicada pelo jornal, este projeto de cobertura especial da Folha de S. Paulo acompanha também as respostas à crise do clima nas eleições de 2022 – com destaque para a região amazônica – e na COP27, a 27ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima que acontece no Egito entre 6 e 18 de novembro.
A jornalista ambiental Cristiane Fontes trabalha tecendo parcerias internacionais que ajudam a compreender e diversificar as vozes da luta ambiental. Logo após publicar, em meados de abril, as conclusões da pesquisa que coordenou intitulada “Narrativas Ancestrais – Presente do Futuro: Percepções sobre os Povos Indígenas no Brasil na última década (2011-2021)”, ela lançou no final de maio o projeto editorial Planeta em Transe em parceria com o jornal Folha de S. Paulo e apoio da Open Society Foundations.
A proposta anunciada é a realização de 24 entrevistas, publicadas quinzenalmente em texto e vídeo, com especialistas e ativistas que atuam no tema da crise climática, 12 brasileiros e 12 de fora do país. No entendimento do coordenador de justiça climática para a América Latina na Open Society Foundations, Iago Hairon, não é possível falar de direitos humanos sem falar da crise climática. Por isso, segundo ele, é preciso entender as narrativas das pessoas que estão na linha de frente.
Até o momento, apenas seis episódios foram produzidos em texto e vídeo, com três fontes brasileiras e três de fora do país: Uganda, Inglaterra e Estados Unidos. As entrevistas no formato pingue-pongue (pergunta e resposta) são realizadas pela própria Cristiane Fontes e pelo repórter e colunista Marcelo Leite, jornalista especializado em ciência e ambiente do Folha de S. Paulo. Os vídeos também são assinados pela editora de Ambiente do jornal, Giuliana de Toledo.
Esta parceria entre Cristiane Fontes e Marcelo Leite começou a ser alinhavada no ano passado. No início de dezembro de 2021, os dois já publicaram entrevista pingue-pongue – usando a cartola Mudança Climática – com a matemática e filósofa Tatiana Roque, autora do livro “O Dia em que Voltamos de Marte: Uma História da Ciência e do Poder com Pistas para um Novo Presente”, obra que detalha os avanços tecnológicos e disputas em torno dos paradigmas científicos nos últimos quatro séculos.
Mas foi somente no final de maio de 2022 que o jornal Folha de S. Paulo anunciou a estreia do novo projeto editorial. Desde então, além dos seis episódios já mencionados, notícias, reportagens e entrevistas com a cartola Planeta em Crise estão sendo publicadas sobre política e mudança do clima. Um exemplo foi a conversa da colunista Ana Carolina Amaral com Joenia Wapichana, única deputada indígena do Brasil na atual legislatura, que saiu na edição de 23 de julho.
Outro exemplo é a reportagem publicada por Giovana Girardi na edição de 17 de outubro sobre as emissões de metano do Brasil. Girardi, ex-repórter de ambiente do Estado de S. Paulo lançou em junho a série de podcast Tempo Quente, da Rádio Novelo, projeto já tratado neste Observatório.
Do ponto de vista dos estudos do jornalismo ambiental, duas questões chamam a atenção neste projeto editorial criado por Cristiane Fontes em parceria com Marcelo Leite. Primeiro a proposta de trazer para a agenda pública vozes de pessoas que atuam na linha de frente da crise climática, não apenas cientistas ou empresários, mas também ativistas. Espera-se que militantes da guerra ambiental apareçam com mais frequência nas páginas do jornal Folha de S. Paulo.
Outro ponto relevante é a participação de diversos repórteres do jornal na produção de notícias e reportagens sobre a crise climática no Brasil, o que mostra a relevância cada vez maior do jornalismo ambiental. Este, aliás, é o grande desafio dos cursos de jornalismo no país: formar profissionais capazes de tratar com proficiência as causas, as consequências e as política públicas necessárias para dar conta da crise climática. Com ou sem milicianos no poder.
Referências
27ª Conferência das Partes (COP 27) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima
*Roberto Villar Belmonte é professor de jornalismo no Centro Universitário Ritter dos Reis e membro do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS).
Tomado pelo clima eleitoral, o noticiário brasileiro tem se desdobrado para analisar as tendências para o próximo dia 30, desmentir informações falsas e repercutir as agendas dos candidatos. Diante de tarefas árduas e sem grandes propostas que a mencionem, a pauta ambiental parece perder fôlego no jornalismo nacional – uma exceção louvável é a série “Nem um cm demarcado”, cujas reportagens vêm sendo publicadas pela Folha de S. Paulo. Neste esforço de investigação, Vinicius Sassimi e o fotógrafo Lalo de Almeida percorreram 6.000 quilômetros pela Amazônia a fim de averiguar os efeitos da política de “demarcação zero” do Governo Bolsonaro.
O nome da série, aliás, é uma referência à fala de Jair Bolsonaro em 2018, quando o então candidato à presidência afirmou que, em sua gestão, não demarcaria “nem um centímetro sequer” de Terras Indígenas. A promessa não só foi cumprida como o desmonte da FUNAI e da política ambiental atuam para a intensificação da violência na região amazônica. Nos últimos anos, tornou-se notícia comum a invasão de territórios tradicionais por garimpeiros, madeireiros, piratas e outras práticas ilegais. As reportagens da série, como a que figurou na capa da Folha neste dia 10, indicam que a omissão do Estado modificou a forma como povos indígenas vivem e, em uma tentativa de defenderem as suas próprias vidas e a floresta, se organizam. Estratégias como a autodemarcação e criação de guardas florestais indígenas surgem no vácuo do Estado a fim de conter a escalada da violência, ainda que se mostrem insuficientes diante do cenário que se impõe.
Não parece, então, ser por acaso a coincidência entre o chamado arco do desmatamento e a prevalência de votos para Jair Bolsonaro no primeiro turno. As reportagens da série da Folha nos convidam a identificar os efeitos políticos de escolhas institucionais realizadas nos últimos quatro anos. É justamente por isto que preocupa a ausência da pauta ambiental no cenário eleitoral, seja nas agendas dos candidatos ou na cobertura cotidiana, que não os demanda suficientemente a se posicionarem. A despeito das dificuldades que o debate público tem enfrentado, talvez caiba ao jornalismo brasileiro, por meio de trabalhos de qualidade como os da série em questão, contribuir para sua qualificação.
* Jornalista e socióloga. Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisadora colaboradora no Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental e no grupo de pesquisa TEMAS – Tecnologia, Meio Ambiente e Sociedade. E-mail: angela.camana@hotmail.com.
A principal pauta brasileira segue sendo a eleição presidencial, que será definida no segundo turno, no próximo dia 30. Contudo, a crise ambiental não dá trégua e em breve teremos mais uma oportunidade de avançar no enfrentamento climático: de 7 a 18 de novembro ocorre a 27ª Conferência das Partes (COP-27) em Sharm el-Sheikh, no Egito. A um mês do encontro, o País ainda apresenta incertezas sobre os rumos da política ambiental, que demonstra ter perspectivas opostas a depender do candidato que vencerá nas urnas.
Enquanto a decisão não chega, o que vários analistas e jornalistas já destacaram é que o caminho será árduo de qualquer forma. Com a eleição de parlamentares mais conservadores e alinhados com o crescimento econômico de curto prazo (às custas de muita devastação e injustiças ambientais), pode-se esperar mais flexibilização da legislação ambiental e outros projetos antiambientais. A revista piauí trouxe uma reportagem sobre as possibilidades que se desenham com um novo perfil de Senado, afirmando que foi eleito “Um congresso mais hostil ao meio ambiente”.
Além do descaso com a proteção ambiental, verifica-se que não há gestão para minimizar riscos e danos, mesmo diante das evidências científicas que a intensificação das mudanças climáticas causará eventos extremos cada vez mais frequentes, na qual as populações mais vulnerabilizadas são as que mais sofrem. O Globo divulgou que 99% do orçamento destinado a prevenção de desastres foi cortado para 2023.
O jornalismo, em diferentes formatos e linhas editoriais, tem buscado evidenciar o desafio ambiental que se apresenta, baseado em dados e fatos, respaldados pela ciência. Esse é o grande assunto não apenas da COP-27, mas de todo nosso tempo. É a pauta que nos acompanhará por muitos e muitos anos. Cabe a todos nós colaborar para que seu enfoque deixe de ser catastrofista e passe a relatar a transição para uma humanidade mais consciente de suas decisões.
*Jornalista, professora e pesquisadora. Doutora em Meio Ambiente e Desenvolvimento, e em Comunicação. Vice-líder do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental. E-mail: eloisa.beling@gmail.com.
A narrativa das queimadas na Amazônia brasileira por parte da mídia hegemônica tem despertado as atenções de uma forma quase sempre alarmista. Mesmo considerando apenas a área de território do estado do Amazonas, estamos falando de uma extensão de terras fabulosas, que até mesmo pela sua localização central no continente sul-americano torna difícil o acesso e a exploração dos recursos naturais existentes nas terras, águas e florestas.
A matéria de Matheus Castro trata sobre as queimadas acontecidas no estado do Amazonas em setembro de 2022 apresenta o fenômeno de forma alarmista, sem levar em consideração que a população local necessita preparar áreas para a agricultura visando a produção de alimentos. Segundo Matheus Castro, somente em quatro dias – de 21 a 24 de setembro – foram registrados 1.043 focos de queimadas, totalizando 7.286 focos de calor somente no mês de setembro. O consolidado para o ano de 2022 seria de 17.798 incêndios, o pior cenário desde 1998, quando o INPE começou a fazer o monitoramento das queimadas. Esse seria o pior mês de setembro desde 1998. Matheus Castro apenas cita que os focos de queimadas se concentram nos municípios periféricos do do Amazonas: Lábrea e Boca do Acre, ambos no sul do Estado do Amazonas.
Ainda que o autor da matéria cite como fonte o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, a generalização das queimadas pelo estado do Amazonas oculta a finalidade do uso do fogo. Do total de 17.198 focos de incêndio, o autor não apresenta o total da área queimada, muito menos o porquê do uso do fogo.
Não estou aqui negando a destruição que se vem fazendo há décadas, principalmente no chamado círculo de fogo, no sul do estado do Pará, chegando já a atingir terras do sul do Amazonas. Contudo, a generalização, como consta ma matéria do G1/AM citada, é levar a opinião pública ao erro.
Caso o autor, Matheus Castro, consultasse dados existentes no site do Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e Florestal Sustentável do Estado do Amazonas (IDAM), poderia concluir que praticamente toda a agricultura praticada no estado do Amazonas é desenvolvida por agricultores familiares, que para a limpeza do terreno e o preparo do solo para o plantio, necessariamente lançam mão do fogo como mecanismo de preparo da área tanto no ecossistema de terra firme quanto no de várzea.
Segundo o Instituto, nesse ano o total de hectares trabalhados com agricultura no estado do Amazonas foi de 38.571 hectares, cultivados com as culturas de milho, feijão, arroz, mandioca, malva, guaraná, banana, açaí, abacaxi, cupuaçu e laranja, distribuídos por 33.778 produtores. Na terra firme o porte das árvores e a dureza das madeiras dificultam a retirada das galhadas e o arranquio dos tocos de porte avantajado; já no ecossistema de várzea, mesmo sendo a vegetação de menor porte ou rasteira, quase sempre gramíneas, ainda assim faz-se necessário o uso do fogo.
Levando em consideração o tamanho das áreas cultivadas por cada família, geralmente variando de meio a dois hectares percebe-se logo que o impacto ambiental, levando-se em conta o tamanho da região amazônica, é possível de ser absorvido pela floresta. Normalmente na terra firme é cultivada a mandioca para a produção de farinha, uma das bases da alimentação das famílias que residem na zona rural, a proteína é obtida dos peixes e já bem pouco da carne de caça.
No ecossistema de várzea são cultivadas as culturas de ciclo curto, como melancia, milho, jerimum, feijão caupi, hortaliças de várias espécies – o agricultor aproveita a riqueza natural dos solos de várzea. Na área de influência da região metropolitana da cidade de Manaus já se pratica uma agricultura de porte comercial, com o plantio de fruteiras como a laranja, o abacaxi, coco e maracujá.
No estado do Amazonas mesmo a pecuária também é praticada em propriedades de pouca extensão territorial, diferentemente do Pará, que possui criatórios que ocupam milhares de hectares cultivados com capim. Conclui-se que a matéria foge dos princípios do jornalismo ambiental, já que este, segundo Wilson da Costa Bueno (2007), “deve ter compromisso com o interesse público, com a democratização do conhecimento, com a ampliação do debate. Não pode ser utilizado como porta-voz de segmentos da sociedade para legitimar poderes e privilégios”.
Toneladas de plástico. O Brasil é o maior poluidor plástico da América Latina, conta uma das reportagens sobre problemáticas socioambientais que merecem destaque nestas últimas semanas. Em texto para O Eco, a atenta Paulina Chamorro, realizadora do @vozesdoplaneta.podcast, costura dados estarrecedores sobre a poluição plástica e algumas considerações importantes que ela ouviu desde a mais recente Conferência dos Oceanos. Em seu perfil no Instagram, a jornalista compartilha uma frase marcante no evento realizado em Lisboa, em julho passado. A poluição plástica no mar é como um derramamento de óleo lento e constante. E muito intenso. Na reportagem, a participação exponencial e ativa do nosso país como um dos propulsores do problema é destaque.
Daqui, mandamos 325 mil toneladas de plástico direto para os mares todos os anos. Aquele nosso “inocente” copinho descartável de café deve estar lá, portanto. Ou um dos muitos garfinhos para os bolos de aniversário vida afora. Ou uma das tantas coisas de plástico que já tivemos em casa. Ou, pelo menos, os fragmentos do “inocente” copinho descartável de café, do garfinho, da sacolinha. Com certeza estão lá. Todos participamos disso. Nosso cotidiano descartável está impregnado de plástico de uso único. Não há política pública contundente que possa frear essa linha de frente da destruição do planeta.
Um modo acelerado de levar a vida está ramificado por todos os lados, mas desconectado de tudo. Se lembrássemos, conscientes, do percurso do copinho plástico, se fôssemos atentos às conexões, o descartável não teria tanto espaço. Ainda não é assim, no entanto. “Tudo se conecta com tudo o mais”, diz uma das quatro leis informais da ecologia de Commoner. Só que não prestamos atenção. Em casa, no trabalho, em nossa cidade, em nosso país, em Brasília.
A imensidão de plástico que embrulha nossa vida e a de outros seres (que não optaram pelo plástico) está, em geral, na trilha da fabricação de embalagens e outros itens descartáveis. A reportagem contabiliza 2,95 milhões de toneladas produzidas por ano. Exemplificando: é o equivalente à produção de 500 bilhões de unidades de itens de uso único no Brasil. Como o “copinho” e o “garfinho”. E “tudo precisa ir a algum lugar”, continua Commoner na segunda lei informal da ecologia.
A terceira lei é: “a natureza sempre tem razão”. Isso faz pensar em muita coisa, inclusive no fato de que uma fruta, que tem casca, não precisaria estar embalada em isopor e coberta de filme plástico, para ficar em um exemplo corriqueiro. Commoner termina: “nada vem do nada”, a quarta lei informal da ecologia. É o que assinalamos antes, as coisas estão absolutamente interligadas. Não é um papo de jovem místico, é lógica e observação.
Nós já sabemos disso, em termos gerais. Esse conceito faz sentido para nós. Mas nossa compreensão é apenas intelectual, não é da ordem de uma ética internalizada, refletida. Já lemos que não existe nada isolado no nosso sistema terrestre. Mesmo assim, seguimos descartando a vida, permeando tudo que é possível com plástico, enviado rapidamente a cantos do planeta. Nosso plástico já forma continentes no mar, está depositado na Antártida. Depois volta até nós, pois ingerimos microplástico todos os dias.
Outro alerta muito pertinente da matéria é o de que “reciclável” não quer dizer que seja, efetivamente, reciclado. Na sociedade descartável e desatenta, o selo de reciclável serve muito bem à nossa tentativa de sermos “legais” e termos a consciência tranquila. De fato, todavia, fazemos pouco ou quase nada. Valorizamos mais as opções passíveis de foto nas redes sociais. Na sociedade de selos e símbolos pouco perenes, seguimos achando que o destino final do saco de recicláveis – lixo seco que separamos (ainda bem!) – é algum lugar perto da nossa casa, no máximo. Algo bacana parece que vai acontecer, porém não temos real dimensão ou a informação completa sobre todo processo com os resíduos que geramos.
Quando andamos pelas cidades antes da coleta de resíduos, o cenário é arrasador. Se pegarmos uma ponta disso, se puxarmos os fios, se multiplicarmos o que vemos em escala ampla, podemos ter alguma noção do tipo de realidade que nossa sociedade está construindo. E não é a realidade de um futuro distante. Por isso, trata-se de uma pauta que precisa estar sempre no horizonte de forma insistente. O jornalismo precisa ajudar a puxar cada um desses fios.
A reportagem de Paulina Chamorro é reflexo de uma apuração importante, capaz de fazer alguma ranhura na casca grossa dos nossos hábitos desatentos. Junto, levanta também o olhar sobre as questões macro, que dependeriam de ação política e governamental, tão distante quanto a possibilidade de uma sociedade sustentável (o que não nos impede de seguir construindo um caminho). A nossa vida está aqui, está na Amazônia, está no córrego que passa no fundo da nossa cidade, está no meio do oceano. Nossa vida está conectada a tudo, em toda parte. As conexões são incalculáveis. Em geral, é uma pena, permanecemos embalados pela incompreensão de qual é o nosso lugar nisso tudo.
Já abordamos a problemática em outros textos aqui no Observatório. Você pode vê-los aqui.
* Jornalista, doutor em Comunicação e Informação, professor na UFSM e integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS).
Na última semana, o Brasil e o mundo ganharam um novo portal de jornalismo, o Sumaúma, intitulado “Jornalismo do Centro do Mundo”. O portal/newsletter pretende trazer notícias e grandes reportagens produzidas diretamente da Amazônia, a partir do olhar dos povos da floresta. O manifesto de lançamento do projeto destaca que este se “propõe a debater e jogar luz aos temas urgentes que colocam a Amazônia no epicentro da questão ambiental do planeta”. Os criadores do projeto acreditam que, em um mundo em colapso climático, os centros mais essenciais “não são Washington ou Pequim, não são os bunkers do sistema financeiro, mas os enclaves de vida do qual depende a nossa sobrevivência, como os oceanos, as florestas tropicais, os vários biomas”.
A jornalista e escritora Eliane Brum e o jornalista britânico Jonathan Watts, editor de meio ambiente do The Guardian, são os idealizadores do projeto, que conta com a participação das jornalistasCarla Jimenez, Verônica Goyzueta e Talita Bedinelli, e a parceria da rede de comunicadores indígenas Rede Wayuri. O projeto tem sede em Altamira, no Pará, e terá como base um conselho com pessoas representativas da floresta.
Sumaúma é uma das maiores árvores da Amazônia. Ela é majestosa e traz na memória dos povos indígenas e da floresta inúmeras histórias. Por isso, foi escolhida para dar nome ao portal, que segundo o manifesto quer contar histórias dos povos que vivem na Amazônia, a partir da sua perspectiva, e permitir que essas vozes se propaguem.
Sumaúma é um portal de notícias e um newsletter em português, inglês e espanhol, além da Rádio Sumaúma, que produzirá um podcast quinzenal contando os bastidores e análises das reportagens publicadas. O podcast é comandando por Elizângela Baré, mulher indígena de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas.
Na sua primeira edição, o portal já mostrou a que se propõe, ouvindo as mulheres do povo Yanomami. Mulheres que não falam português e que vivem num território cada vez mais controlado pelo garimpo ilegal, sendo vítimas de violências que dificilmente são expostas. “Escolhemos escutar as mulheres Yanomami porque entendemos que Sumaúmanasce em um tempo de guerra, a guerra contra a natureza e seus povos que está levando o planeta à catástrofe climática e à sexta extinção em massa de espécies”. Nas guerras, são as mulheres, adultas e crianças, as mais silenciadas e as que mais sofrem, destaca Eliane Brum, no texto de abertura do portal.
Para garantir fidelidade à fala das indígenas, buscando “alcançar a palavra exata e a interpretação precisa”, a reportagem foi produzida com a ajuda de duas tradutoras, uma indígena Yanomami e uma antropóloga com 15 anos de experiência com povos originários. Ou seja, o portal pretende realmente trazer com profundidade as situações vivenciadas pelos povos da floresta, penetrando nas suas “entranhas”. Além da informação e da fala das fontes, os textos descrevem situações e locais vividos, o que permite ao leitor entrar no espaço da reportagem e, vivenciar os dramas vividos.
É um jornalismo que exige muita coragem, pois como diz a reportagem: “Sabíamos que seria muito difícil alcançar as regiões dominadas pelo garimpo, porque os criminosos controlam não só o chão, mas também o ar”. Para fazer a reportagem, com apoio de organizações parceiras, as mulheres foram retiradas dos seus territórios e levadas para lugares em que pudessem falar e se expressar em segurança. “Botamos em curso uma complexa operação de jornalismo em território de guerra, uma guerra cujas forças são tão desproporcionais que a palavra mais exata seria massacre.”
Segundo o que afirma em sua apresentação, o objetivo do portal é ser muita mais que uma plataforma de jornalismo ambiental ou de meio ambiente, embora sua proposta se encaixe perfeitamente nos pressupostos defendidos pelo Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental e na tentativa de ambientalizar o fazer jornalístico. Sinaliza-se aqui a necessidade de pontuar o que, de fato, é compreendido por esse jornalismo ambiental, que não representa a produção de Sumaúma. “Nossa compreensão dos mundos não é compartimentada: entendemos que a crise climática atravessa todos os temas e é assim que deve ser tratada pelo jornalismo.” Destaca o texto: “Só podemos cobrir a brutalidade de uma minoria humana capaz de provocar uma extinção em massa de espécies e colocar suas próprias crianças em risco de um futuro hostil se compreendermos que a guerra contra a natureza é configurada pelas relações de poder determinadas por raça, gênero, classe e também espécie”. Acreditamos, que se os povos indígenas fizerem efetivamente parte deste projeto, a complexidade da questão ambiental será expressada nos textos de forma natural.
Ao propor-se a atuar como laboratório para a formação de jornalistas que moram na Amazônia, o projeto pretende ser um espaço em que alma da floresta seja transmitida em texto e áudios, tornando-se um canal influente para trabalhar em benefício do futuro do planeta. Como destacam os fundadores, “por enquanto é um projeto semente”, e por ser um projeto de jornalismo independente, depende da colaboração dos leitores e ouvintes para sua sobrevivência financeira (para apoiar:https://apoia.se/sumaumajornalismo).
É na esperança de que a união de jornalistas renomados, experientes e influentes, juntamente com a sabedoria dos povos da floresta possa dar certo, que encerramos este texto. Acreditamos que esse tipo de prática, que conecta, que sente, que expressa, seja o futuro do jornalismo, com o potencial de provocar mudanças nas mentes e nos corações da sociedade. Desejamos coragem e determinação aos criadores, e que consigam colocar em prática tudo que vislumbram, desejando vida longa ao projeto e a este jornalismo de verdade.
*Patrícia Kolling é jornalista, doutoranda em comunicação pela UFRGS e professora da Universidade Federal do Mato Grosso – Campus Araguaia.
Com o início das campanhas eleitorais no Brasil em 16 de agosto, o jornalismo começou a cobrir mais ativamente as mensagens que vêm sendo transmitidas pelas campanhas dos presidenciáveis. Não é inesperado que muitos veículos de comunicação se voltem para as possíveis propostas de governo direcionadas à questão ambiental, após quatro anos de notícias sobre os enormes impactos ambientais negativos devidos à atuação do atual governo federal. Como memória disso e de acordo com o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), lembramos que houve um aumento de 56,6% da média de desmatamento anual da Amazônia de 2019 à 2022 em comparação com o período anterior (2016 à 2018).
Contudo, mesmo com a realidade dos últimos quatro anos e com a quantidade enorme de dados científicos sobre a questão, a cobertura sobre as propostas dos presidenciáveis tem se dado através de um debate raso e meramente declaratório em muitos veículos. Como exemplo disso, podemos ver a matéria do Uol acerca da declaração de Bolsonaro sobre as áreas indígenas protegidas fazerem o mapa do Brasil parecer com um “corpo com catapora” – um país pintado com áreas protegidas que “afetariam o agronegócio e o homem do campo”. Essa matéria, publicada no dia 26 de agosto, não faz nada além de declarar o que foi dito pelo candidato à reeleição, apenas aumentando ainda mais o alcance da falácia sobre um assunto complexo, que poderia ter sido debatido com pesquisas sérias na área e importantes vozes que atualmente abordam esse tema. O mesmo é feito pelo PortalTerra que, apesar de fazer um compilado de falas dos principais quatro presidenciáveis sobre a questão do marco temporal às terras indígenas, não se posiciona sobre o tema com dados e pesquisas, tratando o debate como meras opiniões equivalentes a serem consideradas.
Essa falta de profundidade afeta várias questões ambientais dentro do jornalismo que pauta as eleições, como as matérias que cobrem as propostas em relação ao agronegócio e as possibilidade de reforma agrária no Brasil. O jornal Correio do Estado publicou uma matéria no dia nove de setembro sobre as declarações de Ciro Gomes, candidato do PDT, sobre a temática. O tom novamente foi meramente declaratório, expandindo as falas do presidenciável sobre a força do agronegócio como o setor econômico “que leva o Brasil nas costas”. Além disso, a matéria apenas reescreve as falas do candidato sobre o “problema econômico do agronegócio” relacionado com o consumo de fertilizantes externos da Rússia e da Ucrânia, o que o faz pensar em medidas para criar autonomia brasileira na produção de fertilizantes. Essa tonalidade neutra do Correio do Estado faz com que não haja nenhuma discussão real e científica sobre as propostas – como faz o projeto O Joio e O Trigo que mostra que a investigação sobre os impactos do uso de agrotóxicos ocasiona perseguições e mortes no nosso país.
Por isso, qual deve ser o papel da cobertura das propostas dos presidenciáveis ao meio ambiente dentro do jornalismo ambiental? Sem dúvida, não deve ser um jornalismo que se pretende neutro e, para isso, opera simplesmente através da declaração do que está sendo dito por diferentes candidatos. Ao contrário, deve tomar posição através da memória do que temos vivido nos últimos quatro anos e deve retomar a fala de inúmeros pesquisadores na área para que tenhamos um entendimento melhor de quais são as propostas mais adequadas que juntam pensamento político e pensamento acadêmico/científico.
* Cientista Social/Antropólogo. Mestre em Comunicação. Atual doutorando em Comunicação pelo PPGCOM/UFRGS.
Como medir a preocupação da população com questões ambientais — mais especificamente, as mudanças climáticas? Não é uma questão trivial, mas uma pesquisa da Ipsos Global Advisor realizada em 27 países, em junho de 2022, buscou responder. São duas as informações principais e que mais chamam a atenção: o Brasil está em penúltimo lugar entre os países cuja população trata o tema como prioridade, apenas à frente da Argentina; por outro lado, 77% dos brasileiros externalizaram preocupação com os impactos da emergência climática no país.
Num olhar raso, o resultado pareceria contraditório. Não é. Acontece que a pesquisa mede — e a matéria publicada n’O Globo corretamente contextualiza isto —, num primeiro momento, a proporção de pessoas que trata as mudanças climáticas como assunto prioritário. Não surpreendentemente, os países que figuram no ranking dos mais desenvolvidos do mundo ficaram nas primeiras posições, com exceção da Índia, variando entre 20% e 31% dos entrevistados; o Brasil soma 4%, enquanto a média global foi de 16%. Embora numa análise mais especulativa do que assertiva, o que podemos interpretar do outro questionamento da pesquisa (em que três quartos dos brasileiros estão preocupados) é que a liderança de países do Norte Global não se trata apenas de uma questão “educacional”. A prioridade de preocupação com as mudanças climáticas é, por certo, relacional: países devassados pela alta da inflação, fome, crise econômica, violência etc. colocam a crise climática num segundo escalão — o que não significa, necessariamente, que a desprezem.
De qualquer forma, ainda que a ampla maioria dos brasileiros pareça preocupada com o tema, é preciso cada vez mais apresentar para a população a relação intrínseca entre as questões ambientais e os outros fatores, sociais, urbanos e econômicos, que afligem a população. A atuação contra as mudanças climáticas é, necessariamente, socioeconômica, e com impactos proporcionalmente maiores para os países e populações mais pobres. É aí que entra o papel da imprensa, como reiteradamente pontuamos neste Observatório, de não estar limitado à exposição factual dos acontecimentos e desastres ambientais, ou das longínquas reuniões políticas sobre o clima: é necessário que a conexão entre meio ambiente e a vida real das pessoas perpasse, inexoravelmente, a produção do jornalismo ambiental.
* Jornalista, doutorando em Sociologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ) e mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). E-mail: michelmisse93@gmail.com.
Print de mapa apresentado no telejornal local da TV Globo Nordeste em 25 de maio de 2022
Por Eloisa Beling Loose*
Desde a última semana estamos acompanhando a cobertura diária de meios de comunicação sobre as inundações e deslizamentos de terra que atingiram o Nordeste brasileiro, sobretudo a região metropolitana do Recife. A Folha de Pernambucofez uma retrospectiva dos eventos trágicos e informou que esta foi a maior tragédia do século no estado. Mais de 120 vidas foram perdidas, a maioria delas vivia em áreas de risco e em situação de vulnerabilidade. Os impactos econômicos ainda estão sendo contabilizados, mas um levantamento da Confederação Nacional dos Municípios (CNM) revela que, nos últimos seis meses, as cidades nordestinas afetadas por inundações e deslizamentos somaram mais de R$ 3,1 bilhões de prejuízos – e essa última semana de chuvas ainda não está na conta.
Já questionamos aqui neste Observatório o quanto é preciso que o jornalismo ultrapasse a cobertura factual e avance para o debate do contexto – e não apenas a partir das tragédias. Prevenção, de fato, deveria ser pauta antes dos avisos de um possível evento meteorológico ou hidrológico. Quando os fenômenos são iminentes, o tempo de ação é escasso e as mudanças estruturais já não são possíveis. Trabalha-se com o que é possível: a redução de danos.
O que verificamos, ano após ano, é que a prevenção é lembrada quase sempre no anúncio do desastre. Nesse ínterim, os alertas de chuvas fortes e de seus riscos costumam ser noticiados, sobretudos nos veículos locais. Há um chamamento para que a população saia das áreas mais afetadas para preservar a vida. Mas, isso é preparação antecipada ou somente uma estratégia paliativa para evitar os piores cenários?
É um equívoco entender que a prevenção de desastres se resume à emissão de alertas um pouco antes dos acontecimentos. O G1 destacou a fala de um especialista, que foi enfático: “Não adianta receber o alerta e não saber o que fazer”. Então, surge a reflexão: quem se comunica com essa população periodicamente? E de que forma? Quando ela é realmente ouvida? Qual é o espaço que o jornalismo dá para questionar planejamento urbano? E as políticas públicas de moradia? Quais são as condições reais para a defesa civil trabalhar no âmbito da prevenção?
Outro ponto a ser destacado nessa cobertura é a existência da associação do desastre com as mudanças climáticas. Repete-se que com o aumento médio das temperaturas eventos climáticos extremos como esse podem ser mais frequentes e mais intensos – o que reforçaria, em teoria, a aceleração de implementação de medidas de adaptação. Recife é a capital mais vulnerável às mudanças climáticas no Brasil e a 16ª cidade do mundo, de acordo com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, o IPCC, o que foi noticiado no UOL, n’O Globo e em outros veículos. Mesmo assim, o enfrentamento aos riscos climáticos segue muito aquém do esperado.
Em matéria publicada no Observatório do Clima, assinala-se a vanguarda de Recife, já que, em 2019, ela se tornou a primeira capital brasileira a reconhecer o estado de emergência climática global e realizar um amplo diagnóstico dos riscos visando formas de adaptação. Então, os gestores públicos possuíam conhecimento sobre o que deveria ser feito, mas interesses de curto prazo, como as reeleições, acabam por ser priorizados em detrimento de projetos mais complexos, como a retirada de pessoas de áreas irregulares e sem a infraestrutura adequada.
Cabe ao jornalismo fiscalizar o poder público e permitir que a audiência conheça de que maneira nossos representantes estão compreendendo (ou não) a emergência climática e atuando para mitigar suas consequências. A prevenção deve ser uma pauta periódica, de modo que a colaborar com um novo entendimento de como devemos agir em tempos de intensificação de riscos e desastres.
Ainda sobre esse o papel do jornalismo em casos de desastres, destacamos o papel pedagógico da imprensa quando há questionamento do público sobre medidas de precaução. Na segunda quinzena de maio, a mídia noticiou a chegada da Tempestade Yakecan no Rio Grande do Sul, alertando seus riscos e informando sobre medidas preventivas, como a antecipação do fim de expediente ou cancelamento de atividades. Felizmente, as piores previsões não se concretizaram, o que gerou uma (falsa) impressão da população que houve um alarde desnecessário. A jornalista Juliana Bublitz, de GZH, no dia seguinte, lembrou aos leitores que precisamos reconhecer a atuação dos gestores diante dessas previsões e aprender mais sobre a prevenção.
*Jornalista, doutora em Comunicação e em Meio Ambiente e Desenvolvimento. Vice-líder do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental. E-mail: eloisa.beling@gmail.com.
A principal notícia deste mês de abril, no que tange à situação climática do planeta, foi a divulgação do novo relatório do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudança do Clima) da Organização das Nações Unidas. É apontada uma diminuição das chances de limitação do aumento da temperatura em 1,5ºC, cenário para o qual é necessário alcançar o pico de emissões até 2025 e cortá-las pela metade até 2030. O relatório do IPCC é um acontecimento tão científico quanto geopolítico e, divulgado sazonalmente, costuma ocupar um relativo lugar de destaque no noticiário dos grandes veículos de mídia.
Enquanto notícia, os fatos relatados pelas matérias costumam conter boa dose de informações climáticas, projeções de cenários, diagnósticos do problema — afinal, são estes os dados divulgados no âmbito do próprio IPCC. A matéria da Folha de S. Paulo sobre o acontecimento cumpre à risca seu papel e não se furta de elucidar, com clareza, as principais informações, causas e consequências que envolvem a emergência climática em curso. Já esta reportagem da BBC Brasil, publicada na última semana por portais como G1 e Folha de S. Paulo, também mobiliza uma interessante discussão científica em torno das novas tecnologias de “geoengenharia solar”: pesquisas que buscam mitigar o aquecimento do planeta a partir de técnicas como o lançamento de substâncias químicas na estratosfera, fazendo-as atuarem como barreira aos raios solares. Grande parte dos cientistas, todavia, alerta para o grave risco das técnicas, com consequências imprevisíveis para o planeta; reforçam o grau apenas paliativo do empreendimento; e criticam o deslocamento de atenção da raiz do problema, que é a imprescindível necessidade de redução da emissão de gases de efeito estufa.
O problema, no entanto, é que o emaranhado de outras dimensões que envolvem as mudanças climáticas — para além da reunião de cientistas e/ou políticos em organizações multilaterais — também necessita estar presente nas capas dos jornais e televisão. Se o objetivo deve ser o de informar a população para que, indiretamente, aumente a pressão da sociedade civil por medidas mais rigorosas de enfrentamento às mudanças climática, é preciso acionar as diversas nuances do assunto e envolver o público pelos múltiplos caminhos possíveis.
Um bom exemplo é esta matéria publicada pelo National Geographic Brasil, abordando “como o aquecimento global afeta a vida no Brasil”. A publicação envolve o já conhecido aumento de desastres naturais — e cita, por exemplo, as chuvas torrenciais que deixaram 233 mortos em Petrópolis (RJ) —, apontando para a mudança no padrão de chuvas nas regiões Sul e Sudeste, em especial. Também engloba as consequências diretas na saúde humana devido ao estresse térmico, bem como o aumento no custo de produção alimentícia e energética, e suas repercussões no aumento da desigualdade social brasileira.
A necessidade de envolver o público para as questões ambientais em suas diversas facetas é evidenciada, por exemplo, nesta coluna do portal Latinoamérica21, publicada na Folha de S. Paulo, sobre as “Contradições no mundo diante das mudanças climáticas”. Em suma, pesquisas de opinião apontam para um elevado grau de alerta das populações latino-americanas sobre as mudanças climáticas em relação ao resto do mundo; ao mesmo tempo, apesar de alertas, também são estas as mais otimistas quanto à resolução dos problemas. Chama mais a atenção, no entanto, a alta ênfase dada à responsabilização do indivíduo para solucionar as mudanças climáticas: nove em cada dez latino-americanos acreditam que suas ações pessoais fazem a diferença (mais do que a média de países desenvolvidos) e 40% das classes média e média baixa brasileira veem no indivíduo uma responsabilidade maior pela sustentabilidade do que nos governos e empresas.
Embora sem diminuir a importância da conscientização em nível individual, o foco somente nesta instância pode desestimular a pressão popular e a fiscalização dos grandes agentes poluidores. É também nesta direção que deve caminhar o jornalismo, em seu papel de descortinar as muitas variáveis que orbitam as questões socioambientais.
* Jornalista, doutorando em Sociologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ) e mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). E-mail: michelmisse93@gmail.com.
Imagem: IPEAS Report – The Politics of Protein, 2022
Por Matheus Cervo*
Nas últimas décadas, o debate sobre os impactos do consumo de carne tem avançado para mostrar que a escolha em aderir uma dieta vegana vai muito além de optar pela libertação animal.
Segundo a FAO-ONU, o consumo de carne vermelha gera 14,5% das emissões de gases de efeito estufa (GEE) e é responsável por inúmeras infrações trabalhistas nos setores frigoríficos. Além disso, mais de 60% das doenças infecciosas humanas são causadas por agentes patogênicos partilhados com animais selvagens ou domésticos. Por isso, são utilizados antibióticos de forma excessiva na indústria da carne, o que contribui enormemente para o surgimento de agentes resistentes aos mesmos.
Os impactos são ainda mais gritantes quando pensamos de forma sistêmica e percebemos que esse tipo de produção gera desafios críticos à sustentabilidade, como perda de biodiversidade, poluição química, degradação da terra, dificuldade de manter um meio de subsistência e pobreza nutricional nas dietas familiares. Não é trivial notar dados alarmantes que mostram que 80% das terras agrícolas globais são destinadas à produção de soja e milho para fabricação de ração, algo que é extremamente ineficiente para resolver o problema grave da insegurança alimentar.
Ainda assim, existe uma quantidade enorme de matérias jornalísticas que não se comprometem em buscar fontes sérias, gerando desinformação e rejeição sobre o tema. Como exemplo disso, o Metrópoles publicou uma matéria chamada “Entenda por que alguns vegetarianos e veganos voltam a comer carne”. A escrita traz posições de nutricionistas que ainda não se atualizaram no debate científico, já que falam que veganos tendem a voltar a comer carne por ficarem subnutridos (pela suposta falta de proteína) ou por perceberem que estavam em um “surto” por pressões sociais absurdas. Por fim, traz uma série de argumentos de psicólogos para legitimar o processo de reconversão a uma dieta com carne, uma vez que esses profissionais da saúde afirmam a necessidade de autoconhecimento para se “desvincular de crenças que geram sofrimento”.
Um meio que faz um trabalho muito mais sério é O Joio e O Trigo, um projeto de jornalismo investigativo sobre alimentação, saúde e poder. Recentemente, publicaram uma matéria sobre o crescente mercado das caríssimas “carnes vegetais” industriais. Logo de início, partem de inúmeras fontes de informação que pautam a importância do debate sobre a mudança alimentar, como o relatório do Painel Internacional de Especialistas em Sistemas Alimentares Sustentáveis (IPES-Food), que foi publicado no dia 6 de abril de 2022. Contudo, é com base nesse relatório que a matéria mostra que as soluções não são simples e que muitas alternativas industriais como as mencionadas não são sustentáveis e, inclusive, são patrocinadas pela própria indústria da carne.
O texto termina como uma aula ao jornalismo que se debruça ao veganismo e às mudanças alimentares, já que traz um discurso de que esse debate sobre carnes e proteínas precisa de uma dimensão antropológica. Ou seja, se sabemos que a redução ou a eliminação dos produtos de origem animal são necessárias, precisamos fazer esse debate junto da diversidade cultural de práticas para e com a natureza, com agricultores familiares, povos indígenas, ribeirinhos, quilombolas e mesmo grupos urbanos em situação de insegurança alimentar. Não se trata de criar matérias repudiando ou adorando o veganismo, mas, sim, de o debater de forma societária e complexa.
* Graduado em Ciências Sociais, mestre em Comunicação e atual doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Mapa de perda de floresta devido ao fogo vs. outros fatores entre 2001 e 2019 (Foto: Alexandra Tyukavina, Peter Potapov, Matthew C. Hansen, Amy H. Pickens, Stephen Stehman, Svetlana Turubanova, Diana Parker, Viviana Zalles, André Lima, Indrani Kommareddy, Xiao-Peng Song, Lei WANG, and Nancy Harris). Fonte: Reprodução da notícia publicada em Galileu
A matéria levanta questões importantes e de interesse público referentes à situação das queimadas nas áreas florestais e sua proporção global entre 2001 e 2019 – sendo maior do que o estimado, além de mencionar o Brasil e as recentes queimadas na Amazônia, que chamaram a atenção dos pesquisadores. É apresentado o mapa produzido pelos autores, ilustrando em clara resolução as regiões que tiveram perda florestal e facilitando a visualização de quais áreas foram perdidas pela queimada ou por outros fatores e onde ainda não houve perdas.
No entanto, o conteúdo do texto se limita à reprodução dos dados da pesquisa, oferecendo pouca contextualização da temática que a envolve. Também não ouve muitas fontes, trazendo apenas declaração de uma das autoras do trabalho. A matéria não aponta a relação desses fenômenos com as ações humanas, que provocam, em maior parte, os incêndios florestais, além de não aprofundar esses danos à biodiversidade e aos ecossistemas.
De acordo com Wilson Bueno (2007a, p.18), com uma cobertura jornalística ambiental fragmentada, “o cidadão muitas vezes tem dificuldades para entender a amplitude e a importância de determinados conceitos e vislumbra o meio ambiente como algo que lhe é externo”, dificultando o entendimento do seu papel nessa atmosfera ambiental. Isso não auxilia na compreensão, nesse caso, dos motivos pelos quais os incêndios florestais ainda acontecem, quais são as consequências acarretadas pelas queimadas – como a emissão de gases do efeito estufa, mencionada no estudo – e, principalmente, o que pode ser feito para reverter tal situação e qual é a importância da participação dos setores público e privado no combate aos incêndios florestais.
A matéria negligencia o debate da emergência climática, inserindo apenas uma breve menção, no último parágrafo, de que o mapa apresentado “deve ser utilizado como ferramenta para fazer a gestão florestal e auxiliar no desenvolvimento de políticas globais e programas de conservação e modelagem climática”. A sua publicação foi feita no Dia Nacional de Conscientização sobre as Mudanças Climáticas e, no dia anterior (15), o mesmo veículo publicou outra notícia sobre um relatório que aponta consequências do aquecimento global nas américas até 2050, igualmente limitada e orientada para uma perspectiva catastrófica, trazendo dados científicos sem contextualizar a repercussão do estudo e ainda recorrendo ao sensacionalismo, uma das síndromes do jornalismo ambiental apontadas por Bueno (2007b).
Ao contrário, a cobertura dos incêndios, conforme o jornalismo ambiental, deveria ser comprometida com a mudança de paradigmas, enxergando além das aparências (BUENO, 2007a) e trazendo as pautas ambientais de forma ampliada, de modo a visibilizar as ações necessárias para lidar com catástrofes. A imprensa não poderia se eximir do papel educativo, colocando as informações necessárias e corretas à disposição da sociedade, que poderá tomar suas decisões diárias conectadas com a construção de uma vida sustentável (GIRARDI; LOOSE; BAUMONT, 2011).
Referências:
BUENO, Wilson da Costa. Comunicação, Jornalismo e Meio Ambiente: teoria e pesquisa. São Paulo: Majoara, 2007a.
BUENO, Wilson da Costa. Jornalismo Ambiental: explorando além do conceito. Desenvolvimento e Meio Ambiente, n. 15, 2007b. pp. 33-44.
GIRARDI, Ilza; LOOSE, Eloisa; BAUMONT, Clarissa (orgs.) Ecos do Planeta: Estudos sobre Informação e Jornalismo Ambiental. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2011.
*Aluna da disciplina Jornalismo e Meio Ambiente da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: leticiampasuch@gmail.com.
Imagem: Print do topo da notícia publicada pelo G1 em 09.03.2022.
Por Clara Aguiar*
No dia 9 de março de 2022, artistas, lideranças indígenas, movimentos sociais e parlamentares da oposição se reuniram em frente ao Congresso Nacional para protestar contra o chamado “Pacote da Destruição”, um conjunto de projetos de lei proposto pelo governo de Jair Bolsonaro que prevê a flexibilização do licenciamento ambiental, a ampliação do uso de agrotóxicos e a liberação da mineração em Terras Indígenas. Idealizado pelo cantor Caetano Veloso, o “Ato pela Terra” contou com a participação de 17 mil pessoas, segundo estimativas da Polícia Militar. Apesar da multidão, minutos após o encerramento do ato, a Câmara dos Deputados aprovou o requerimento de urgência do PL nº 191/2020, que regulamenta a exploração de minérios em terras indígenas, inclusive em territórios habitados por povos isolados.
A aprovação do requerimento de urgência do PL foi título de matérias em diversos jornais do Brasil. No G1, a notícia Câmara aprova urgência para votação de projeto sobre mineração em terras indígenas, em um primeiro momento, parece se destacar ao adotar uma abordagem contextualizada que apresenta a proposta do projeto, os argumentos a favor e contra e o que o PL representaria na prática. No entanto, a matéria não é capaz de explicar ao leitor a complexidade socioambiental que envolve o PL 191/2020. Embora a proposta do projeto tenha como objetivo regulamentar uma prática que gera consequências nocivas para o meio ambiente e que possivelmente colocaria em riscos à vida de povos originários, esse aspecto parece ter sido esquecido. Em nenhum momento, o texto traz uma análise mais aprofundada de fontes especialistas em relação aos impactos que ocorrem na atividade de mineração.
Nesta notícia, observa-se um jornalismo declaratório devido ao predomínio de fontes oficiais, já que somente personalidades políticas foram consultadas: o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), o líder do governo na Casa, Ricardo Barros (PP-PR), o líder da Oposição, Wolney Queiroz (PDT-PE) e a deputada indígena Joenia Wapichana. Quando o meio ambiente está em pauta, Wilson Bueno defende que é preciso “ter compromisso com o interesse público, com a democratização do conhecimento, com a ampliação do debate. Não pode ser utilizado como porta-voz de segmentos da sociedade para legitimar poderes e privilégios” (2008, p.111).
Apesar do PL estar intrinsecamente ligado às questões socioambientais, o enquadramento não foi além do político. A matéria se limitou a abordar de forma jurídica o projeto em si e não explicou as problemáticas por trás de sua proposta. “Ele [jornalista] precisa ter uma visão mais abrangente do tema porque caso contrário, irá fechar o seu foco, restringir as suas fontes e ficar à mercê de informações ou dados que servem a determinados interesses” (BUENO, 2007, p. 377). Sob a ótica do jornalismo ambiental, a abordagem empregada pelo G1 não incorporou uma visão sistêmica que induz o leitor a relacionar a dimensão ambiental e social com o fato noticiado. A cobertura poderia ter investido em uma maior apuração que buscasse uma leitura crítica, com o emprego de conhecimento especializado e maior representatividade de fontes não governamentais que colocasse em perspectiva a problemática socioambiental.
Referências:
BUENO, Wilson da Costa. Comunicação, Jornalismo e Meio Ambiente: teoria e pesquisa. São Paulo: Mojoara Editorial, 2007.
BUENO, W. C. Jornalismo Ambiental: explorando além do conceito. In: GIRARDI, I. M. T.; SCHWAAB, R. T. (Orgs.). Jornalismo Ambiental: Desafios e Reflexões. Porto Alegre: Dom Quixote, 2008. pp.105-118.
*Aluna da disciplina Jornalismo e Meio Ambiente da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: claraaguiar14@hotmail.com.
Imagem: Reprodução da notícia analisada – Ruínas de casa na Praia de Atafona, engolida pelo mar. Erosão transforma paisagem em cenário apocalíptico Foto: Mauro Pimentel/AFP
Por Valentina Bressan*
Em 14 de fevereiro de 2022, foi publicada no portal online do jornal O Globo uma notícia sobre o balneário de Atafona, que fica na cidade de São João da Barra, no Rio de Janeiro. O mote da matéria é que a água do mar está avançando rapidamente sobre a costa, destruindo as casas no litoral.
Embora a notícia traga pontos interessantes e de interesse público, muito do conteúdo da matéria recai nos clichês de um jornalismo que pode pretender-se ambiental, mas ainda não chega a ter o “caráter revolucionário” proposto por Wilson Bueno (2007, p.17). O sociólogo John Hannigan afirma que “a cobertura ambiental dos meios de comunicação social é, em larga medida, limitada e moldada pelas mesmas limitações de produção que governavam o trabalho noticioso em geral” (2000, p.87).
Na matéria d’O Globo, a apuração e redação não foram feitas por um repórter próprio do veículo, mas por uma correspondente uruguaia da Agence France-Presse (AFP). Deslocar o repórter até Atafona seria, certamente, mais custoso economicamente do que contratar uma agência noticiosa.
O segundo ponto, que fala sobre o espaço do portal destinado ao jornalismo ambiental, é a editoria. No site d’O Globo, a matéria está dentro da editoria “RIO”. Isso não é necessariamente negativo, já que, segundo Eduardo Gerarque (2018), é preciso que o Jornalismo tenha uma visão sistêmica, transversal dos assuntos ambientais. Contudo, por outro lado, isso também diz muito sobre o “não-lugar” que o tema, muitas vezes, ocupa na mídia tradicional.
Quanto ao enquadramento, a frase da linha fina, “Devido a uma combinação de fatores naturais e humanos, o mar avança até 6 metros por ano […], evidencia o foco dado ao tema ao longo da matéria. Nos moldes do que aponta Carlos Walter Porto-Gonçalves (2004), é feita uma separação entre homem e natureza. Essa oposição entre cultura e natureza fica aparente: é o mar quem é capaz de destruir casas, de engolir o balneário.
No lide, a notícia traz o fato de que o aquecimento global é responsável pela intensificação da erosão no litoral de Atafona, porém as informações são superficiais: o uso que o homem fez da água nas últimas décadas e a construção de casas, que eliminou as dunas e a vegetação. Entretanto, o aquecimento global é desconectado das “causas humanas”, como se este não fosse também intensificado pelas ações das pessoas.
A situação do balneário é descrita como apocalíptica, incomum e, embora os critérios de noticiabilidade do Jornalismo orientem para o novo e o improvável, esta abordagem não é a ideal para o Jornalismo Ambiental, pois não dá conta de conectar os acontecimentos com os contextos sociais.
Ainda que sejam consultadas múltiplas fontes de informação, não há um aprofundamento das causas e consequências, impedindo que haja uma ligação entre os aspectos locais e globais. Em vez disso, a notícia fica focada no “sal da cobertura noticiosa”, como afirma Hannigan: os danos e as perdas humanas, mas que não trazem a contextualização esperada para compreendermos a complexidade dos fatos ambientais.
* Aluna da disciplina Jornalismo e Meio Ambiente da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: val.bressan@gmail.com.
Imagem: Print da reportagem exibida no Fantástico com os caminhos possíveis para o problema de destinação de roupas e sobras de tecidos.
Por Eloisa Beling Loose*
Há muito lixo têxtil no mundo. A reportagem especial do Fantástico do último domingo, de quase 15 minutos, apresentou milhões de toneladas de roupas e tecidos que sobram da fabricação das peças e são acumuladas em praias ou desertos, sem nova utilidade para a humanidade e responsáveis por sérios prejuízos ambientais. As imagens são impactantes.
A reportagem trata dos impactos desse descarte inadequado e assinala que a decomposição pode demorar muito: as malhas de algodão, por exemplo, podem levar 20 anos enquanto as de materiais sintéticos, como poliéster, podem persistir no ambiente por até 400 anos. Entretanto, a causa da produção massiva recebe pouco enfoque na reportagem. Por que mesmo são produzidas tantas peças? Quem precisa de tanta roupa? Qual é o tamanho do lucro que está por trás de tanto desperdício?
De acordo com dados do relatório Fios da Moda, realizado pelo Instituto Modefica e FGV, são produzidas quase 9 bilhões de novas peças por ano no Brasil, o que representa uma média de 42 novas peças de roupa por pessoa. Se os recursos naturais são finitos, por que estamos produzindo em uma escala tão desproporcional às nossas reais necessidades?
O foco na reciclagem e reaproveitamento, escolha da reportagem, é necessário, porém não dá conta das razões irracionais que promovem uma cultura de consumismo diretamente associada à degradação da natureza em prol do lucro. A economia circular, baseada na otimização dos recursos a partir da redução, reutilização, recuperação e reciclagem, é bem-vinda, mas será a real solução para mitigar os danos de um sistema massivo que propositalmente se torna obsoleto em um curto tempo?
A responsabilidade pelo descarte da indústria têxtil é questionada, citando a Política Nacional dos Resíduos Sólidos, segundo a qual os geradores teriam que cuidar da destinação adequada das sobras, mas fica claro que, na prática, a lei não está sendo cumprida. Uma das fontes ouvidas, representante do setor têxtil, busca desviar o assunto da responsabilização. O poder público repete que não há condições para fiscalizar todas as empresas.
O consumo exacerbado, motivado pelos baixos preços e desejo incessante de sempre vestir algo novo, acarreta um ciclo constante de compra, uso e descarte. Esse sistema, conhecido como fast fashion, tem contribuído para as mudanças das paisagens naturais que recebem toneladas de resíduos têxteis e, mesmo com iniciativas positivas (como a experiência do Clube de Mães no Brasil e do mercado de Kantamanto em Gana, sinalizadas pela reportagem), não consegue romper com a raiz do problema.
A rápida descartabilidade dos produtos, cerne de muitas indústrias nos dias de hoje, além de ser dependente da exploração constante dos recursos da natureza, deriva em montantes sem precedentes de produtos subutilizados. Enquanto a exploração seguir sendo economicamente vantajosa, não haverá razão para que o mercado opte por materiais reciclados. Ao naturalizar o modus operandi da indústria, apenas respostas paliativas e sempre insuficientes serão possíveis.
* Jornalista, pesquisadora e professora. Vice-líder do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental.
Água turva e barrenta em Alter do Chão, Santarém, Pará, pode ser consequência da mineração. Imagem: Julia Dolce – InfoAmazonia
Por Patrícia Kolling
Nas últimas semanas, os danos socioambientais causados pelo garimpo ilegal, realizado em terras amazônicas, tornaram-se novamente pauta na imprensa brasileira. Existe a suspeita de que os sedimentos da mineração na bacia do rio Tapajós, estejam influenciando na coloração das águas das praias de Alter do Chão, Santarém (Pará), região conhecida como caribe amazônico. O site InfoAmazonia, no dia 19 de janeiro, trouxe a notícia de que as águas do rio Tapajós, conhecidas pela transparência e efeito verde azulado, estão barrentas e turvas, apresentando um tom amarronzado. A matéria destaca que em abril do ano passado um levantamento realizado pelo InfoAmazonia, em parceria com a Earthrise Media, havia revelado a mancha de poluição dos garimpos de ouro na bacia do Tapajós estendida por 500 quilômetros rio abaixo, entre os municípios de Jacareacanga e Santarém. Na época, o levantamento, apresentado no site através de um infográfico muito didático, mostrando a diferença das áreas e rios afetados de 1984 até 2021, não obteve grande impacto noticioso. Provavelmente, muitas comunidades tradicionais, de pescadores, indígenas e moradores da região estariam sendo impactadas por essa poluição ao longo dos anos.
Neste ano, porém, quando os possíveis danos da mineração, chegaram à região turística de Alter do Chão, podendo impactar economicamente, o tema conquistou repercussão nacional. O Jornal Nacional apresentou duas matérias sobre o assunto. Uma no dia 19 de janeiro, destacando a mudança da coloração da água e a preocupação quanto a poluição que ela traz, e mostrando o crescimento do garimpo na bacia do Tapajós. A notícia cita dados da Polícia Federal sobre o despejo, pelo garimpo, de 7 milhões de toneladas de rejeitos no Tapajós, e de uma pesquisa da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), que detectou altos níveis de mercúrio no sangue dos moradores de Santarém.
Cinco dias depois, o tema voltou a ser notícia no Jornal Nacional, apresentando imagens aéreas e de satélites, que mostram o rio Tapajós sendo invadido pela lama dos rios Crepori e Jamannxim. “Em julho de 2019, a mancha de lama já era visível na região de Santarém. Em 2020, a linha ficou ainda mais forte e, em julho de 2021, a mancha estava ainda mais intensa”, diz a notícia, mostrando que o problema já é antigo, mas somente agora teve destaque ao atingir uma região visitada por muitos turistas.
O importante nessas matérias jornalísticas, além do factual, é que auxiliam o público a compreender os impactos do garimpo no ecossistema como um todo. A bióloga da UFOPA, Heloisa Meneses, entrevistada pelo InfoAmazonia destaca que, além de causar uma alteração visível na cor do rio, a atividade garimpeira ilegal impacta a composição biótica da água, o funcionamento das cadeias alimentares e, consequentemente, os ecossistemas aquáticos. A matéria do Jornal Nacional ressalta os riscos da poluição da água tanto para as populações tradicionais, como para toda a população amazônica. O coordenador do Mapbiomas, Cesar Diniz complementa que: “A chegada de sedimento garimpeiro até próximo da foz é um problema ambiental e humano muito grave. Essa é a preocupação. Mesmo na seca, o carreamento de sedimentos do Tapajós, até próximo de sua foz no Amazonas, está preocupantemente alto”. O InfoAmazonia mostra que a poluição nos rios amazônicos tem uma conexão direta com impactos ambientais que estão sendo observados no Oceano Atlântico, com a floração de enormes massas de macroalgas, em especial o sargaço, no mar do Caribe.
Mesmo trazendo muitas informações sobre os prejuízos do garimpo ao meio ambiente e a população, os meios de comunicação foram cautelosos em responsabilizar o garimpo pela mudança de coloração da água. O InfoAmazonia, citando a bióloga da Universidade Federal do Oeste do Pará, Heloisa Meneses, diz que um conjunto de fatores, como as alterações climáticas, pode ser responsável pela mudança de coloração da água, “no qual o garimpo e o desmatamento têm um papel importante por serem dois potenciais poluidores”, avalia Meneses. Ela explica que que além de liberar resíduos na água, a atividade garimpeira promove a “movimentação do solo”. “Tudo isso altera a dinâmica dos rios, do ponto de vista químico-físico e biológico”.
A notícia da BBC Brasil, publicada também pela Folha de São Paulo, trouxe o geólogo André Sawakuchi, professor do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo. Ao explicar sobre a vazão dos rios e as características da coloração das águas, ele ressaltou que a melhor maneira de determinar a causa da água barrenta no Tapajós em Alter do Chão, seria analisar o conteúdo dessa água. “Essa análise conseguiria distinguir a argila oriunda do Amazonas, da lama proveniente de garimpo”, diz o geólogo. Seja por prudência ao responsabilizar uma atividade econômica tão poderosa como a mineração por esse dano ambiental, ou por responsabilidade com a informação jornalística, a contextualização e abrangência na apuração e abordagem do tema são importantes para a informação do leitor e telespectador.
* Patrícia Kolling é jornalista, doutoranda em comunicação pela UFRGS e professora da Universidade Federal de Mato Grosso – Campus Araguaia.
Importante cartão-postal brasileiro e recorrente pauta jornalística ambiental, não é novidade dizer que a Baía de Guanabara padece de um processo de poluição que vem de décadas. Desde 2001, o 18 de janeiro é o Dia Estadual da Baía de Guanabara, ocasião menos celebrativa do que reflexiva, que remonta ao crime ambiental decorrente do vazamento de um duto da Petrobrás, com graves consequências para o ecossistema — sobretudo no fundo da baía, longe dos bairros turísticos.
A data deste ano vem acompanhada de “velhas novidades” para a região. A concessão do saneamento básico para a iniciativa privada promete a resolução do histórico problema nos municípios do entorno da baía, como São Gonçalo e cidades da Baixada Fluminense, na periferia metropolitana, que contam com alguns dos piores índices de tratamento de esgoto do Brasil¹; junto às favelas, elas também detêm as maiores concentrações de pessoas pobres e negras da região metropolitana.
Ao longo das últimas semanas, a baía foi assunto em três matérias publicadas pelo jornal Folha de S. Paulo. A primeira, “Baía de Guanabara ‘fura fila’ e vê nova promessa de despoluição”, faz uma boa retrospectiva das muitas promessas fracassadas de despoluição e apresenta dados sobre saneamento e qualidade da água. Mas a notícia, de fato, é a implantação de um sistema emergencial (o “coletor de tempo seco”), ao longo dos próximos cinco anos, antes do sistema tradicional de esgoto (o “separador absoluto”). Para que se diminua o passivo ambiental da baía de forma mais rápida e com menor custo, o esgoto seguirá sendo escoado nas redes pluviais, mas será coletado e tratado antes do despejo nos rios — nos dias de chuva, todavia, o sistema não dá vazão, as comportas se abrem e a poluição segue o curso. Ficam adiadas, assim, as obras definitivas de saneamento de residência por residência; e permanecem os valões de esgoto na porta das casas e os riscos à saúde da população. A controvérsia é bem colocada e trabalhada pelo jornalista, com bons argumentos de ambos os lados: no fundo, estaria a despoluição de um ambiente sendo priorizada em relação à saúde das pessoas?
A resposta não é trivial, o assunto não é leviano e o consenso mais palpável é que os dois sistemas, em algum momento, precisam ser concretizados de forma complementar num modelo duplo. A segunda matéria da Folha, no entanto, dá pistas sobre interesses privados e alertas à sociedade. Numa entrevista com o presidente da concessionária, a promessa de limpar a Praia de Botafogo em cinco anos intitula a matéria, jogando luz sobre o principal cartão-postal da cidade. A recuperação da baía é tratada como oportunidade de projeção internacional da empresa; e, por que não, podemos supor, de avalizar e justificar a privatização do saneamento Brasil afora. Um olhar atento ainda deve questionar as implicações imobiliárias do empreendimento, sobretudo pela dificuldade — admitida na entrevista — de tornar balneáveis as praias da periferia, próximas à Ilha do Governador.
Longe de uma discussão que contraponha pessoas e ambiente em polos distintos, é preciso garantir que os benefícios de lazer, econômicos, sanitários etc. de uma eventual despoluição contemplem toda a população da desigual baía. A terceira e última matéria, por fim, retoma pontos já conhecidos da população, como a triste constatação de que os botos-cinza, presentes no brasão municipal, tendem ao desaparecimento; e o bom exemplo da preservação e recuperação de manguezais da região. Que desenterremos, do fundo da lama dos mangues do recôncavo, a esperança de uma baía economicamente indutora, ambientalmente rica e socialmente igualitária.
¹O Ranking de Saneamento 2021 do Instituto Trata Brasil coloca quatro cidades do entorno da baía entre as dez piores do Brasil em tratamento de esgoto — as únicas fora da região Norte.
* Jornalista, doutorando em Sociologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ) e mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). E-mail: michelmisse93@gmail.com
Imagem: Deslizamento do Morro da Forca que destruiu um casario histórico em Ouro Preto. Fonte: Redes Sociais, autor(a) desconhecido(a).
Por Matheus Cervo*
Os extremos climáticos na América do Sul se tornam cada vez mais parte do nosso cotidiano. Logo após a passagem de 2021 para 2022, tivemos a presença de uma grande onda de calor no sul do continente e fortes chuvas registradas em Minas Gerais e na Bahia – fenômenos que não podem ser desconectados do colapso climático que segue em curso.
Não é surpresa que esses extremos estejam atingindo parte do nosso patrimônio histórico e social, visto que isso tem acontecido de forma cada vez mais agressiva. Como mais um evento desse tipo, o aumento das chuvas em Minas Gerais causou a destruição de um casario histórico no Morro da Forca em Ouro Preto devido a um deslizamento de terra no dia 13 de janeiro. Com isso, uma parte do jornalismo brasileiro se debruçou sobre o ocorrido para discutir a situação da memória brasileira frente a esses fenômenos climáticos.
O G1 fez uma matéria chamada “Patrimônio Mundial da Humanidade, Ouro Preto convive com áreas de risco e danos ao casario histórico”. Ela se destaca por ter buscado especialistas de diferentes áreas para entender não só a destruição em si, mas o que pode ser feito para que se tenha um resguardo das edificações históricas do nosso país. Entre eles, foram mencionadas falas de uma professora da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) do departamento da Arquitetura e do Urbanismo, explicações de um geólogo e estudos sobre áreas de risco do Serviço Geológico do Brasil/CPRM. Além disso, tentaram entrar em contato com a administração municipal de Ouro Preto e com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), assim como trouxeram alguns dados antigos para mostrar que os deslizamentos de terra e as perdas ao patrimônio não são novidades nessa cidade.
O evento causou tanta comoção aos profissionais que se preocupam com a questão da memória que a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) se pronunciou com uma nota no dia 14 afirmando que foi uma grande perda para toda a humanidade – o que foi resumido e noticiado pelo jornal O Estado de São Paulo. Essa grande mobilização da organização internacional se deve ao fato de Ouro Preto ser a primeira cidade brasileira inscrita na década de 1980 na Lista do Patrimônio Mundial da Unesco, sendo uma cidade que é monitorada pelo Centro do Patrimônio Mundial. Não é trivial salientar que a diretora ressaltou que medidas protetivas são ainda mais importantes em meio ao avanço das mudanças climáticas, o que foi noticiado pelo Estadão.
Percebe-se que, até aqui, cumpre-se com a necessidade de buscar pela complexidade dentro do jornalismo, especialmente nessa imbricação de áreas que estudam as questões ambientais relacionadas com a preservação do patrimônio nacional. Contudo, ainda dentro da discussão sobre memória e sociedade, é possível dizer que a cobertura desses fatos carece de uma discussão mais aprofundada acerca do patrimônio imaterial que se refere às sociabilidades e modos de vida existentes nesses locais. Depois desse evento que foi seguido de alguns outros deslizamentos noticiados, surgiram diversas matérias afirmando que Ouro Preto tem mais de 300 áreas de risco, sendo que 882 residências estão nessas regiões. Saíram notícias mostrando que 80 famílias foram removidas do bairro Taquaral e diversos serviços foram evacuados como forma de precaução.
Por isso, como o jornalismo ambiental poderia noticiar esses desastres ao patrimônio brasileiro sem prezar somente pelo material? Não seriam as formas de sociabilidade e as construções históricas de modos de vida específicos desses locais patrimônios imateriais tão importantes quanto as edificações? Não seriam elas também formas tão importantes de resguardo quanto a materialidade da nossa memória brasileira? São essas questões que ficam pungentes para aprofundamento dessa discussão sobre o que realmente é o patrimônio mundial da humanidade e como o jornalismo (assim como organizações como a Unesco) poderiam ter uma noção mais abrangente de como a memória se mantém viva na sociedade através das suas dimensões imateriais.
* Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e mestrando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da mesma universidade.
Os jornalistas que cobrem “Geral” ou “Cidade” sabem o tamanho do desafio de tornar atrativas as notícias e reportagens sobre mudanças no Plano Diretor, que, segundo o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2011), é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana do município. As mudanças mexem de forma direta no cotidiano dos moradores, mas explicar isso significa compreender a disputa pelo solo urbano e dar a entender termos como “gabarito”, “capacidade de suporte”, “potencial construtivo” e “coeficiente de aproveitamento”, assim como dezenas de siglas que nomeiam as áreas da cidade. Duas capitais do Sul, Florianópolis e Porto Alegre, estão discutindo alterações nos planos diretores, e os jornalistas se deparam com esse desafio.
Em Florianópolis, a cobertura jornalística sobre o tema expressa a realidade local de mídia, onde o grupo NSC, ex-RBS, tem magra cobertura local, e o grupo ND, ex-RIC, ligado ao grupo Record, alinha-se ao discurso da prefeitura e do empresariado. A prefeitura realizou Audiência Pública em 17 de dezembro e irá promover outras 14 em janeiro para apresentar as mudanças no Plano Diretor, desconsiderando críticas dos movimentos sociais organizados. Essas críticas se relacionam à forma, ao conteúdo e à organização do processo, em plena temporada de verão e com casos crescentes de contaminação por covid-19. As críticas não aparecem nas poucas notícias e raríssimas reportagens publicadas nos veículos dos dois grupos e, nas colunas e editoriais, são atribuídas a “grupos ideológicos de esquerda”, historicamente chamados de “os contra”, como na coluna de Moacir Pereira, comentarista político de longa data demitido do grupo NSC e contratado pelo grupo ND.
Desde o início de dezembro passado, quando a prefeitura apresentou a proposta de mudança do Plano Diretor, até agora, às vésperas das audiências para ouvir a população sobre os rumos da chamada “Ilha da Magia”, esses veículos não se prestaram a apresentar a proposta de forma detalhada e ouvir quem é crítico aos planos da atual administração. A cobertura se limita aos releases enviados pela prefeitura e às entrevistas de secretários e empresários descontentes com a mobilização do movimento popular, que tem obtido até agora vitórias na justiça para suspender as Audiências Públicas agendadas para janeiro. Nesse ínterim, em meio ao calor do verão e ao temor pelo recrudescimento da pandemia, a população da capital catarinense, a depender da cobertura jornalística local, pouco ou nada saberá do que planejam os gestores para mudar o uso do solo da cidade.
Já um bom exemplo de como um veículo pode oferecer informação de qualidade apareceu dia 7 de janeiro no site de notícias Sul21, que publicou entrevista pingue-pongue com o prefeito de Porto Alegre intitulada “Sebastião Melo: ‘O Plano Diretor que vamos mandar para a Câmara será bastante liberal’”. As perguntas permitem ao prefeito expressar o projeto para a cidade, mas não deixam de explorar contradições, aprofundar afirmações vagas e apresentar exemplos concretos em que o discurso oficial contradiz a prática da prefeitura. Também é visível o conhecimento dos jornalistas sobre a história da cidade e as ações de administrações anteriores, quando perguntam, por exemplo, se os projetos em curso estão mantendo o legado de preocupação ambiental de Porto Alegre. É importante assinalar que o Sul21 publicou em julho do ano passado um especial, intitulado “Que Porto é esse: quem ganha com as transformações na capital”, com sete reportagens repletas de entrevistas, dados e fotografias que oferecem ao leitor um prato colorido e apetitoso para compreender a disputa pelo espaço urbano na capital gaúcha. Os veículos de Florianópolis estão devendo um prato desses na cobertura dos impactos da mudança do Plano Diretor local.
*Jornalista, especialista em Educação e Meio Ambiente, mestre em Geografia e doutora em Jornalismo.
Crédito: Isac Nóberga / PR. Fonte: Agência Brasil.
Por Débora Gallas Steigleder*
Estudos de integrantes do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental sobre a cobertura ambiental no Jornal Nacional no ano de 2019 identificaram a ampliação e transversalização das pautas sobre meio ambiente no telejornal em relação a anos anteriores. A maior recorrência de temas ambientais nas edições do principal produto jornalístico da TV Globo pode ser explicada por dois fatores frequentemente sobrepostos: o desmonte das políticas públicas de proteção ambiental a partir da posse de Jair Bolsonaro como presidente e o aumento de ocorrências de tragédias de grande envergadura. A busca por explicações e soluções para os impactos dos fenômenos percebidos, no entanto, ainda fica em segundo plano. Após mais de dois anos, é possível perceber que este padrão se mantém na cobertura sobre as fortes chuvas que vitimam e vulnerabilizam cerca de 700 mil pessoas no sul da Bahia ao longo deste mês de dezembro.
Quando o acontecimento irrompe, os esforços de cobertura são direcionados para captar o drama humano. A contextualização da tragédia a partir dos locais mais afetados envolve o telespectador: nas edições dos dias 28 e 29 de dezembro, a situação na Bahia ganhou destaque na programação, com mais de sete minutos em tela. A abordagem de JN chamou à reflexão ao destacar que Jair Bolsonaro decidiu não interromper suas férias no litoral de Santa Catarina para se envolver nas ações do governo federal a fim de amparar da população afetada. Também chamou o público à ação quando coloca em pauta as redes de solidariedade que se formam em todo o Brasil para auxílio no resgate e na sobrevivência daqueles impactados durante o dezembro mais chuvoso dos últimos 32 anos na região.
Porém, uma cobertura realizada a partir de olhar complexo, de acordo com os pressupostos do jornalismo ambiental, deve se debruçar igualmente sobre as causas dessas tragédias, ainda que as consequências sejam visualmente mais impactantes e, portanto, tenham maior valor-notícia. Embora no discurso das fontes oficiais a expressão “desastre natural” seja recorrente, o jornalismo precisa incorporar a contextualização sobre o aumento dos eventos extremos como consequência das mudanças climáticas.
Este entendimento existe, mas ainda é periférico na mídia brasileira. Ao longo da semana, portais de notícias replicaram reportagens com explicações científicas que conectam as enchentes na Bahia à emergência climática, produzidas por veículos de abrangência internacional como RFI e BBC News Brasil. Em 28 de dezembro, Jornal Nacional chegou a exibir reportagem aprofundada sobre o agravamento dos desastres causados pelas chuvas diante da falta de planejamento das cidades brasileiras.
Trata-se de uma conexão necessária para que o público consiga compreender a relação de causa e consequência que envolve tais fenômenos; porém, poderia ser ainda mais detalhada com a incorporação da crise climática como plano de fundo, já que reconhecer sua inevitabilidade e a frequência cada vez maior dos eventos extremos implica em envolver a opinião pública nos debates sobre medidas de enfrentamento às mudanças do clima. De quebra, também fortalece o debate sobre a responsabilidade dos governantes que permanecem inertes diante do caos.
GIRARDI, Ilza Maria Tourinho; STEIGLEDER, Débora Gallas; LOOSE, Eloisa Beling. Novos rumos da cobertura ambiental brasileira: um estudo a partir do Jornal Nacional. TraHs: Revista Trayectorias Humanas Trascontinentales, Limoges, n.7, p. 47-62, 2019. Disponível em: https://www.unilim.fr/trahs/2054#tocto1n3.
*Jornalista, doutora em Comunicação e Informação. Integrante do GPJA.
Apesar do aquecimento global ser um consenso científico, campanhas de desinformação disseminam desconfiança e conteúdos imprecisos com êxito. É o que aponta uma sondagem realizada durante a COP26 pelo Institute for Strategic Dialogue (ISD). O monitoramento do think thank britânico verificou que páginas negacionistas do clima no Facebook obtiveram engajamento 12 vezes superior ao de fontes especializadas, como o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Além disso, perfis negacionistas foram significativamente mais atuantes na rede social durante o evento. Anteriormente, este observatório já discutiu a responsabilidade editorial de veículos de comunicação ao acolherem, sem constrangimento, colunistas que minimizavam as conclusões do relatório do IPCC. Agora, nos questionamos como o jornalismo pode lidar com episódios de desinformação climática.
Trata-se de um fenômeno mobilizado por diversos atores sociais que operam ativamente, entre outras formas, em duas frentes: nas mídias sociais digitais, realizando disparos de notícias falsas, e a partir do lobby de instituições, financiadoras de um número ínfimo de pesquisadores que defendem a hipótese que nega o impacto antrópico no clima.
A checagem de fatos, em contrapartida à primeira frente, é um procedimento que ratifica a veracidade das informações e adverte suas eventuais inconsistências. Na ocasião da conferência do clima, o Estadão alertou para postagens em redes sociais que disseminavam dúvidas sobre a intervenção humana no aquecimento do planeta e ataques à ativistas ambientais. Ainda que seja uma prática imprescindível, a checagem de fatos é uma medida pontual que deve ser correlata a uma cobertura jornalística contínua e engajada, capaz de promover conexões entre o aquecimento global e o contexto local do público.
Em paralelo às notícias falsas, o lobby de determinados segmentos da sociedade busca descredibilizar as evidências científicas sobre o fenômeno. É o caso de alguns setores do agronegócio e da ala militar reacionária. Esse é um dos destaques da investigação jornalística da BBC Brasil, que noticiou que esses grupos financiaram palestras de dois conhecidos pesquisadores negacionistas, Ricardo Felício e Luiz Carlos Molion, que afirmam, entre outras frases sem embasamento científico, que “o aquecimento global é uma farsa, é um mito” e que a redução de emissões é “inútil”. Esses mesmos adjetivos, coincidentemente, foram amplamente usados por perfis negacionistas do Facebook para descredibilizar a COP26, conforme a sondagem do ISD. O movimento, portanto, repete tais chavões como estratégia de minar os esforços de combate ao aquecimento global e semear dúvidas na sociedade.
O jornalismo, como bem exemplifica a reportagem da BBC, deve desvelar o negacionismo, apurar as fontes de custeio e estimular um debate amplo e crítico quanto aos interesses econômicos destes segmentos ao minimizarem ações de enfrentamento ao fenômeno. Embora a desinformação climática exija uma responsabilidade que excede o jornalismo, cabe registrar que este tema perpassa um esforço cotidiano dos profissionais do campo. Aprimorar o caráter educativo jornalismo, em especial, é fundamental para qualificar a pauta e conscientizar o público contra o negacionismo climático.
*Mathias Lengert é jornalista, mestrando em Comunicação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e integrante do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS).
Sobre o tema, repercutiram na imprensa também as declarações de autoridades brasileiras contradizendo ou justificando os dados divulgados. O presidente Jair Bolsonaro afirmou na segunda-feira, dia 15, durante evento com investidores em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, que “os ataques que o Brasil sofre em relação à Amazônia não são justos”, que a floresta “tem mais de 90% de área preservada” e que está “exatamente igual a como era em 1500”. Na Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP26), o presidente havia ressaltado que tem protegido a Amazônia e o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, anunciou que o Brasil deverá zerar o desmatamento ilegal em 2028.
Números, declarações oficiais, questões políticas vieram à tona com o relatório do INPE. Mas, e o desmatamento: quais as causas, quem são os responsáveis, quais os prejuízos sociais, ambientais e econômicos, qual a importância da floresta em pé para a manutenção do clima brasileiro e mundial, quais as relações do desmatamento com a agropecuária, quais os riscos que o Brasil corre ao desmatar a Amazônia? Infelizmente, nenhuma das matérias jornalísticas, acessadas, respondiam essas questões.
A causa ambiental é urgente, e independente da política editorial de cada veículo e da busca pela imparcialidade, já não é mais possível deparar-se com textos que trazem números e declarações contraditórias e, muitas vezes, falsas, como já abordadas neste observatório, e que confundem o leitor que busca informação. Já que a imprensa brasileira se alimenta do factual, precisa aproveitar esses momentos, no caso, a divulgação dos dados do INPE, para tratar em profundidade e com informações contextualizadas as questões ambientais. A informação é a chave para a educação e as ações na preservação do meio ambiente e a imprensa um dos principais canais de difusão.
Deveria estar no manual de redação de todas as organizações jornalísticas, a obrigatoriedade de que todas as notícias ambientais, que são factuais e sintéticas, viessem acompanhadas por reportagens que tratassem a temática em profundidade, abordando causas e consequências.
*Patrícia Kolling é jornalista, professora da Universidade Federal de Mato Grosso – Campus Universitário do Araguaia e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Imagem: Captura de tela. Eric Terena diz que jornalismo precisa de outras referências e fontes
Por Cláudia Herte de Moraes e Eliege Fante*
As COPs costumam ser frustrantes, pelo menos em termos de efetividade em relação aos compromissos assumidos como soluções pelos acordos entre governos e corporações. Entre 31 de outubro e 12 de novembro, estivemos atentas a Glasgow (Escócia), acompanhando as notícias sobre a 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática (COP26). Vários analistas indicam que as negociações globais em torno do clima estão entregando resultados pífios, não obstante venham sendo construídos ao longo de décadas. Especialmente levando em conta a urgência para implantar as ações que nos desviem do caos climático que se avizinha, devido à ultrapassagem da marca de aumento da temperatura global em 1,5oC. Do contrário, não teríamos o alerta definitivo quanto à necessidade de conter o aquecimento global, por parte do VI Relatório do IPCC (sigla em inglês para Painel Intergovernamental de Mudança do Clima da ONU), divulgado em agosto de 2021, às vésperas desta conferência. O órgão traz a análise de cientistas do mundo todo e informa sobre o caos que já se instalou em todos os sistemas que sustentam a vida na Terra.
A hora é de agir, segundo cientistas que dizem já terem feito o seu trabalho, e agora cabe à comunicação fazer o seu. Enquanto os jovens vão às ruas pelo clima e pelo próprio futuro, os governos continuam negociando metas com os mercados como uma razão meramente contábil – através da precificação da natureza, como se fosse possível trazer de volta o equilíbrio vital desperdiçado dos ecossistemas com simples trocas financeiras. Nessa teia complexa, olhamos para o jornalismo e pensamos em como qualificar o debate público sobre estes temas.
Quando houve a divulgação do relatório do IPCC em agosto de 2021, observamos que “neste tema específico […] a chamada imprensa tradicional tem um maior espaço e ganha maior projeção. Os sites mais alternativos não retornaram como os primeiros em relevância”. No entanto, poucos deram enfoque ao tema da justiça climática, que emerge como fundamental para a definição nítida de acordos entre governos e grandes empresas para um caminho de real transformação social.
A crítica se dá também ao conteúdo da cobertura que, mesmo usando a COP26 como mote, em geral, carece de “[…] abordagens sobre os problemas e soluções estruturais diante da emergência climática”. Por outro lado, “algumas lacunas são supridas através da comunicação produzida pelos próprios grupos vítimas da injustiça climática, através das redes sociais.”
A equipe produz debates e conhecimentos disponíveis em artigos científicos, teses, dissertações e e-books, considerando maneiras em que o jornalismo possa ser um aliado à transição justa em nossa sociedade. Vale consultar a bibliografia no site do grupo, com destaque à publicação recente do “Minimanual para a cobertura jornalística das mudanças climáticas”.
Na observação mais detida da cobertura jornalística, de forma geral, podemos tecer três críticas quanto à forma e conteúdo. Em primeiro lugar, é preciso pensar que o Jornalismo, ao privilegiar apenas a temporalidade presente (e não futura, impedindo se pensar em futuros coletivamente), associando-se à repercussão de fatos, pouco se atém a problemáticas de continuidade, o que certamente é o caso da superexploração dos bens naturais – e da emergência climática como um todo.
Em segundo, na escolha das fontes, quando predominam as oficiais e, entre elas, os cargos do topo, e somente dos grupos sociais político, econômico e científico. No caso dos governos, isso é significativamente preocupante, porque com frequência os cargos técnicos que detém maior constância no setor público, possuem informações mais verdadeiras. Por exemplo, o pré-candidato à presidência, Eduardo Leite (PSDB), teve o seu discurso para a COP26 festejado pela imprensa em geral e, somente um blog divulgou o desmentido graças aos servidores do estado do Rio Grande do Sul, desmascarando a conversa fiada do governador gaúcho.
Em terceiro, a angulação das reportagens que se propõem a trazer os questionamentos desde outros saberes, o faz de forma minorizada e parcial. Justamente o oposto do discurso da imparcialidade, como apontou o jornalista Eric Terena em live recente: “Não se fala sobre população indígena, sobre os problemas, sobre o cotidiano, na imprensa tradicional, só lembram da cultura, do comportamento. Vejo que a imprensa quer ser imparcial sendo parcial. Tenho que falar hoje sobre as leis que afetam diretamente os nossos territórios e quem vai falar é quem assume a pauta e o compromisso, ou seja, são os povos indígenas, são os povos quilombolas.”
Finalmente, não é que a imprensa em geral não se dê conta, como José Henrique Mariante mostrou a opção da Folha de São Paulo, ao privilegiar um espaço cinco vezes maior à ESG do que à cobertura da COP26. E, em resposta à pergunta título do colunista, “Se a ameaça ao planeta é real, por que os jornais não compram a briga?”, parodiamos a definição dele quanto à maquiagem verde sobre os anúncios do governo brasileiro, porque entendemos que jornais da imprensa corporativa fazem um “journalismwhashing”, tipo uma maquiagem de jornalismo. Enquanto exercem a sua parcialidade em favor das corporações e grandes empresas alinhadas aos setores que mais emitem gases de efeito estufa, como o agronegócio associado ao desmatamento, apresentam-se como jornalismo, porém sem praticar uma escuta ativa, aberta à pluralidade de fontes outras. Neste sentido, trazem apenas uma falsa aparência de jornalismo porque não contemplam os interesses de todos os povos, especialmente quanto à emergência climática.
*Integrantes do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental – UFRGS/CNPq.
Imagem: Captura de tela de publicação da Deutsche Welle.
Por Ângela Camana*
O encerramento oficial da 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática (COP26), adiada pela crise sanitária em 2020, foi na última sexta-feira, dia 12 de novembro. Realizada em Glasgow, na Escócia, as expectativas globais eram altas: a COP26 prometia delimitar como poderão ser cumpridas as metas estabelecidas pelo Acordo de Paris. Quanto aos pactos estabelecidos, ainda é cedo para afirmar se poderão exceder o “blá-blá-blá” das principais lideranças mundiais, como provocou a ativista sueca Greta Thumberg. Encerrada a quinzena do evento, ainda que o texto final do evento não tenha sido – até o momento da redação deste comentário – publicado, já é possível ponderar sobre o tom adotado na cobertura da imprensa sobre a conferência e sobre as mudanças climáticas.
Lembro que entre 2009 e 2012 este grupo de pesquisa desenvolveu uma ampla pesquisa sobre a cobertura das COP15 e16, avaliando publicações na imprensa de referência brasileira e portuguesa. Naquela ocasião, identificamos que o jornalismo não era capaz de exceder o discurso ecotecnocrático, privilegiando fontes oriundas dos campos políticos e econômico. Conclusões semelhantes foram delimitadas por pesquisas de mestrado e doutorado defendidas por membros de nossa equipe. Nossas investigações avaliam que as coberturas das cúpulas sobre mudanças climáticas sempre foram marcadas por um otimismo tecnológico, com reportagens que exaltam iniciativas da indústria e do mercado – como os créditos de carbono, por exemplo – como soluções para as transformações globais. Nesse sentido, esta pauta amplamente financeirizada ocupava-se de escutar chefes de Estado, grandes empresários e, quando muito, cientistas.
Imagem: Captura de tela do podcast da Folha de S. Paulo.
Há uma década, este tipo de debate só seria acessado por meio de canais alternativos e de comunicadores independentes – que, aliás, seguem fazendo um trabalho de qualidade, como é o caso de Sabrina Fernandes e da Mídia Ninja. A cobertura da imprensa de referência sobre a COP6 parece estar experimentando um momento de virada: o tom predominante já não é de fascínio tecnológico, nem guiado unicamente por soluções financeiras. Do contrário: esta é justamente acrítica que fez o podcast Café da Manhã, produzido pela Folha de S. Paulo, no dia 12 de novembro, fez às discussões travadas na cúpula. O título do episódio é sugestivo: “COP26: a força da grana nas questões do clima”. Isto me parecia impossível há uma década. Talvez eu esteja sendo demasiada otimista, é verdade. Mas quero acreditar que a inclusão de novas pautas, fontes e temáticas não são apenas reflexo de mudanças editoriais pontuais, mas um sinal de que jornalistas e veículos, alertas à urgência climática, estão assumindo seu papel diante do interesse público. Convido os leitores e as leitoras a fazerem o mesmo.
* Jornalista e socióloga. Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisadora colaboradora no Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental e no grupo de pesquisa TEMAS – Tecnologia, Meio Ambiente e Sociedade. E-mail: angela.camana@hotmail.com.
Imagem: Reprodução da edição de 3 de novembro de 2021 da CNN Brasil.
Por Carine Massierer*
A importância do ser humano e da espécie humana em seu habitat nunca esteve tão em xeque. Na semana passada, o artista indígena Jaider Esbell foi encontrado morto em seu apartamento, em São Paulo, e a notícia foi repercutida em publicações impressas, em rádios, nas emissoras televisivas e na internet. A causa da morte segue desconhecida. O artista plástico, que pertencia à etnia makuxi, assentada na reserva indígena Raposa Serra do Sol, também se destacava como escritor, ativista e educador.
Natural de Roraima, Esbell foi reconhecido lá fora, no exterior, a ponto de o Centre Pompidou adquirir duas obras suas recentemente, como contou sua marchande Socorro de Andrade Lima, da galeria Millan, que representava o artista, ao Correio Braziliense.
Até final de outubro, sua instalação “Entidades” (que apresentava duas cobras infláveis gigantes) esteve no Parque Redenção, integrando a programação do 28° Porto Alegre em Cena. Suas obras também estão na mostra coletiva “Moquém_Surarî: arte indígena contemporânea”, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), durante a 34ª Bienal de São Paulo que vai até final de novembro.
A matéria da CNN sobre tal acontecimento nos traz uma reflexão. Assim como outras publicações, essa também apresentou apenas o fato, a notícia do falecimento de um indígena que ganhou expressividade e reconhecimento público. E, independentemente da causa, trata-se da morte de mais um indígena e do enfraquecimento das lideranças e dos representantes sociais dos povos tradicionais. A imprensa tem feito seu papel noticiando, mas é preciso ir além, como fez a Agência Pública, em final de outubro, ao publicar uma entrevista da antropóloga Lúcia Helena Rangel, que coordenou o relatório do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
Imagem: Reprodução da publicação de 28 de outubro de 2021 da Agência Pública.
Com base no acompanhamento contínuo feito por missionários espalhados em todo o Brasil e em uma série de dados oficiais, o CIMI detectou que, desde 2015, não havia tantos registros de violência contra indivíduos e territórios indígenas. Em 2020 foram pelo menos 182 vítimas conhecidas, número recorde em 25 anos. Ao todo, os homicídios de indígenas tiveram um aumento de mais de 60% na comparação com o ano anterior, 2019.
Com este levantamento é possível perceber que as vidas indígenas importam e que os povos tradicionais estão desprotegidos. O jornalismo, enquanto parte de um sistema de informação pública, deveria, ao menos, dar mais expressão à cultura indígena e seus representantes não só em momentos onde o factual impera, como no caso da morte de Esbell, mas ampliar e diversificar a cobertura para que a população entenda que eles estão sendo historicamente dizimados.
*Carine Massierer é jornalista, mestre em Comunicação e Informação pela UFRGS e integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS).
O assunto não poderia ser outro: teve início, neste domingo (31), a 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática (COP26), adiada por conta da pandemia, e que visa atualizar as metas de redução de emissão de CO2, tornando-as mais ambiciosas para conter a emergência climática em curso. O objetivo final, como firmado desde o Acordo de Paris em 2015, é limitar o aumento de temperatura do planeta para no máximo 1,5 °C em relação aos níveis pré-industriais — esta marca, já considerada inviável por muitos, poderia ser flexibilizada para 2 ºC num cenário ainda otimista para o atual estágio de emissões, embora incerto em suas consequências. Nas palavras de Patrícia Espinosa, chefe da Convenção do Clima, “é muito mais do que meio ambiente, trata-se de paz”, noticiou o jornal O Globo.
Os resultados da conferência serão avaliados nos próximos dias, bem como a cobertura da imprensa. Já nos preparativos para o encontro, destacamos a atuação d’O Globo, que promoveu um “Especial COP-26”. Foi também o único jornal que destacou a conferência na capa da versão impressa de domingo, e ratificada no editorial — Folha de SP e Estadão, embora tenham publicado matérias nos últimos dias, foram mais tímidos no destaque. A matéria de capa introduz os desafios e especificidades da COP26 (por exemplo, a primeira revisão das Contribuições Nacionalmente Determinadas, NDCs), com foco na situação de EUA e China, os dois principais poluentes. Acompanha, na mesma edição, esta reportagem que apresenta, em gráficos, o histórico de emissões, de aumento na temperatura etc., evidenciando a necessidade de maior ambição — e ação efetiva, por óbvio — dos países.
Um dia antes do início da conferência, o jornal havia publicado uma matéria visando elucidar, para o público, as expressões e jargões utilizadas no debate ambiental. A iniciativa de apresentação dos termos é importante por si só, mas também parece sintoma de um problema maior: o “descolamento” do público com o debate climático de uma maneira geral, permeado de “juridiquês” e “numerês” ambiental, que cumpre apenas parcialmente a função informativa do jornalismo diante do maior desafio do século. Aliado a estes problemas, há o infeliz diagnóstico de que o gancho das conferências da ONU permanece em boa medida sendo condição necessária para o destaque, em primeira página, do jornalismo ambiental.
Não se trata de criticar as boas matérias que elucidam, cientificamente e politicamente, as preocupações e o cenário envolto às grandes conferências. O ponto é requisitar, de forma complementar, que outras reportagens no dia a dia tragam o tema à tona, e numa perspectiva mais próxima ao cidadão. Segue o exemplo desta matéria, também d’O Globo, abordando a ameaça que paira sobre o litoral brasileiro por conta das mudanças climáticas e da histórica ocupação urbana. O gancho é o aumento de obras em orlas de cidades como Balneário Camboriú e Fortaleza, como o alargamento da faixa de areia, e alguns dos impactos imprevistos das intervenções; a matéria ainda aborda a publicação do MapBiomas, semana passada, que o país perdeu 15% de sua área costeira desde 1985. Se o “numerês” e o “juridiquês” da grande pauta climática é importante, a pauta localizada — desde que atenta às mudanças climáticas —, passa a ser o seu complemento imprescindível para comunicar a emergência climática em curso.
*Jornalista, doutorando em Sociologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ) e mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). E-mail: michelmisse93@gmail.com.
Na última terça-feira, dia 21 de setembro, durante discurso na abertura da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), mais uma vez, tivemos uma autoridade pública à serviço da disseminação de informações descontextualizadas e manipuladas para endossar sua própria realidade. O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, exagerou, tirou do contexto e pronunciou inverdades a respeito do meio ambiente, conforme checado pelo Fakebook.eco, uma iniciativa de checagem dos fatos do Observatório do Clima.
A produção de conteúdos descontextualizados ou criados com a intenção de enganar e gerar confusão no público não afeta apenas a área ambiental, mas se expande por todos os setores da nossa sociedade. Tal fenômeno foi chamado pela Organização Mundial da Saúde (2020) de infodemia, já que gera dificuldade na distinção entre as informações verdadeiras e as falsas, e deixa dúvidas sobre em quem devemos realmente confiar.
As distorções sobre o desmatamento e as queimadas na Amazônia, apresentadas nos discursos do presidente na ONU, integram a lista das mais de 30 violações de direitos humanos e retrocessos propagadas nos mil dias pelo governo de Jair Bolsonaro, divulgada nessa sexta-feira, dia 24, pela Anistia Internacional. Não há mais lugar ou contexto que restrinja a circulação de palavras enganosas – ao contrário, parece que, se pronunciadas em espaços respeitáveis, ganharão, automaticamente, estatuto de confiáveis. Afinal, quem ousaria, publicamente, mentir para o mundo todo?
Diante de tal problema, que se intensificou com a postura do governo de descredibilizar o trabalho da imprensa e de tentar reduzir a questão ambiental a um aspecto ideológico, o que o jornalismo pode fazer? Já não são apenas por mensagens via aplicativos e redes sociais que nos chegam as mentiras, mas elas são propagadas pelos próprios meios de comunicação, ao dar espaço para as fontes emissoras de desinformação. Até que ponto reproduzir os discursos dos responsáveis pela infodemia é serviço público? Como não normalizar o problema e, ao mesmo tempo, reduzir a visibilidade desses propagadores?
Profissionais da área estão aprendendo a combater a enxurrada de distorções com agências, editorias e matérias baseadas na verificação dos fatos (ou fact-checking). A ênfase sobre a repercussão negativa das mentiras ditas pelo presidente apareceu em grande parte dos veículos, como IstoÉ, G1, Estadão, Folha de S. Paulo, Veja – só para citar alguns, e também rendeu manchetes internacionais que em nada beneficiam nosso País. Porém, ainda é difícil saber se essa abordagem contribui para a redução da circulação ou interfere na credibilidade do que já foi falado.
Mais do que os veículos jornalísticos enfatizarem a checagem das informações, seria preciso que a infodemia fosse vista como um problema social, que fosse enfrentado por todos, inclusive com políticas públicas. Fomentar um olhar crítico sobre os conteúdos, que muitas vezes reproduzem o formato dos produtos jornalísticos, é algo que se mostra urgente e necessário para que as evidências científicas não sejam contestadas e para que possamos avançar no debate sobre as crises que ameaçam o futuro da humanidade.
* Jornalista, doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Vice-líder do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS).
Imagem: Captura de tela – Versão digital da sexta e última parte do especial escrito por João Moreira Salles publicada na edição de abril de 2021 da revista piauí
Por Roberto Villar Belmonte*
O especial Arrabalde foi publicado em seis edições da revista piauí como um dossiê, formato de texto jornalístico do gênero interpretativo. Os artigos – “resultado de dois anos de pesquisa e cinco meses de apuração diretamente na região Norte” – de autoria de João Moreira Salles, editor fundador da publicação, poderiam também ser classificados como grande reportagem seriada, ensaio jornalístico, reportagensaio ou reportagens atravessadas, como diria Eduardo Geraque (2006).
Juntando as seis partes publicadas nas edições mensais da versão impressa da piauí, de novembro de 2020 até abril de 2021, o especial ocupa 77 páginas: 49,5 delas com texto, 7 com ilustrações e 20,5 com anúncios da Natura, da Vale, do Itaú e da Agropalma. Moreira Salles destrincha relatos históricos, pesquisas econômicas e estudos ecológicos sobre a floresta amazônica e mobiliza uma quantidade surpreendente de fontes (mais de 70 entrevistados), com destaque para personagens do Pará.
O principal objetivo da apuração de fôlego empreendida por Moreira Salles é mostrar que o modelo de desenvolvimento para o bioma, que ocupa metade do território nacional, precisa levar em conta uma economia florestal baseada em produtos nativos. “As forças que avançaram sobre a floresta nunca tentaram compreender a real vocação da mata, aquilo de que ela é capaz. O processo de ocupação da Amazônia pode ser entendido como um grande fracasso epistêmico.” Resgatando relatos históricos sobre a região, o autor identifica três estratégias narrativas: um adjetivismo apoteótico, um panteísmo mágico e um derrotismo fatalista. Ele busca um outro caminho para tecer seus artigos, o da bioeconomia como oportunidade de negócio sustentável.
A ocupação da Região Norte lembra a conquista do oeste dos Estados Unidos, com uma grande diferença, observa Moreira Salles, aqui “não desenvolvemos uma épica amazônica para compartilhar entre nós”. Faltou construir, ressalta, uma Amazônia simbólica. “Exercermos uma espécie de colonialismo indiferente, ocupamos sem querer conhecer.” O Brasil optou por destruir muito em troca de pouco e a um custo imenso, denuncia entre relatos sobre a importância da diversidade biológica para a sobrevivência dos ecossistemas. A imagem que o repórter presenciou subindo a BR 163 de sete bois em linha para resistir ao calor na sombra de um tronco solitário de árvore sintetiza o modelo predatório que já devastou pelo menos 1/5 da floresta.
A entrevista que fez com Robert Schneider, economista aposentado do Banco Mundial, é um ponto alto da série de artigos, pois Moreira Salles esmiuça com ele o relatório Governo e Economia na Fronteira Amazônica que publicou em 1995 mudando a maneira de compreender a destruição do bioma. “‘Mineração de nutrientes’ foi a expressão criada por Schneider para nomear a extração não sustentável de nutrientes do solo florestal mediante corte e queima da vegetação, com o objetivo de abrir espaço para a lavoura e a pecuária extensiva.” O engenheiro agrônomo e pesquisador Adalberto Veríssimo, do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), participou da conversa, e aparece em outras partes do dossiê.
“A cultura do boi produz uma estética, um gosto, define hábitos, uma identidade, formas de enxergar a realidade. Em regiões como Paragominas, o agronegócio é muito mais que uma atividade econômica. É um modo de estar no mundo que une jovens e velhos, modernos e arcaicos, liberais e conservadores, além, é claro, de reacionários. É a cultura hegemônica que os vitoriosos impuseram à Amazônia. São as cabines duplas, os adereços taurinos nos para-choques das picapes com tração nas quatro rodas, os rodeios, a música sertaneja, a glorificação do cavalo e a submissão do boi, as feiras agropecuárias, a brasa e o churrasco. Em suma: o contrário da selva, a sua negação.”
Entrevistando Ester Ymeriki Kaxuyana com ajuda da filha Vaneusa, de 20 anos, Moreira Salles conta a saga do povo Kaxuyana desterrado por causa de epidemias e ações missionárias. Depois apresenta os Sakaguchi, imigrantes japoneses de Tomé-Açu, município localizado no nordeste do Pará, que adotaram o sistema agroflorestal como uma forma de fazer a agricultura trabalhar com a floresta, não contra ela. “É outro modo de fazer as coisas, ou outro modo de estar no mundo. A mecanização é difícil, por exemplo. A diversidade de espécies exige não apenas uma competência, como as monoculturas, mas várias, tantas quanto forem as plantas ali presentes. É uma agricultura para artesãos, não para industriais.”
A narrativa em prol da bioeconomia é apoteótica no final. “Levada adiante, a ideia de um Brasil que retira do seu patrimônio natural, e da Amazônia em particular, o fundamento de sua identidade e de seu destino, que transforma o arrabalde em nossa casa, por assim dizer, impõe ao país uma tarefa magnífica. No limite, a de desenvolver em terras brasileiras o Vale do Silício da biodiversidade.” Moreira Salles percebe seu tom utópico e termina assim o dossiê: “Pouco importa se o objetivo é fantasioso e difícil de alcançar. O que importa é o rumo. Para um país que sempre sonhou baixo, é uma linda ambição, apta a evitar que, no futuro, uma criança olhe para um mogno e aprenda que está diante de uma pilha de tábuas de compensado”.
Assim como o documentário No Intenso Agora, de 2018, considero o dossiê da revista piauí chamado Arrabalde (2020/2021) uma obra de referência do cineasta, editor e (agora também) repórter João Moreira Salles. Um jornalismo ambiental de profundidade sobre futuros possíveis para a nação brasileira.
Referência:
GERAQUE, Eduardo Augusto. Reportagens atravessadas: um mergulho, via Teoria Geral dos Sistemas, na cobertura da poluição atmosférica feita por jornais brasileiros e mexicanos. Tese (doutorado). 2006. 243 f. Programa de Pós-Graduação em Integração na América Latina, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.
*Roberto Villar Belmonte é jornalista, professor e pesquisador dedicado à cobertura ambiental. Membro do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS).
No dia 9 de agosto de 2021, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) emitiu um dos mais completos e conclusivos relatórios sobre a grave crise ecológica e planetária que enfrentamos. O documento tem mais de 3 mil páginas que foram escritas por aproximadamente 200 cientistas oriundos de 60 países diferentes a partir de anos de pesquisa sobre o tema, citando mais de 14 mil estudos que dão base às conclusões feitas.
Após apenas um mês de emissão do relatório, o jornal Zero Hora (ZH) publicou um infeliz artigo de opinião de Flávio Juarez Feijó chamado “Aquecimento Natural”. Apesar de ser geólogo e ser mestre em geociências, Flávio foi abraçado pelo jornal da capital gaúcha por suas opiniões descabidas que não possuem nenhum embasamento científico.
Nesse artigo aprovado por ZH, ele ousou em dizer que o relatório do IPCC é alarmista e que tem como meta o impedimento do crescimento de países subdesenvolvidos como o Brasil. Como supostos argumentos científicos, afirma que as mudanças climáticas atuais fazem parte de um ciclo natural da terra e que não é necessário reduzir nenhuma emissão de gases de efeito estufa. Ainda, opina que as metas de carbono zero fariam a sociedade voltar a andar a cavalo e que a agricultura do nosso país voltaria a ser movida por arados a boi.
Em letras miúdas quase imperceptíveis ao(à) leitor(a), o jornal ZH escreve no rodapé da página do artigo: “Os textos não representam a opinião do Grupo RBS”. Contudo, essa não é a primeira vez que ZH abraça as opiniões de Flávio, já que publicou outro texto do geólogo em 2018 chamado “descarbonizar não é preciso”. Neste texto, sem nenhuma referência científica, diz que o derretimento das geleiras não acrescentaria uma “gota no oceano”, que o gelo da Antártica está protegido e que o nível do mar não irá subir. Ainda assim, não se contém e diz que, caso várias áreas do planeta derretam devido ao “aquecimento natural”, deve-se aproveitar as “benesses” do contexto e criar novas rotas de navegação e vastas áreas de agricultura (!).
Não é preciso dizer mais nada para afirmar que escolhas editoriais como essa são perigosas e devem ser apontadas como tal. Pequenas notas em rodapé não devem justificar a falta de responsabilidade de veículos de comunicação para com a pauta do colapso climático. É importante dizer que essas escolhas estão sendo feitas por muitos jornais brasileiros, como Folha de São Paulo, que publicou um péssimo texto de Leandro Narloch chamado “Negacionistas e aceitacionistas se equivalem na reação histérica contra quem questiona seus dogmas”. A publicação foi feita apenas 8 dias depois da emissão do relatório do IPCC e apenas 3 dias após manifestação do ombudsman da Folhacontra o mesmo colunista.
Esse pronunciamento do ombudsman só ocorreu devido à grande polêmica que os diversos textos negacionistas de Narloch causaram na opinião pública através das redes sociais. Por isso, devemos nos manter alerta às decisões editoriais como as de Zero Hora e nos manifestarmos criticamente para que o jornalismo brasileiro não aja como se o colapso climático fosse questão de opinião.
*Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e mestrando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da mesma universidade.
Em dois meses, estaremos na metade da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP-26 (entre 1º e 12/11/2021), na Escócia. O acontecimento vai exigir dos países a apresentação de metas de redução das emissões dos gases de efeito estufa que sejam coerentes com o contexto do Antropoceno. Neste percurso, as notícias jornalísticas de meios de referência (como a Folha, o Estadão e o Valor Econômico) já persuadem leitores a respeito da produção de hidrogênio verde (H2V) com fontes renováveis (usinas eólicas e solares, mas também nucleares).
Essa persuasão, basicamente, se nutre de duas justificativas. A primeira é possibilitar a descarbonização global dos setores produtivos que mais poluem: siderurgia e mineração; indústria química; transporte aéreo e rodoviário (especialmente o de cargas pesadas); geração de eletricidade; produção de amônia e fertilizantes para agricultura. A segunda é atender às demandas de consumo dos países desenvolvidos, como Alemanha e França, entre outros europeus, e os Estados Unidos, ou seja, de importar H2V de modo a manter suas economias ativas. Os links, nas palavras em destaque neste texto, conduzem às notícias que basearam a nossa análise.
Segundo as notícias, o Ceará, através do Complexo Industrial e Portuário do Pecém, está mais avançado nos acordos com megaempresas transnacionais: a Enegix e a White Martins e, recentemente, com a EDP. Na sequência, o Rio de Janeiro tem memorando assinado com a Fortescue pelo Porto do Açu. Soubemos por outros meios, que Minas Gerais e Rio Grande do Sul também estão na disputa pela atração de investidores aos nominados hub’s de hidrogênio. Tanto os executivos como as megaempresas seguem os princípios da ESG (Environmental, Social e Corporate Governance) através das chamadas boas práticas ambientais, sociais e de governança corporativa. Contudo, não deixam claro como essas práticas vão frear a devastação da natureza e os consequentes efeitos da mudança do clima, já que a exploração capitalista vai continuar voraz sobre os territórios. Esta problematização tampouco é feita pela Folha e pelo Valor Econômico, que reportam em espaços específicos essas iniciativas no âmbito da ESG, como o hidrogênio verde, além da cobertura nas editorias convencionais. Age igualmente o jornal O Estado, que nomeou o espaço como Retomada Verde.
Se considerarmos o jornalismo como mais uma forma de conhecimento, assim como os teóricos Robert Park (1864-1944), Adelmo Genro Filho (1951-1988) e Eduardo Medistch, a reprodução das informações obtidas através das fontes oficiais não adere ao princípio do jornalismo de atendimento ao interesse público. Não por ter faltado o contraditório nas notícias, mas sim, pela restrita abordagem economicista/crematística, como se essa visão de mundo (particular) fosse universal no nosso país, um dos mais megabiodiversos (tanto em termos ecológicos como socioantropológicos). Um exemplo disso, a dramática questão da água no país reportada como “oportunidade de investimento em meio à crise hídrica e perspectiva de escassez no futuro” por O Estado.
De modo semelhante, notícia da Folha destacou o que seria uma boa prática ambiental pela Embraer através do “primeiro voo com um avião elétrico produzido pela fabricante no Brasil”. O detalhe é que o modelo Ipanema é “usado para pulverizar lavouras com pesticidas”. Até aqui, as notícias indicaram a proposta do norte global de descarbonizar os oligopólios econômicos como a licença que vai possibilitar o neoextrativismo no sul. O presidente da Siemens Energy na América Latina, Tim Holt, disse: “Todos os países [da América Latina] estão em ótima posição [para o hidrogênio verde], pela abundância de recursos renováveis, hídrico, solar e vento. Na Europa, não temos recursos naturais para produzi-lo em quantidade suficiente para todo o consumo. Então, temos a política de apoiar ativamente outros países, como Chile e Colômbia, para criar oportunidades de produção e exportação”.
Em 7 de setembro de 2020, O Estado exaltava “o potencial” e “a vocação” do Brasil para produzir hidrogênio verde enquanto explicava o processo de eletrólise da água. Que nesta semana da pátria possamos considerar tudo o que está em jogo nessa produção e na exportação do hidrogênio verde pelo Brasil. Só encontramos um texto [ainda que não jornalístico] contemplando os interesses das comunidades locais e populações dos países do nosso continente. Segundo Maximiliano PROAÑO, como a produção de H2V depende de eletricidade e água (sendo este o bem comum essencial à vida), o risco de escassez hídrica e seca nos territórios precisa ser avaliado. Além disso, alerta que utilizar água dessalinizada como alternativa à doce vai interferir na temperatura da água do mar, reduzindo o oxigênio e provocando graves danos à vida aquática. Esse é um relevante apontamento em meio à crise hídrica e energética que vivemos no Brasil, visto que há previsão de apagões no fornecimento de água e eletricidade dentro de um ano se não forem tomadas medidas adequadas.
Por tudo isso, acreditamos na prática jornalística como forma de conhecimento (produtora e reprodutora) sob princípios da ética cidadã diante dos bens comuns. No caso do H2V, cuja tecnologia está em desenvolvimento, incorporar o princípio da precaução pode fazer a diferença na interpretação sobre os fatos e os respectivos discursos. Recente artigo do nosso Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental concluiu que a “aplicação da ideia de precaução está ainda distante da discussão jornalística na academia e nas redações, apesar de todos os sinais de que estamos vivendo uma crise ambiental sem precedentes”.
*Eliege Fante é jornalista e pós-graduada pela UFRGS em Comunicação e Informação. Integra o Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS) e é associada ao Núcleo de Ecojornalistas (NEJ-RS). E-mail: gippcom@gmail.com.
Imagem: Projeção em prédio de Brasília na semana da mobilização indígena contra o Marco Temporal. Do perfil no Instagram @projetemos.
Por Reges Schwaab
Foi adiado para esta semana o que é considerado o julgamento mais importante dos últimos trinta anos para os povos indígenas. A tese do “marco temporal” prevê que os povos indígenas só teriam direito à terra se estivessem sobre sua posse no dia cinco de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Ou precisariam comprovar uma disputa judicial ou um conflito pela área na mesma data.
O marco temporal e sua defesa expõem uma perspectiva perversa, achatada, contrária à alteridade. São cortadas dela a racionalidade ambiental, a consciência histórica e a centralidade do outro como balizadores da vida em comum. O fator ambiental desconsiderado pelos seus defensores também extingue as possibilidades de diálogo compreensivo e a necessidade de reparação histórica aos povos originários. No lugar, como vimos acontecer tantas vezes, vêm as sementes modificadas pela lógica da terra como propriedade, um objeto a ser explorado. Por séculos, os indígenas foram massacrados e expulsos de seus espaços. Só esse grave fator já invalida a defesa do marco temporal. Mas temos outros elementos. É notório que a permanência dos indígenas em seus territórios é garantia de preservação e conservação ambiental. Além disso, a cultura desses povos é desenvolvida a partir de um conhecimento que interliga profundamente seu modo de vida ao ambiente, uma inteligência autônoma e radical, uma das raras chaves para a autêntica ação diante do cenário de crise ambiental que vivemos. Preferimos devastá-los em lugar de compreendê-los, entretanto.
Quando o jornalismo insiste em faltar, é preciso dar a manchete na rua, como na projeção flagrada na imagem acima. Termos seis mil indígenas mobilizados em Brasília já é um acontecimento digno de acompanhamento jornalístico qualificado. Requer trabalho de reportagem e exploração das distintas compreensões sobre o tema. Em vez disso, lemos novamente um jornalismo calado diante do complexo, e guiado pelo patrocínio do agronegócio em seu interesse pela posse de todos os terrenos possíveis.
Em páginas duplas no primeiro caderno da edição de 22 de agosto, O Estado de S. Paulo mostra o tom: Julgamento do STF pode afetar propriedades de todo o Brasil. Nele, assim como em outros meios de referência, durante a semana em que o julgamento deveria começar, indígenas nunca foram protagonistas da sua própria questão e nem vozes para contar como sua própria história poderia ser acolhida. A violência contra os povos originários se capilariza de muitas formas no Brasil, e emerge forte no discurso, especialmente porque ainda está nos jornais uma capacidade de circulação desses dizeres. No centro da construção de sentidos sobre o ambiental, para o avanço do capital na colonização do imaginário, temos visto que não há limites. As parcerias pagas em jornais e canais informativos se ampliam, em que pese o fato de que toda cobertura já é, há tempos, acentuada pelo modelo de agronegócio como único caminho, não importa a temática. Como este mesmo Observatório já comentou tantas vezes, patrocínio, pagamento por conteúdo, falta de pluralidade de fontes estão entre os fatores que contaminam a produção jornalística, desconfiguram sua narrativa, fazendo emergir um simulacro de produção informativa, sem contrapontos e sem debate.
Além da negativa de espaço a uma narrativa mais completa, temos de evidenciar a ausência de um gesto anterior ao fazer jornalístico. Seis mil indígenas estiveram em Brasília, mas o jornalismo, em geral, não quis falar com eles, não teve tempo para escutá-los em sua temporalidade e, por isso, não considera o conhecimento originário, a visão de mundo desses povos, nem seus direitos. Ver as falhas no diálogo entre as distintas vozes permite um olhar crítico ao que o jornalismo oferece em acontecimentos históricos cruciais. Além disso, permite recordar de um apagamento histórico de muitos sujeitos, da desconsideração do outro e do meio ambiente, dois dos elementos de sustentação das sociedades democráticas e sustentáveis.
O próprio julgamento do STF, que deve ser estendido por várias sessões, tem uma temporalidade distinta da temporalidade indígena, ou de uma temporalidade humana, da urgência da vida. Há, inclusive, apostas na demora como modo de esvaziar a mobilização. A temporalidade jornalística é, igualmente, distinta de ambas, especialmente a dos povos originários. A história, a cultura e a cosmovisão desses povos não cabem em nossas páginas tão apressadas. O jornalismo adianta a resposta e prefere logo fechar questão no que considera o ideal.
O desrespeito e a negativa em abrir-se a uma compreensão dos indígenas deve seguir sendo criticada. É preciso lembrar que só pela alteridade podemos estabelecer o espaço comum, conviver e avançar de modo igualitário. É o que a filosofia nomeará como o gesto do reconhecimento. O outro como o compromisso primeiro para a comunicação e o jornalismo, tendo a alteridade como projeto para a produção do conhecimento, é inegociável, não parece haver outro caminho para trabalhar as crises do nosso tempo. Que história cada um desses seis mil indígenas poderia reportar? Que encontro seus relatos poderiam nos proporcionar se não fosse oferecida apenas a cobertura protocolar? E se pudéssemos, a partir do gesto do reconhecimento, escutá-los e aprender a dizer com eles?
O rosto do outro me afirma e torna minha própria existência humana ao solicitar-me uma escuta e, ao mesmo tempo, uma palavra. Sob esse aspecto, o dizer estabelece uma relação entre duas liberdades, afirmando a identidade dos interlocutores. Nos reconhecemos quando interpelados pelo rosto do outro: não se trata de submissão, mas de um comando ou apelo feito de uma identidade à outra. O rosto, o humano, abre uma fresta na casca do ser, tornando-o refém do outro, do estrangeiro que bate à nossa porta. A exposição ao outro define as identidades e faz com que o outro se torne importante, vital para a existência do eu (MARTINO; MARQUES, 2019, p. 35).
Referência:
MARTINO, Luís Mauro Sá; MARQUES, Angela Cristina Salgueiro. A comunicação como ética da alteridade: pensando o conceito com Lévinas. Intercom (SÃO PAULO. ONLINE), v. 42, p. 21-40, 2019.
O Governo Bolsonaro, como as publicações deste Observatório indicam, tem sido de intenso ataque ao ambiente a aos direitos humanos no Brasil. Para além do desmatamento recorde e do desmonte de políticas públicas de conservação promovidos pela atual gestão, a imprensa também nos alerta para o recrudescimento dos conflitos ambientais envolvendo povos indígenas no país. O incentivo ao garimpo ilegal de ouro e os confrontos que dele decorrem não são novidade e já ganharam até linha do tempo em grandes portais. No entanto, nesta semana pudemos acompanhar um novo capítulo nesta escalada de violência e de descaso com a vida: os efeitos do garimpo ilegal já se fazem sentir na água, no solo, no ar e nos corpos da Amazônia.
Estudos estimam que o mercúrio utilizado no garimpo ilegal entre 2019 e 2020 excede as 100 toneladas: destas, 30% vai parar nos rios. Os peixes são a base da alimentação de grande parte dos povos indígenas amazônicos e pesquisas indicam que quatro a cada dez crianças menores de cinco anos nas regiões Yanomami estão contaminadas por altas concentrações do metal – entre os Munduruku, são seis em cada dez. Uma plataforma lançada no dia 20 de julho, o Observatório do Mercúrio, reúne diferentes pesquisas sobre a temática, além de dispor informações georrefenciadas que facilitam a identificação e correlação entre a atividade mineradora e os casos de contaminação humana e de peixes. Ainda que o assunto seja sério e exceda em muito as fronteiras amazônicas, a cobertura da imprensa em grande medida se restringiu à publicação do release produzido pela WWF, uma das instituições responsáveis pela plataforma.
Uma exceção é o bom trabalho publicado no El Pais, que situa o lançamento do Observatório do Mercúrio em uma rede de acontecimentos mais ampla, escutando pesquisadores responsáveis pelas investigações. O texto é competente ao articular o cenário de contaminação ao discurso permissivo do Governo Federal, e alerta para os riscos do PL 490, já aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, que – ao dificultar a demarcação de terras indígenas – abre margem para a ampliação do cenário de mineração. Na semana anterior, a Revista Piauí também já havia pautado a questão do mercúrio em um texto de título sagaz: Desensinando a Pescar. Bem, em um governo no qual um coordenador da FUNAI sugere “meter fogo” em indígenas isolados, recomendar a reeducação alimentar dessas populações já nem nos gera tanto espanto. Oxalá que o bom jornalismo siga se recusando a normalizar este e outros absurdos.
*Jornalista e socióloga. Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisadora colaboradora no Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental e no grupo de pesquisa TEMAS – Tecnologia, Meio Ambiente e Sociedade. E-mail: angela.camana@hotmail.com.
A jornalista Liana John (1958-2021) publicou seu último texto neste sábado, 24 de julho de 2021, um dia depois de perder a luta contra um câncer no pâncreas. Como repórter que sempre foi, ela fez questão de escrever sua própria despedida. “Não queria ir embora sem agradecer a todos”, explicou-se em comovente mensagem.
Em sua homenagem, o Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS) reproduz aqui trechos da palestra que ministrou dia 28 de setembro de 2018 em Porto Alegre (RS) durante o IV Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo Ambiental, realizado na Fabico/UFRGS.
Conheci Liana John nos encontros preparatórios para a cobertura da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Rio 92. Sempre foi uma referência profissional. Ela ajudou a consolidar o jornalismo ambiental brasileiro, como pode ser constatado em seu depoimento a seguir, registrado no evento de 2018.
Influências no início da carreira
Nessa lista, um dos meus heróis, as pessoas que eu olhava, no Estadão tinha o Rubens Rodrigues dos Santos, que depois fundou o Jornal Verde, e que era uma pessoa que falava de deslizamento, do problema que se tinha com poluição, começava a ter alguma coisa de Mata Atlântica, ainda não existia a SOS Mata Atlântica. Então o Rubens Rodrigues dos Santos era uma pessoa que no Estadão ele fazia umas matérias bem interessantes.
Tinha a Roseli Tardelli, da Rádio Eldorado, e depois ela parou de fazer jornalismo ambiental e começou a trabalhar com divulgação de AIDS, porque ela teve um irmão que morreu de AIDS, então nos anos 80 ela saiu dessa área.
Tinha a Eliana Lucena que trabalhou muito com a Funai com índios, que era uma pessoa que fazia um material muito interessante.
E eu lia bastante coisa de fora. Tinha algumas reportagens que eu gostava demais. Teve uma que era sobre as tempestades. O repórter tinha embarcado num avião, isso dos Estados Unidos, entrava na tempestade, media o tornado. Eu queria ser uma jornalista dessas. Tipo aquele que vai junto. Teve uma outra reportagem de uma revista especializada de natureza que era uma viagem pelos tepuis, entre o Brasil e a Venezuela você tem vários tepuis, no caso a reportagem era na Venezuela. Era um jornalista que acompanhava os cientistas e ia ver como é que o cara sabe que aquilo é potencialmente uma planta nova, que as pessoas não conhecem. Como é que o cara sabe. Por que o jornalista estava na expedição científica. Eu quero ser esse jornalista aí. O cara que vai lá junto. Que vai lá na Antártica. Minha mãe dizia que eu tinha nascido com rodinhas. Falou em viajar é comigo mesmo. Eu já tô arrumando a mala. A parte melhor é essa.
Meta: jornalismo ambiental
Então o meu ideal nesse início, eu estava lá na TV Tupi fazendo buraco de rua, era ser esse jornalista que vai junto com o cientista e vai descobrir junto. Vai tá lá junto no fim do mundo saber o que tá acontecendo. Eu comecei no jornalismo fazendo outras coisas. Trabalhei em uma revista de supermercados. Trabalhei nas primeiras edições do Meio e Mensagem, um jornal dirigido a publicitários. A minha meta era chegar no jornalismo ambiental.
Cheguei a escrever algumas matérias no jornal Movimento falando de índio de algumas coisas que o Movimento nem tratava. Era uma época em que a tônica econômica era o desenvolvimento. A gente teve um ministro que falou isso. Se for pra passar por cima do meio ambiente não tem importância. O que a gente quer é o desenvolvimento econômico. Estava na época do milagre econômico.
Ser do jornalismo ambiental era uma coisa que dentro das próprias redações era visto como esquisito. Era esse bando de poeta, sei lá, uma pessoa que não tinha crédito nenhum. Nos anos 1980 a gente começa a ter alguns sinais de que realmente esse desenvolvimento a qualquer preço não estava dando muito certo. Estava causando vários efeitos colaterais muito graves.
Em São Paulo, o Vale da Morte que era Cubatão, aquela concentração de indústrias poluindo uma área e tinha toda aquela população que morava ao lado das indústrias e começou a surgir casos de crianças que nasceram sem cérebro. Muito afetados pela poluição. Já não dava para esconder tão facilmente que aquele desenvolvimento a qualquer preço não estava tendo consequências.
Nesse tempo eu fui trabalhar cobrindo férias na IstoÉ, na editoria de Geral, já com o propósito de fazer meio ambiente. Em 1983. Então eu comecei a fazer isso. A primeira batalha era dentro da redação porque os editores achavam aquilo um jornalismo menor. Os jornalistas feras eram os que faziam ou política ou economia. Não era o pessoal de Geral.
Revista Veja (1984-1985)
De lá eu fui pra Veja contratada como jornalista de meio ambiente. Era complicadíssimo. […] A escola que eu tive de passar uma pauta de meio ambiente foi a reunião de pauta da Veja porque eu tinha que argumentar com o Elio Gaspari, com a Dorrit Harazim, pra provar que aquela pauta era pertinente e que deveria sair na revista semanal. Você passa a construir. Você não pode chegar assim eu acho que tem que fazer uma coisa sobre Cubatão. Eu tinha que convencer que eles tinham que me mandar pra Cubatão pra eu fazer as entrevistas, pra eu fazer uma apuração, gastar tempo pra ir lá e ver o que tá acontecendo. E era complicadíssimo porque era uma época em que as empresas não abriam dados de nada, os dados de empresa eram super fechados, os dados de governo pior ainda. Você tinha que arrancar as coisas meio de saca rolha. Eu fui várias vezes a Cubatão entrevistar pessoas da população, da área médica e tentar fazer essa conexão entre a poluição e o que a gente estava vendo de consequências, as doenças nas pessoas. Era uma coisa muito trabalhosa. Eu tenho que ter uma coisa com substância suficiente para que os editores lá concordem em publicar. Era realmente uma escola. Não posso argumentar “eu acho”. Eles tratavam como lixo. Por isso eu fui caminhando pra essa área da investigação.
[…]
Então realmente essa foi uma escola muito interessante, num ambiente interno da redação completamente avesso ao tema ambiental. Consegui emplacar algumas matérias. Trabalhei na Veja em 1984 e 1985. A minha última matéria na Veja foi sobre a primeira vez que a Nasa fez convênio com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais pra fazer um levantamento da atmosfera na Floresta Amazônica. Na época tinha muitas previsões… se a Amazônia fosse toda desmatada ia acontecer isso…. tinha muitas previsões de pessoas que nunca tinham pisado na Amazônia e só falavam abobrinha. Então a gente combinou de fazer uma matéria assim… nós não vamos falar nada sobre o que vai acontecer com a Amazônia se a floresta for desmatada. Vamos lá na Amazônia, fiquei lá 15 dias, e fiz uma série de reportagens pra saber o que já estava acontecendo nas áreas que já haviam sido desmatadas. Tinha o começo do projeto de fragmentos florestais do Thomas Lovejoy.
Eu fui entrevistá-los. Participei dos primeiros levantamentos de atmosfera baixa, abaixo de um quilômetro, na Floresta Amazônica, feitos pela Nasa com o pessoal do INPE. Entrevistei lá várias pessoas da Nasa. Foi muito interessante entrar no avião deles, saber como eles estavam fazendo todas aquelas medições. Fiz amigos, fontes que depois eu passei a entrevistar por telefone para saber que dados eles tinham tido das coletas de dados que tinham sido feitas ali.
Da Veja eu fui para o Guia Rural Abril, que estava sendo criado naquele momento, que era o Anuário. Era um editor fantástico todo voltado para a área do desenvolvimento sustentável, pra agricultura orgânica, então eu fui correr o Brasil nas Embrapas todas procurar as pesquisas que trabalhavam com uma agricultura conservacionista, uma agricultura que não fosse simplesmente botar tudo no chão. Então todo o trabalho de substituição do agrotóxico, como é que você melhora o solo, trabalhei vários anos ali, fizemos muitas coisas interessantes. E de lá eu fui pra Agência Estado. Final dos anos 1980.
Crédito: Eloisa Loose
Jornalismo ambiental científico
Esse trabalho no Guia Rural e na Veja também acho que aproximou. Não era só eu, tinha outros jornalistas que começaram a trabalhar nessa área, a tentativa de aproximar o jornalismo ambiental do científico. Como é que você vai falar que tal poluente causa o nascimento de crianças com anencefalia. Você tem que se basear em levantamentos e estudos. A gente não tinha internet na época. O fato de falar inglês, por exemplo, me facilitou muito porque todas as viagens que eu fiz pra fora eu trazia material.
[…]
Aos poucos foi com muito custo que a gente conseguiu ir passando do jornalismo bando de hippie, maluco, um jornalismo menor, para um jornalismo que tinha importância. Que podia entrar. Que podia ser uma página de jornal. Que podia dar capa. Que podia ter chamada na capa da Veja. Realmente foi um trabalho que eu considero muito importante, a reportagem e esse embasamento científico.
E também a gente ir falar com as pessoas responsáveis pela poluição. E tive entrevistas muito difíceis com donos de mineração na Amazônia. Com gente que era o inimigo. Você tinha que tá lá. Você tinha que fazer isso. Respeitando a questão de ouvir os dois lados. Porque o cara tá fazendo isso? Qual é a visão de quem está decidindo desmatar, de quem tá decidindo trocar a floresta por uma estrada? Teria que ouvir tanto os cientistas que vão embasar as consequências como aqueles que estão promovendo se não você faz um jornalismo muito parcial. O máximo de parcialidade que a gente admitia nesse jornalismo era bom eu sou a favor do meio ambiente. Isso eu sou. Agora você tem que saber do que você está falando. Você tem que ler sobre as coisas que está falando. Isso foi uma coisa dos anos 1980. Começava a existir mais jornalistas que faziam isso. A Teresa Urban mesmo era uma pessoa que trabalhava muito no Paraná com isso.
Agência Estado (1988-2003)
Do Guia Rural eu fui pra Agência Estado. […] Eu fui convidada pelo Rodrigo Lara Mesquita. Ele tinha sido presidente da SOS Mata Atlântica [criada em 20 de setembro de 1986], um dos fundadores, e na família Mesquita era um hippie verde. Era o meu interlocutor. A Agência Estado já existia dentro da empresa como uma unidade que cuidava dos correspondentes. E o Rodrigo transformou numa agência de notícias de verdade. Passou a funcionar vendendo material pra jornais regionais no Brasil inteiro, mais de 250 jornais que recebiam, e mais tarde, mais pra frente um pouco, o Rodrigo também conseguiu fazer acordos com cinco agências internacionais então o nosso material era distribuído na Reuters, em várias agências internacionais, e também a gente distribuía o material deles no Brasil.
Com isso o alcance daquilo que a gente fazia na Agência Estado foi se ampliando muito. E eu tinha no Rodrigo o meu interlocutor porque ele era uma pessoa que sabia da necessidade de pensar meio ambiente e ele tinha esse veio jornalístico que veio do pai, embora o pai sempre trabalhasse na área política e na área econômica, ele tinha esse sentido de jornalista que é nós temos grandes temas que nós precisamos trabalhar. E na área ambiental eu sentava com ele pra definir quais eram os grandes temas que nós iríamos trabalhar na Agência Estado. Como a gente tinha os correspondentes no Brasil e no exterior trabalhando para a Agência Estado, a gente conseguiu gradualmente montar vários projetos pra fazer essa discussão mobilizando os correspondentes.
Por exemplo, a gente fez uma série, que foi dos mangues do Brasil, que eu mobilizei todos os correspondentes do litoral brasileiro onde tem mangue. Então cada um produziu matérias, a gente foi orientando, a gente quer mostrar isso, que condição que estão esses mangues, quais são os principais problemas, falar da importância do mangue, falar com a área científica porque o mangue não é só um negócio mal cheiroso que a gente precisa eliminar e aterrar, mas ele precisa existir, porque aquele pedaço de mangue precisa ser preservado, precisa ser suficiente pra fazer o papel ali de berçário dos peixes. Então a gente falava da importância daquele ecossistema e falava também em que condição ele estava. Lá no Paraná, em Santa Catarina, no Amapá. Fizemos toda uma cobertura e demos isso em várias sequências. Fizemos uma cobertura de Amazônia.
A Agência Estado começou com o Rodrigo e mais quatro editores no fundo de um corredor com uma mesinha desse tamanho assim. Depois ela virou uma unidade mesmo na empresa dentro do Grupo Estado. Eu comecei nessa época que era no fundo do corredor com quatro pessoas. Mas a gente fazia e a gente foi progredindo. Um dia teve uma visita… Foi uma época que a gente começou a publicar o levantamento do desmatamento da Amazônia feito pelo INPE. Houve uma disputa entre o Estadão e a Folha porque a Folha falou uma coisa o Estadão falava outra. E eu fiquei encarregada de ir no INPE e fazer as reportagens todas.
Amazônia em chamas
Então eu tinha vários pesquisadores que eu conhecia no INPE que trabalhavam com isso e esse pesquisador o Alberto Setzer que trabalhava com as queimadas. Aí teve uma visita, porque a gente foi celebrar lá um acordo para área de meteorologia, previsão do tempo, e eu combinei com o Alberto Setzer de desviar a comitiva dos editores e levar eles pra ver as imagens de satélite que mostravam os pontos de queimadas. E fizemos isso. Vem ver uma coisinha aqui. O Alberto Setzer pôs na tela do computador. Você via ali delimitada a área da Amazônia Legal e dentro da Amazônia Legal aquele monte de pontinho que eram as queimadas. Nesse desvio que a gente fez nasceu a série que nós fizemos que era a Amazônia em Chamas.
Conexão com as fontes
Então tudo isso com o apoio enorme, eu tinha uma conexão muito grande com as fontes. Eram eles que me davam essa possibilidade de ter uma reportagem mais interessante. Eu cheguei a fazer reportagens a partir do que via no satélite ir lá e ver o que estava acontecendo lá no lugar. A gente teve uma área lá do Maranhão que foi feito monitoramento de satélite um ano, em que a cidade era um pontinho, um cruzamento de rodovias, e dez anos depois era uma mancha preta no satélite. Que diabo era essa mancha preta no satélite? Aquela cidade estava na rota do minério de ferro de Carajás pra exportação e criou guzeras, que transforma minério de ferro em ferro guza. E pra fazer isso o que eles estavam fazendo, usando carvão vegetal. Então estavam desmatando. O que a gente enxergava preto era fuligem de carvão. Que cobria a cidade inteira. A investigação… A gente podia olhar e dizer que a imagem de satélite estava meio borrada, mas a gente foi lá e viu o que que era aquele negócio preto.
Gradativamente a gente foi conquistando respeito para a cobertura ambiental. Uma cobertura já não daquele bando de hippie, mas que realmente começou a conquistar respeito.
A Rio 92
Na Rio 92 (Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento), a gente sabia dessa importância. Começamos a fazer reuniões com as pessoas. Primeiro a gente começou a produzir vários materiais, um glossário de temas ambientais para os jornalistas que não eram especializados e que seriam deslocados para a cobertura entenderem minimamente o que eles estavam cobrindo. A gente teve que dar preferência pra pessoas que falavam duas línguas. A gente teve jornalista de esporte deslocado pra fazer a Rio 92.
Na primeira reunião que a gente teve da Rio 92, de coordenação, com o Luiz Maranhão, chefe da sucursal do Rio de Janeiro da Agência Estado, no fim de 1990, início de 1991, ele queria deslocar quatro repórteres pra cobrir esse evento. Eu e o Rodrigo perguntamos se ele tinha ideia do que seria o evento. Pra vocês terem uma ideia ele queria por quatro e a Agência Estado levou 50. A gente deslocou todos os correspondentes. O William Wack era correspondente em Berlim. O Rabino (Moisés Rabinovich) era correspondente em Washington. O Paulo Sotero era em Nova Iorque. E o Reali Junior era de Paris. O Reali foi deslocado de Paris não fez nem um dia de cobertura e teve um infarto.
De 4 a gente foi pra 54 jornalistas. A gente fez vários acordos. O governo brasileiro foi transferido para o Riocentro. Além da cobertura da própria conferência a gente tinha a cobertura de Brasília que foi toda deslocada para o Rio de Janeiro. Os ministérios estavam lá. O presidente estava lá. Estava tudo lá. Estava começando o impeachment do Collor. Um acordo que foi interessante foi com a Motorolla. Eles forneceram pra gente pagers com mensagem pra testar. O que existia na época era bip. Você ligava pra uma central pra saber qual era o recado. O pager já dizia qual era a mensagem. “Oh… tá chegando o Fidel Castro, vão lá entrevistar ele”. Você recebia a mensagem em si. Não podia ainda mandar de volta, mas recebia. Eu fiquei na cobertura do evento oficial. O Riocentro é longe pra caramba de tudo. Nossa sucursal era no Flamengo, do lado do Aterro do Flamengo. A gente teve que montar um laboratório de fotos perto do Riocentro porque não tinha nada perto. Alugamos uma suíte no motel Monza com cama redonda e era o nosso laboratório de fotografia porque era perto do Riocentro. Os fotógrafos montaram lá um laboratório na banheira e revelavam os filmes. Tinha telefoto que a gente transmitia.
Outro acordo que a gente fez foi com a RNP, a Rede Nacional de Pesquisas. A sede era em Campinas. A RNP era a responsável pelo backbone da Bitnet, antecedente da Internet. A sede da RNP ficava na rua onde eu morava em Campinas. A gente conhecia o Tadau, que era o chefe da RNP, e ele tava tendo uma demanda do mundo acadêmico porque as pessoas não teriam condições de vir a Rio 92, mas queriam saber notícias. Então fizemos um acordo com a RNP. Eles colocaram uma série de tradutores lá no Instituto de Matemática do Rio de Janeiro e a gente foi repassando todas as notícias mais interessantes da Agência Estado, o pessoal da coordenação fazia uma triagem, para os tradutores que traduziam em tempo real para o inglês e colocavam na bitnet. Era só texto. Nem existia www. Fornecemos então para 180 países em tempo real o noticiário da Agência Estado para a RNP e em troca a RNP instalou no topo do prédio do Estadão lá na Marginal uma antena de micro-ondas voltada para a Fapesp que recebia o material da bitnet e a outra antena na minha casa que apontava para a Unicamp. A minha casa é bem perto da Unicamp e de lá tinha o tráfego pra Fapesp.
PERGUNTAS DO PÚBLICO
Mário Rocha: Cobertura ambiental transversal passando por todas as editorias, cobertura segmentada em cadernos e espaços específicos ou um mistura das duas coisas?
A gente já tinha na Agência e ao longo desses meus anos todos de jornalismo a gente sempre teve essa discussão da editoria especializada versus a transversalidade em todas as editorias ou da mista. Eu diria que é importante que o jornalismo ambiental seja feito por jornalistas especializados porque você precisa entender toda uma série de conceitos que são importantes pra você construir a matéria. Agora a publicação é muito importante que ela seja transversal. A resposta é mista. Eu acho que você tem que ter uma produção de matérias ambientais por jornalistas especializados, mas a publicação em diversas editorias. A gente começou a fazer isso na Agência em várias coberturas, por exemplo, a discussão do prolongamento da Rodovia dos Bandeirantes lá em São Paulo que era um assunto da Editoria de Brasil, no entanto eu trabalhei nessa cobertura na parte que era de avaliação dos impactos ambientais. Aí você vai falar com um público que não é iniciado. Eu acho que esse é um dos problemas do jornalismo ambiental que é você falar para quem já está convertido. A gente precisa das outras editorias para falar para um público não convertido porque meio ambiente é justamente um bem comum. Se você consegue conquistar um dono de empresa poluente para pelo menos mudar algumas práticas é muito mais eficiente do que você conquistar um monte de gente que pode fazer uma manifestação na frente da empresa dele e o cara vai ficar com medo da violência e não vai querer nem ouvir o que as pessoas estão falando. Em termos de eficiência para o resultado que a gente quer que é um meio ambiente mais saudável, um desenvolvimento mais sustentável, alternativas mais interessantes, acho que você tem que falar com um público que não é o seu público fácil que é o seu público já convertido.
Eloisa Loose: O jornalismo ambiental pode ser feito em formato de notícia na cobertura factual?
Uma coisa que eu acho muito importante é essa coisa do jornalista ter agenda própria. Não só as comunicações oficiais de governo ou de empresas procuram dirigir a notícia que vai ser produzida ou a reportagem que vai ser produzida, mas também as das ONGs ambientalistas. Cada um tem sua agenda própria. Cada fonte de informação tem uma agenda própria. Então o jornalista não pode estar nem alinhado com as empresas ou publi-informação, nem alinhado a agenda das ONGs, que não é a mesma agenda do jornalista ambiental. Embora no fundo, no fundo todos queremos defender meio ambiente, existem agendas específicas de ONGs que não é nosso papel reproduzir fielmente. Eu acho que a gente tem que manter o espírito crítico. Quando eu falo reportagem, não é só exclusivamente a reportagem de ir lá no lugar, não é todo tempo que você pode fazer isso, você sendo um jornalista especializado você consegue identificar dentro da notícia aquilo que é um posicionamento de comércio exterior, um posicionamento de barreira ambiental com finalidade de exportação/importação. Tudo isso existe. Nós estamos em um mundo que é cheio de interesses. Então o jornalista tem que ter essa capacidade de diferenciar aquilo que é de fato uso do bem comum daquilo que puxar brasa pra minha sardinha. É importante que o jornalista tenha sua própria agenda. Por isso era extremamente rico esses grandes temas que a gente discutia na Agência Estado, a gente sentava e discutia o que estamos precisando discutir nesse momento. Então como a gente vai trabalhar esses temas. Ai o resultado disso, já respondendo a questão da notícia e da reportagem especial, era uma série de publicações que podiam ser notícia ou não, mas que estavam dentro de um tema que nós havíamos discutido entre nós que era a nossa agenda, da Agência Estado. O que nós queremos, qual a nossa postura pra defender isso. Por que às vezes quando você tem um jornalista especializado cobrindo uma coisa que vai ser a notícia do dia, você pode enriquecer aquela notícia com um conhecimento que não necessariamente você obteve ali na hora. Mas, você pode dar o contexto, pode falar de um acidente como Mariana, mas dar o contexto daquilo, dizendo como aconteceu, estava sem monitoramento a lagoa de contenção dos dejetos, enfim. O contexto faz parte da notícia também.
*Roberto Villar Belmonte é jornalista, professor e pesquisador dedicado à cobertura ambiental. Membro do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS).
A emergência climática não está apenas no futuro, está acontecendo agora. E o que estamos fazendo? Bom, construindo lojas de departamento em áreas de preservação permanente, é claro. A reportagem “Instalação da Havan em Canoas abre caminho para o fim da última grande área verde no centro da cidade” foi escrita pelos estudantes Júlia Ozório, Nicole Goulart, Rafael Pereira, Eduarda Stefenon e Valentina Bressan, da UFRGS, e por Naira Hofmeister, do Matinal. A investigação foi produzida pelos estudantes para a disciplina de Ciberjornalismo III, do curso de Jornalismo, ministrada pelo professor Dr. Marcelo Träsel.
A matéria denuncia o pouco caso que a administração municipal faz da destruição da mata em virtude de novos empreendimentos no local. Como um exemplo emblemático, poucos dias antes da derrubada das árvores, biólogos encontraram no local indícios de uma espécie de lagostim nunca descrita pela ciência, e temem que ela irá desaparecer com as obras. A reportagem é dividida em três: a primeira relata os problemas envolvendo a construção do prédio da Havan em Canoas, uma segunda mostra o histórico da empresa em desrespeitar o meio ambiente e as legislações municipais, e uma terceira relembra casos em que a Prefeitura de Canoas negligenciou o meio ambiente, recomendo a leitura de todas.
Não se fala em aquecimento global ou emergência climática na reportagem, mas o texto mostra como a degradação daquela área verde pode afetar os moradores. Sem os banhados para reter a água no solo, ocorrerão inundações frequentes. A fauna do Arroio Araçá, destino da água da inundação, poderá ser afetada também. O microclima do bairro será impactado, ficando mais quente. E com o aumento dos carros, aumenta a poluição atmosférica. A reportagem explica como tudo está ligado, como as coisas acontecem.
Algumas matérias sobre as chuvas nos países europeus ou sobre os incêndios florestais citam a crise climática, outras chegam até a apontar o que especialistas estão falando, trazendo a conexão existente entre os fatos e as transformações globais. Eu não espero que no dia de um desastre já se possa explicá-lo, é claro. Mas o que eu gostaria que acontecesse, no caso da tempestade, dos incêndios florestais, das secas e das ondas de calor, é que os jornais mostrassem, de forma clara, qual a ligação desses eventos com a destruição do planeta pela humanidade, algo que se pode ver – atentando para suas devidas proporções e diferenças – no rigoroso trabalho publicado pelo Matinal.
Não parece ser por acaso que a única reportagem aprofundada sobre o terreno em Canoas que eu encontrei foi escrita por estudantes e publicada em um veículo de mídia independente. Ir contra grandes empresários não é exatamente o que o jornalismo tradicional faz no seu dia a dia, infelizmente. Então temos aqui duas questões que podem ser aprendidas com o colegas que ainda está na faculdade: confrontar empresas e governos que destroem o meio ambiente e explicar como essa destruição nos envolve e nos afeta.
Para finalizar, deixo uma questão: o que podemos fazer agora para interromper este processo de exploração da Terra? O jornalismo precisa explorar pautas sobre quais ações são necessárias tanto para evitar o agravamento do aquecimento global quanto para fornecer qualidade de vida a todos durante a emergência climática que já estamos. É triste pensar isso, mas espero que agora que países ricos europeus também estão sendo brutalmente atingidos, possamos olhar para essas questões com mais seriedade.
*Jornalista, mestranda em Comunicação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul com bolsa Capes. Integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS).
Desde maio é possível observar, em diferentes meios de comunicação, uma frequente cobertura sobre os impactos, sobretudo econômicos, derivados da escassez da água. O sinal de que os reservatórios das usinas hidrelétricas estão baixos desencadeou aumento na conta de luz e o receio de um novo apagão, como aquele sentido em 2001. Contudo, mais do que falar da água como recurso energético, o registro da pior seca dos últimos 91 anos serve de gatilho para que o jornalismo aborde os muitos interesses que envolvem sua disputa, como noticiou a CNN, e seu futuro em um cenário de extremos climáticos cada vez mais frequentes.
Ao tratar esse contexto como de crise é preciso avaliar o quanto essa situação é mesmo atípica ou pode ser remediada no curto prazo. Uma nota técnica da Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento Energético do Ministério de Minas e Energia aponta que este momento não é um desvio da curva que voltará ao normal, mas parte de uma tendência. As hidrelétricas estão com menos água porque os regimes de chuva estão mudando, resultado das alterações do clima – e isso não terá efeitos apenas em 2021. Mas, o que estamos fazendo para nos precavermos? O aumento da geração de energia por termelétricas, além de pesar no bolso do consumidor, contribui para a intensificação das mudanças climáticas em razão da maior emissão de gases de efeito estufa. Sofremos os efeitos da escassez hídrica e reagimos com medidas que tendem a potencializar o problema. Por quê? Quem ganha com isso?
A matéria do El País “O que liga o aumento na conta de luz ao desmatamento da Amazônia e à emergência climática? Tudo” trouxe uma conexão importante, não apenas com o clima, mas também com o desmatamento da Amazônia (que nem sempre é vinculado à crise climática). É importante repetir que os fenômenos estão interligados e que o desmonte de políticas públicas ambientais afeta todo nosso modo de vida porque não há nada isolado na natureza. A perspectiva ambiental ajuda a compreender que água é um bem que deve ser cuidado por toda humanidade. O que estamos fazendo?
Apelar para a consciência do usuário também não é (ou deveria ser) o bastante. Utilizar a água com parcimônia é necessário, porém vale investigar quem são os grandes consumidores deste País e como se dá sua gestão. Nossa situação não é decorrente do acaso, de “um azar”, como declarou o presidente Jair Bolsonaro, mas de falta de planejamento e ações efetivas contra as mudanças climáticas. Leonardo Sakamoto, em sua coluna do UOL, destaca a conexão da falta d’água com a emergência climática, finalizando seu texto com o chamado para atuarmos em diferentes frentes: na geração de energia, no abastecimento, na produção industrial e na agropecuária.
Uma das poucas matérias encontradas nesta última semana que discute o uso da água pela agropecuária e coloca em xeque sua forma de produção é feita pela BBC Brasil. Nela, além da articulação entre a questão climática e o desmatamento, atrelada à expansão agrícola, é abordado o processo de irrigação das lavouras – em parte da bacia do Paraná, ela é responsável por 90% do consumo, que poderia ser destinado para o abastecimento das cidades ou geração de eletricidade. Segundo relatório da Agência Nacional das Águas de 2021, a irrigação é responsável por quase 50% da demanda de todo Brasil e esse número deve crescer para ampliar ou até mesmo manter a produtividade. Quais serão as consequências disso para os outros setores?
As secas, decorrentes da falta de chuvas, são processos longos e que costumam ser “normalizadas” com o tempo, recebendo menos atenção midiática do que outros eventos extremos mais intensos e de curto prazo. Que o aumento da conta da luz ou a ameaça do apagão para a reeleição de Bolsonaro transforme-se em oportunidades para que a cobertura da água seja mais problematizada e ganhe diversos enfoques. A questão hídrica é somente uma das facetas de um emaranhado de crises gerado pelo nosso modelo de desenvolvimento. Quando vamos falar mais sobre isso?
*Jornalista, mestre em Comunicação e Informação, e doutora em Meio Ambiente e Desenvolvimento. Vice-líder do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). E-mail: eloisa.beling@gmail.com.
Uma onda de frio percorreu grande parte do país nesta última semana, do Sul ao Centro-Oeste. Já se tornou relativamente comum que, nesses momentos e em todos os anos, saiam dos porões — há muito abertos — negacionistas de plantão vociferando contra a existência e intensificação do aquecimento global. Quando acontece, trata-se de uma pseudodisputa: não interessa a eles a vitória de suas narrativas mentirosas, basta o simples questionamento na sociedade, a pura suspensão da certeza científica, o desvio do foco de atenção do que realmente importa. É possível que até mesmo a família Bolsonaro já tenha se cansado de propagar a mentira do frio, dessa vez mais preocupados com o desenrolar da CPI da covid-19 e com as denúncias sobre o ex-ministro, Ricardo Salles, relacionadas ao favorecimento de madeireiros ilegais na Amazônia.
Ondas sazonais de frio em nada contradizem a emergência climática (ao contrário, podem ser efeitos dela), e é importante que isso esteja claro sempre que a desinformação mentirosa ousar aparecer. Acontece que, nesta semana, isso ficou mais explícito diante do contraste radical e concomitante ao nosso “frio”, a partir das ondas históricas de calor registradas, mais uma vez e ano após ano, em países do hemisfério norte. Que o verão deles é no nosso inverno, não é novidade; mas um país como o Canadá bater três recordes seguidos, alcançando históricos 49,6º C, é mais do que preocupante. As centenas de mortes em decorrência direta das ondas de calor evidenciam um novo risco à saúde humana tão importante quanto aqueles relacionados aos grandes desastres já intensificados pela emergência climática, como furacões, ciclones, entre outros fenômenos. Pessoas com doenças crônicas, idosos e crianças são ainda mais vulneráveis ao estresse térmico provocado pelas ondas de calor, como informa a Sociedade Brasileira de Medicina da Família e Comunidade.
Entre as matérias publicadas no G1 sobre o tema, uma de autoria da BBC News e restrita à editoria Natureza (seção Aquecimento Global) é a mais qualificada, ao abordar os fatores meteorológicos para o calor e contendo uma breve análise de um especialista sobre o aumento da probabilidade desses eventos em função do aquecimento global. Já a notícia com pauta mais factual e inédita (no jargão jornalístico, mais “quente”) sobre o caso, na editoria Mundo e de autoria do próprio G1, falha ao apenas noticiar as mortes e as temperaturas do Canadá, negligenciando a discussão sobre a emergência climática, relegada a uma pequena frase no final da matéria. No dia seguinte, esta matéria do mesmo portal noticia o incêndio que devastou um vilarejo canadense e, novamente, relega as mudanças climáticas à última frase da matéria, desta vez em tom de inevitabilidade: “Cientistas avisam que, com as mudanças climáticas, fenômenos do tipo ficarão mais frequentes”.
A frase não está errada, e é importante que se frise a direção trágica que a humanidade caminha. No entanto, é imprescindível que o jornalismo não se ausente da elucidação dos contextos, causas (sobre os efeitos climáticos irreversíveis “em dominó”, a BBC publicou ótima matéria nesta semana) e medidas a serem tomadas, sobretudo nas publicações para o grande público, para além das editorias especializadas no assunto. Fica também implícita, aí, a necessidade de uma dimensão política e ativa inerente ao exercício jornalístico. Vale tanto para elucidar um tipo de senso comum sobre o frio, quanto para realçar e lembrar, sempre que possível, a altíssima associação, em termos probabilísticos, do aquecimento global com as ondas de calor.
* Jornalista, doutorando em Sociologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ) e mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). E-mail: michelmisse93@gmail.com.
As obras que realizaram a canalização e a retificação do arroio são um problema para a cidade até hoje, tanto em relação às questões ambientais referentes às águas urbanas quanto em relação à impossibilidade de aproximação e uso do arroio devido à estrutura urbanística criada. Não é trivial que esse projeto tenha surgido e que esteja sendo noticiado em 2021 – afinal, as obras de revitalização da orla do Guaíba seguem o seu curso após as polêmicas causadas, e o Dilúvio deságua justamente em uma parte do trecho três da reforma urbanística. Desde o ano passado, existem equipes que estão realizando um projeto de limpeza e revitalização em uma parte do arroio de aproximadamente dois quilômetros.
Neste ano, idealiza-se uma intervenção em um trecho pequeno que fica no cruzamento da avenida Ipiranga e da avenida Cristiano Fischer – o que também não é trivial, posto que essa localização está próxima do complexo institucional da PUCRS. Um dos proponentes deste projeto é Fernando Dornelles, professor adjunto do IPH. O pesquisador docente expôs ao Zero Hora que esse projeto vislumbra uma paisagem urbana que tenha exposições de arte, espaços para apresentações, cafeterias flutuantes, aluguel de caiaque e outras formas de revitalização. Contudo, expôs também que esse seria um projeto urbanístico piloto que poderia limpar apenas uma pequena parte do Arroio Dilúvio, já que a complexidade da limpeza total desse curso d’água envolve questões muito mais complexas como a resolução dos problemas de saneamento básico da população – um problema clássico em Porto Alegre.
Como não se cogita um projeto mais complexo que realizaria de fato a despoluição do dilúvio, o Zero Hora relata que os pesquisadores estão avaliando a construção de uma galeria nas laterais para desviar parte do fluxo d’água que “não seria possível tratar”. Almeja-se instalar ecobarreiras e wetlands em várias partes do curso do arroio, mas a finalidade principal é revitalizar esse trecho que fica próximo à PUCRS para que as águas sejam desfrutadas por moradores urbanos que possuem um estilo de vida muito específico. O próprio jornal escreve alguns pequenos parágrafos sobre a duração desse problema ambiental na nossa cidade, mostrando como outras gestões municipais tentaram realizar projetos mais complexos do que esse.
Em 2012, professores da UFRGS e da PUCRS lançaram um plano de ação que listava 171 ações consideradas necessárias para realmente recuperar a bacia e despoluir toda água. Entre essas inúmeras ações, o próprio Zero Hora destaca que essa equipe propusera a criação de políticas públicas para saneamento básico, regularização fundiária, educação ambiental, trânsito (entre outras) para que fosse possível uma real recuperação do Arroio Dilúvio. Importante lembrar também que, poucos anos antes dessa proposta, foram feitas pesquisas antropológicas na UFRGS acerca da memória desse curso d’água relacionado aos problemas socioambientais de Porto Alegre, o que culminou no documentário chamado Habitantes do Arroio.
Essas informações são fundamentais para realizar uma genealogia deste conflito na nossa cidade e para recuperar a memória dos espaços urbanos, já que um arroio de 17,6 quilômetros de extensão é um espaço muito grande para ser reduzido à uma área urbana de classe média/alta como as redondezas da PUCRS. Por isso, acredita-se que o Zero Hora poderia ser mais crítica e propor um “jornalismo de soluções” que esteja unido aos princípios básicos do jornalismo ambiental desenvolvido pela UFRGS. Afinal, uma das bases desse tipo de jornalismo é o pensamento crítico e sistêmico, o que pode envolver a recuperação da memória de certos conflitos socioambientais para que seja possível propor soluções que realmente aprofundem os problemas citadinos que temos. Falta uma cobertura jornalística por parte de Zero Hora que tenha uma pluralidade de vozes maiores.
* Cientista Social com ênfase em antropologia e atual mestrando do programa de Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) com bolsa Capes.
Imagem: Captura de tela – Assuntos em destaque na capa do movimento editorial Um Só Planeta, do Grupo Globo, no dia 22 de maio de 2021
Roberto Villar Belmonte*
O Grupo Globo lançou em 2021 um movimento editorial para enfrentar a crise climática chamado Um Só Planeta. Formada por 19 veículos, entre eles os jornais O Globo, Valor Econômico e a rádio CBN, a iniciativa tem desde o início quatro patrocinadores: Ambipar Group, Braskem, Engie e Natura.
Manifesto publicado no final de março explica que o objetivo é produzir um jornalismo que combate a indiferença, encoraja e gera a faísca que inspira: “Estamos aqui para, ao seu lado, provocar uma real e transformadora mudança de padrões mentais e comportamentais em relação ao lugar que moramos”.
O portal do movimento tem cinco editorias: clima, energia, finanças, sociedade e biodiversidade. Há também 22 colunas e blogs de especialistas, entre eles Marcio Astrini, secretário executivo do Observatório do Clima, e Marina Grossi, presidente do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável.
Angelina Jolie posa coberta de abelhas e pede mais conservação era uma das cinco notícias mais lidas no sábado passado, 22 de maio, assim como o primeiro sequenciamento genético de uma serpente brasileira — a jararaca e o plano de Joe Biden para tornar as casas e edifícios americanos “mais verdes”.
Inaugurado em 2015, o local resgata animais que passaram a vida em circos e zoológicos. Ainda segundo a notícia, a presença dos elefantes, atualmente quatro animais vivem por lá, ajudaria na regeneração da antiga fazenda de gado localizada no cerrado mato-grossense.
Apesar de não ter relação com a crise climática, a iniciativa foi divulgada pelo movimento editorial que pretende “provocar uma real e transformadora mudança de padrões mentais”. Histórias interessantes rendem pauta neste tipo de jornalismo de soluções, desde que sem conflito, sem denúncia e sem investigação.
Já o cerco ao ainda ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, principal pauta ambiental dos últimos dias, tem tudo a ver com enfrentar a crise climática. Mas esse não é considerado um tema para o Um Só Planeta. Para esse movimento editorial patrocinado, só importam as soluções econômicas e tecnológicas.
Por que a política de desmonte e o agora cerco ao ministro que incentiva a destruição da floresta amazônica são pautas frequentes no jornal O Globo e são ignoradas no portal construído pelo mesmo grupo para praticar um jornalismo que combate a indiferença, encoraja e gera a faísca que inspira para enfrentar a crise climática?
O que está em disputa no campo do jornalismo brasileiro desde os anos 1990, quando o setor empresarial entrou no debate ambiental, é o que pode e deve ser dito sobre o meio ambiente. Os consultores de marketing batem insistentemente na tecla da comunicação de boas histórias, consideradas, essas sim, inspiradoras e dignas de atenção.
E o jornalismo que combate os poluidores? Desmobiliza, assusta e afasta os consumidores da causa ambiental, dizem. É por isso que quando o Grupo Globo cria um portal patrocinado para “enfrentar a crise climática” o que aparece é um conteúdo de comunicação ambiental em sintonia com o mercado (“verde”).
A mistura entre jornalismo e comunicação é uma das características da atual fase da profissão consolidada no último quarto do século passado. Segundo Charron e De Bonville (2016, p.30), nesse jornalismo de comunicação “o tom e o estilo do discurso promocional impregnam o discurso da imprensa”.
Tal confusão parece ser menos latente em empreendimentos jornalísticos que surgiram no país nas últimas duas décadas, entre eles revista piauí, O Eco, Repórter Brasil, Infoamazônia, Agência Pública, The Intercept Brasil e Amazônia Real. Jornalismo ambiental sem combate é (só) comunicação.
Obviamente que a comunicação ambiental, praticada por todo tipo de profissional e em qualquer mídia, é necessária e fundamental no enfrentamento da crise climática. No entanto, jornalistas não deveriam, em nome da mobilização da sociedade para um novo mercado, abrir mão da função crítica que define a profissão.
Referência:
CHARRON, Jean; DE BONVILLE, Jean. Natureza e transformação do jornalismo. Florianópolis/Brasília: Insular/FAC Livros, 2016.
*Roberto Villar Belmonte é jornalista, professor e pesquisador dedicado à cobertura ambiental. Membro do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS).
Imagem: Reprodução da reportagem publicada na Folha de São Paulo
Patrícia Kolling*
Com o objetivo de escrever para este observatório, fui em busca de textos jornalísticos que tratassem da pauta da semana: o projeto de lei com novas regras para o licenciamento ambiental e sua aprovação na Câmara dos Deputados. Numa busca rápida encontrei no G1, a matéria Nova lei do licenciamento ambiental: entenda os próximos passos e o que está em jogo que, de forma didática e interessante, tornou o tema compreensível em sete pontos: o que é licenciamento ambiental, o que diz o novo projeto aprovado na Câmara, os argumentos dos dois lados (a favor ou contra), os próximos passos, o que está em jogo, o que dizem as organizações ligadas ao meio ambiente e o que diz o relator do projeto. O tema é técnico e, ao ser instrumento de uma lei, torna-se ainda mais complexo, sendo necessário que o texto jornalístico o decodifique para uma linguagem acessível à população. A jornalista Carolina Dantas faz isso, ao explicar e exemplificar termos, como “licenciamento simplificado” ou “bifásico”, “de fase única” e “por adesão e compromisso”, propondo um comparativo com a lei em vigor. O texto traz um especialista em direito ambiental para detalhar o ponto mais criticado da nova lei, a Licença por Adesão de Compromisso (LAC) que exige apenas uma autodeclaração do empreendedor. Mostra os argumentos de quem é a favor do Projeto de Lei: “acelerar o processo e reduzir a burocracia e dos contrários novos empreendimentos” e de quem é contrário: “aumentar a destruição dos biomas brasileiros, colocar em risco populações tradicionais e piorar ainda mais a imagem do Brasil no exterior”. O texto também mostra o que aconteceria na prática hoje, se o projeto fosse aprovado no Senado e sancionado pelo presidente: estradas como a BR-163, que corta a Amazônia e faz o transporte de grãos entre Pará e Mato Grosso, e a BR-319, que liga Porto Velho a Manaus, poderiam ser asfaltadas sem a necessidade de um licenciamento ambiental.
A matéria jornalística, porém, não nos permite compreender, como um projeto de lei tão criticado por dezenas de organizações, ambientalistas, políticos e pesquisadores e que deve piorar ainda mais a imagem internacional do Brasil frente as questões ambientais, consegue ser aprovado na Câmara dos Deputados por 300 votos. Ou seja, os meandros políticos e econômicos do cenário de aprovação deste projeto de lei não são apresentados pela jornalista do G1.
Na Folha de São Paulo, dois textos trazem à tona alguns destes aspectos. A repórter Danielle Brant, na matéria Câmara conclui votação de projeto que flexibiliza licenciamento ambiental, citando o deputado Camilo Capiberibe (PSB-AP), destaca que com a aprovação deste projeto de lei o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, entrega ao presidente da República o que foi combinado quando ele foi apoiado à presidência da Câmara e que este é sonho do presidente: ocupar a Amazônia, sem nenhum tipo de restrição, como na época da ditadura militar.
Uma análise de Ana Carolina Amaral, Licenciamento de exceção traz risco ao ambiente e também ao empreendedor, também na Folha de São Paulo, traz os argumentos das organizações ambientais para o perigo do projeto de lei, que pode criar uma insegurança jurídica, pois dá aos estados e municípios o poder de definir as atividades ou empreendimentos que necessitam de licenciamento. Além de abordar a necessidade de debate público do projeto, o que não foi realizado até o momento. Os textos da Folha nos dão indícios de que a aprovação em regime de urgência desse projeto, em um momento de tensão na CPI da covid, e sem debate público, foi uma estratégia dos deputados ligados ao agronegócio, ao centrão e à base do governo. Porém, não aprofundam os interesses econômicos do projeto, que são levantados nos comentários de um leitor da Folha, ao reclamar do jornalismo produzido: “nenhuma palavra sobre: ao se transferir a responsabilidade do licenciamento a estados e municípios, estimular-se um afrouxamento dos patamares mínimos de restrições no sentido de atraírem-se investimentos; o autor do projeto ser um produtor rural já condenado; as diversas modalidades de exploração que, injustificadamente, tornaram-se isentas de fiscalização”. Ele ainda questiona o fato de nenhum ambientalista ou ONG ter sido fonte da matéria. “Mais parece propaganda da lei”, encerra do leitor.
*Patrícia Kolling é jornalista, doutoranda em comunicação pela UFRGS e professora da UFMT.
Imagem: Reprodução de JornalJá/ Deriva Jornalismo.
Por Eliege Fante*
Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, foi construída pelos imigrantes europeus sobre um território de encontro entre os biomas Mata Atlântica e Pampa, ou seja, um florestal, outro campestre. A transformação dos hábitats das outras espécies da flora e da fauna nas estruturas que sustentam o desenvolvimento econômico inspira os demais municípios do estado. No entanto, a qualidade da água e do ar estão precárias, apesar do cumprimento dos padrões legais, com o agravante de a conservação dos ecossistemas não ser uma prioridade na gestão deste território. Por exemplo, através da atualização da lista das espécies ameaçadas da flora de POA, tão reivindicada pelo movimento ambientalista. Documento elaborado pelo Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (Ingá) em 2016, e entregue ao Conselho Municipal de Meio Ambiente (Comam) e a Secretaria Municipal do Meio Ambiente (SMAM), explicava: “Sem as informações do estado de conservação de nossa flora e fauna e da capacidade de suporte de atividades de impactos negativos e potencialmente sinérgicos, estaremos licenciando empreendimentos no ‘escuro’. Ou seja, sem a base de dados necessária para predizermos as consequências futuras de tais atividades, em geral progressivamente degradadoras, em um contexto local de expansão urbana quase sem limites”.
Enquanto a pauta da conservação, para o próprio desenvolvimento, segue sob disputa de sentidos entre os grupos sociais, com representação no Comam e na Secretaria, informações circulantes denunciam o avanço da especulação imobiliária sobre o que resta de áreas naturais em Porto Alegre. E, com o agravante de constituir uma ameaça às vidas humanas, e suas culturas, que estão no Território Indígena (TI) Pindó Poty, no bairro Lami, Zona Sul. A maior parte das informações tem sido divulgada pelas próprias fontes – que poderiam ser entrevistadas pela imprensa-, através dos seus sites e páginas de redes sociais, a respeito de invasões na área, que ainda não teve concluído o processo de regularização fundiária pela União e a Fundação Nacional do Índio (Funai). A mobilização da comunidade Mbya Guarani e de diversas entidades apoiadoras, entre elas, muitas não-indígenas, segue intensa: denunciando, cobrando a responsabilidade dos órgãos, realizando eventos públicos e atividades no território, como o plantio e replantio de mudas frutíferas. No entanto, a qualidade da cobertura dessa pauta imprescindível, pela imprensa porto-alegrense, está precária. É o que sugere o resultado de uma busca, realizada em oito de maio último, em oito sites de jornalismo com palavras-chaves “Indígenas”, “Índios”, “Lami”.
Nos quatro sites da imprensa hegemônica, apenas no Correio do Povo, a busca resultou em uma notícia com a palavra-chave Índios e com Lami (a mesma), publicada em 22 de abril de 2021: “Ato reivindica demarcação de terra indígena, em Porto Alegre”. Reportou a mobilização em prol da demarcação do Território Indígena (TI) com as seguintes fontes citadas: o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), José Otávio Catafesto de Souza, que confirmou que o processo não está andando e as informações sobre motivações dos invasores se referirem a especulação imobiliária; nota do Ministério Público Federal sobre ação ajuizada em 2019 determinando a finalização dos procedimentos administrativos de identificação e delimitação das áreas de ocupação tradicional indígena pela União e Funai e, ainda que, em julho de 2020, soube de um casebre irregular situado na TI; e a Funai, que apenas repetiu que o processo está em andamento. Impossível não deixar aqui para refletirmos: por que nenhum membro da comunidade Mbya foi entrevistado? Caso chegue alguma resposta, poderemos publicar neste espaço.
Abaixo, um quadro apresenta as palavras-chaves e os links cuja busca atribuiu os resultados. E, ao clicar no nome do jornal, o link conduz à apresentação que a empresa de comunicação faz de si.
Fonte: Elaboração própria.
Imprensa não hegemônica: correlação invertida
Já nos quatro sites da imprensa não-hegemônica, a busca com as palavras-chaves que, não trouxe nenhum resultado relativo à pauta em questão aqui, ocorreu em apenas num deles. É o que mostra o site do Extra Classe clicando em Indígenas, Índios ou Lami. Neste caso, assim como nos casos das outras três buscas (nos jornais hegemônicos) que não resultaram em notícias como era esperado, vale ressalvar que a falta de ordem na data pode ter impedido a sua identificação. A seguir, veremos um pouco de cada uma das únicas notícias publicadas pelos outros três sites.
O Jornal Já publicou reportagem do jornalismo independente “Deriva”, que está acompanhando no local a sucessão de acontecimentos, intitulada “Invasores montam barracos e desmatam território indígena no Lami, em Porto Alegre”. A pesquisa no site do Já apontou a notícia, de 20 de abril de 2021, através das palavras “indígenas” e “Lami” (não foi possível copiar o link). Além de trazer as informações dos órgãos públicos responsáveis, disponibilizou uma entrevista no YouTube com o cacique da TI, informações sobre os estragos causados pelos invasores e o contexto histórico: “A Aldeia Pindó Poty está em um território ancestral. Compõe junto com as aldeias do Cantagalo, Itapuã, Ponta do Arado, Lomba do Pinheiro uma grande área de circulação e de ocupação deste povo originário nas matas da Zona Sul da cidade de Porto Alegre.” Fotos grandes e de qualidade ilustram ricamente o encontro presencial do jornalista com as fontes principais.
Também ilustrada com imagens, o Matinal publicou, em 22 de abril, “Por omissão da Funai, guaranis de todo o Estado vêm a Porto Alegre blindar território de invasores”. A reportagem foi a mais completa, na diversificação das fontes, em comparação com as outras deste grupo. Foi localizada a partir das palavras-chaves Índios e Lami.
Ligada à palavra-chave “Lami”, o Sul21 trouxe informações importantes a partir de entrevista com uma fonte vinculada a entidade indigenista, em 20 de abril, sob o título “Mbya Guarani denunciam invasão de terra indígena no Lami para construção de loteamentos irregulares”. Parece que nenhum membro da comunidade Mbya Guarani foi entrevistado: “De acordo com o Cimi, a comunidade já notificou o Ministério Público Federal (MPF) e a Fundação Nacional do Índio (Funai) cobrando medidas para evitar as invasões. Os indígenas, segundo o Cimi, temem ser expulsos de suas casas pelos invasores.”
Em comum, nos oito sites selecionados para este exercício de observação, foi marcante a insistência dessa imprensa porto-alegrense, em seguir repetindo (das fontes), reproduzindo, e assim, produzindo, o conceito equivocado de “índio”. Daniel Munduruku tem explicado com generosidade o que nos cabe aprender como o Nonada, entre outros, já fizeram.
Já entre os quatro sites que publicaram a pauta, marcou, também, a coincidência entre a data da publicação e a convencional comemoração do “Dia do Índio”. Como as Retomadas Indígenas estão bastante ativas, a cobertura sobre o estado de conservação das últimas áreas remanescentes dos dois biomas nos municípios gaúchos, especialmente em Porto Alegre, deve se ampliar significativamente, ainda mais podendo-se ouvir as fontes “guardiãs da biodiversidade” conforme a ONU classificou os povos indígenas recentemente.
Não obstante seja conhecido o conjunto de dificuldades enfrentadas nas redações jornalísticas em geral, as crescentes demissões e a consequente sobretensão naqueles profissionais mantidos, além da sobreposição da pauta da covid-19, as pautas não mudam os status, como o de imprescindíveis. A qualidade das informações que os habitantes dos municípios necessitam para exercer a cidadania, também aparece na iniciativa Atlas da Notícia, que visa mostrar onde se encontram os chamados “desertos de notícias”, ou seja, aqueles que não possuem meios jornalísticos. Porto Alegre que possui os sites mencionados, e muitos outros, certamente não é um deserto, entretanto, a precária e limitada cobertura coloca esta população sob o risco de viver em um deserto de pautas imprescindíveis.
*Eliege Fante é jornalista e pós-graduada pela UFRGS em Comunicação e Informação. Integra o Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS) e é associada ao Núcleo de Ecojornalistas (NEJ-RS). E-mail: gippcom@gmail.com.
Tendência entre grandes grupos de jornalismo, os estúdios de conteúdo – que se ancoram em elementos do fazer jornalístico, mas oferecem conteúdo sob encomenda -, começam a ter nas temáticas ambientais um filão de mercado. O fenômeno também pode ser lido no contexto de uma discussão sobre os rumos da economia no pós-pandemia e da própria crise do jornalismo (ou das empresas de mídia).
Um exemplo recente é o Estadão Blue Studio, do jornal O Estado de S. Paulo, que nos últimos dias entregou diversos conteúdos relacionados ao ambiental sob o guarda-chuva do projeto Retomada Verde, lançado no ano passado. O argumento central do Retomada é, justamente, dar conta de um “movimento global” que estaria ganhando espaço no Brasil, “com empresários, economistas e personalidades endossando a necessidade de fortalecimento da bioeconomia, de cidades mais sustentáveis e de um novo modo de vida e consumo”.
Tais projetos editoriais evidenciam o ambiental como eixo central do contemporâneo, e um “verde” tomado como objeto pelo próprio jornalismo. O extinto Movimento Planeta Sustentável, da editora Abril, revistas com edições verdes ou guias de sustentabilidade, o movimento Um só Planeta, do Grupo Globo, bem como o exemplo aqui assinalado, traduzem também uma tentativa de apaziguamento da natureza complexa e plural de um tema multifacetado.
Essas proposições estão ancoradas na parceria com atores econômicos selecionados, bastante cientes da importância de estarem colados a um discurso de referência. Os próprios causadores da degradação ambiental se apropriam da crítica à sua atuação para usá-la a seu favor, como argumenta André Soares em “A natureza e a cultura do eu” (Ed. Univali, 2003). Os jornais, por sua vez, utilizam seu valor simbólico e a imagem que usufruem na comunidade discursiva que alimentam como seus grandes produtos. Uma perspectiva crítica não deve ser perdida, uma vez que o viés jornalístico nem sempre é o preponderante, os horizontes editorial e empresarial têm sempre mais força nessas iniciativas. Fosse somente pelo interesse jornalístico, as editorias de meio ambiente seriam permanentes e alvo de real investimento.
Imagem: Captura de tela do Estadão
Neste exemplo, temos um texto bem escrito, com a utilização de fonte de alta credibilidade e reconhecida competência no tema. Ao navegar pela página do Retomada, os conteúdos que têm origem em ações com empresas, sob encomenda, recebem uma tarja de conteúdo patrocinado. Todavia, ao termos o tema assumido como projeto editorial e empresarial do próprio grupo de mídia, sempre caberá perguntar quem define a agenda. As pautas emergem naturalmente da observação apurada da realidade cotidiana? Ou elas estão determinadas por um contrato? Todas ou somente algumas? E se, eventualmente, algum dos patrocinadores estiver no centro de um acontecimento negativo, como isso se processará jornalisticamente? E mais: em um país assolado por ondas sucessivas de informação fraudulenta (fake news), em que a estética da notícia é usada para gerar identificação com conteúdos falsos como se fossem verdadeiros, haverá, no exercício da leitura e visualização desses conteúdos, o real entendimento e separação do que é genuinamente jornalístico do que atende a interesses acordados previamente? Com o andar da carroça, as abóboras não estarão tão acomodadas a ponto de não mais haver diferença de tom ou enquadramento entre os dois tipos de conteúdo?
Talvez estejamos observando, nesse caso, movimentos da busca por sobrevivência das empresas jornalísticas. Se for, que resultados trarão para a pauta ambiental nos jornais e revistas? Tudo isso merece ser debatido também a partir do estatuto do jornalismo, questionando se ele ainda pode ser preservado. Pensando nas premissas da liberdade, da pluralidade e da independência, a produção de conteúdo sob demanda pode ser classificada como produto jornalístico, pode figurar no mesmo espaço do jornal/site? E quando tudo está no mesmo espaço, seguindo o mesmo formato e linguagem, a tarja de conteúdo patrocinado é suficiente? Vale lembrar que lavouras de milho transgênico interferem e modificam as variedades tradicionais plantadas nas lavouras vizinhas.
Em se tratando de jornalismo, o interesse privado, que é igualmente central na economia verde, jamais trará resultados de matiz coletivo, ou seja, no sentido de amplificar a compreensão do social e ajudar a produzir o bem comum de forma equânime. Considerando a necessidade de um debate público realmente abrangente, e diante do cenário de desmonte das políticas ambientais no Brasil, a fragilidade do jornalismo enfraquece ainda mais a compreensão macro do ambiental, e sempre acaba por esvaziar a dimensão política do tema. Certamente a tecnologia tem seu papel no desenho de soluções, há muito que se discutir. Como adverte o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, no entanto, o caminho não está em transformar problemas éticos em problemas técnicos apenas.
* Jornalista, doutor em Comunicação e Informação, professor na UFSM e integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS).
Imagem: Captura de tela do site The Intercept Brasil
*Por Ursula Schilling
Em tempos de #ForaSalles e de Cúpula do Clima, pode parecer difícil disputar espaço para outras abordagens sobre a pauta ambiental, mas é necessário e, felizmente, há exemplos de que é possível. Chamo a atenção para a reportagem publicada no site The Intercept Brasil, “Syngenta sabia dos riscos de agrotóxico que matou 100 mil pessoas, mas preferiu lucrar”, sobre a omissão da referida empresa no manejo do herbicida “paraquate”, um dos seus produtos mais vendidos. O químico, que é extremamente tóxico para humanos, segundo a matéria, também “perturba as membranas celulares das plantas e interfere no processo de fotossíntese, de modo que os efeitos podem ser vistos dentro de algumas horas. Por funcionar com tanta rapidez, o paraquate foi celebrado como um avanço significativo quando foi introduzido nos anos 1960”.
A longa reportagem levou em consideração 400 documentos, e o esforço de investigação resultou numa história bem apurada e com uma série de elementos. Se levar informações qualificadas ao leitor/espectador é a premissa básica do profissional de imprensa, o bom jornalismo também é, como diz o jargão, a arte de contar histórias — ainda que sejam más histórias. O desenvolvimento adequado, rítmico e consistente da narrativa envolve o leitor e, assim, ajuda a promover o engajamento no tema, em especial numa área que, como pontuado neste Observatório, necessita de ativa militância para que seja cotidianamente pautado pela opinião pública.
Imagem: Captura de tela do site The Intercept Brasil
Considerando a necessidade de uma perspectiva sistêmica para a cobertura midiática ambiental e não isolada das pautas cotidianas, o tema em questão — agrotóxicos — parece ainda pouco explorado, sobretudo nos meios de comunicação de massa. No caso de um portal como o The Intercept, a pauta recebeu um espaço grande o suficiente para atestar a importância do assunto. O tom é de denúncia, e o primeiro acerto se dá logo no título: sem meias palavras, destaca-se a importante informação — por vezes silenciada ou naturalizada nas coberturas-padrão — de que agrotóxicos, literalmente, matam.
Ao aprofundar o tema, no entanto, há um foco excessivo na questão da ingestão deliberada do paraquate (em suicídios), não trazendo um elemento central para a denúncia: estes produtos são usados em larga escala em lavouras de todo tipo, e os alimentos produzidos a partir da agricultura tradicional, que se vale de tais recursos para ganhar produtividade, vão para os nossos pratos. Haveria, certamente, espaço para uma melhor amarração, para uma abordagem que não desse a impressão de que o problema está em tomar deliberadamente uma dose do veneno. De qualquer forma, são importantes os fatos e dados trazidos pela matéria, mostrando a lógica da empresa e os efeitos funestos dela decorrentes.
Cabe reiterar ainda que, para o tipo de jornalismo que vai na contramão do desmonte das redações e da sobrecarga dos seus profissionais, é preciso uma porção de recursos fundamentais: humanos (jornalistas com condições dignas de trabalho e capacitados), materiais (para pesquisa, deslocamentos e tudo o mais necessário para uma boa apuração) e imateriais (tempo, coragem e retaguarda para fazer frente à oposição de gigantes da indústria de sementes e agroquímicos, por exemplo). Não é fácil fazer jornalismo de qualidade, mas torna-se cada vez mais imprescindível.
*Jornalista e membro do Núcleo de Ecojornalistas do RS e do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS).
Imagem: casa construída com garrafas de vidro. Fonte: Reprodução G1 / Globo Repórter
Por Míriam Santini de Abreu*
Pululam sem parar notícias e reportagens que buscam mostrar as alternativas dos brasileiros empobrecidos para sobreviver. O desespero – como usar lenha na falta de gás para cozinhar – vira “resiliência” e capacidade “empreendedora”. A reportagem do Globo Repórter intitulada “Ameaçadas de despejo, mãe e filha erguem casa com mais de 4 mil garrafas tiradas do lixo”, disponível em https://glo.bo/2PqUURa, enquadra-se nessa abordagem (1). Mas, tal como o vidro, na reportagem insinuam-se facetas que deixam a luz passar.
“Foi um trabalho de formiguinha e de muita consciência ambiental”, define a reportagem, ao se referir às incontáveis vezes que as duas mulheres recolheram garrafas jogadas no manguezal de uma praia de Itamaracá, em Pernambuco, para construir a moradia, aprendendo inclusive técnicas de construção.
Está-se diante da práxis inventiva, da prática criadora de que fala o sociólogo francês H. Lefebvre. O fazer humano de duas mulheres excepcionais para restaurar no cotidiano, sozinhas, o direito de morar. Mas a reportagem, ainda evocando o pensamento de Lefebvre, não tira a máscara das coisas para revelar as relações sociais. Nos quase 10 minutos não há menção a qualquer instância do poder público que possa dar sentido ao trabalho imposto à mãe e filha, abordando a dificuldade de pagar aluguel e/ou comprar moradia no mercado imobiliário, principalmente com os recursos públicos cada vez mais escassos e o fim dos grandes programas habitacionais.
Mesmo a ideia do reuso de materiais não se potencializa por não implicar a indústria no compromisso com o que produz. Fica apenas a menção genérica ao “descarte sem respeito à natureza”. Uma abordagem socioambiental, ainda que breve, não faria a reportagem resvalar para o discurso tão em voga de que “enfrentar desafios e vencer” – como anuncia o programa – depende unicamente da capacidade de resiliência dos indivíduos.
Mas há brechas notáveis na reportagem, como dar o conhecer o cotidiano de mãe e filha, as dificuldades pelas quais passaram, a amorosa trama que as une no cotidiano, e, em especial, a fala das duas sobre a dureza da existência, agravada por serem negras em um país que se ergueu sob os ombros de escravizados. A repórter entra na casa – algo raro, antes ou agora, na pandemia, iniciativa ligada ao fato de a casa ser ela própria uma personagem. Lá dentro estão as delicadezas do morar, a colcha de fuxico, as almofadas coloridas, os quadros, os objetos da cozinha. “A casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa nos permite sonhar em paz”, escreveu o filósofo G. Bachelard. A repórter mostra rotinas como o preparo dos alimentos e o trabalho da filha, que estuda moda – tendo que gastar seis horas por dia para ir à faculdade – e cuida de um pequeno brechó nos fundos do terreno, divulgando nas redes sociais as peças vestidas por modelos negros.
Ao final da reportagem, a abertura da imagem aérea mostra a casa e, progressivamente, o seu entorno, o litoral recortado e habitado, a lembrar que cabe ao jornalismo desvendar por inteiro a experiência vivida no espaço, um produto social sobre qual a pequena casa de vidro tem, potencialmente, muito a contar.
1 – A reportagem foi exibida em 26 de março passado como parte de um programa intitulado “Conheça histórias de brasileiros que são exemplos de resiliência com o Globo Repórter” que continha, entre outras, a história de mãe e filha.
Jornalista, especialista em Educação e Meio Ambiente, mestre em Geografia e doutora em Jornalismo. E-mail: misabreu@yahoo.com.br
Imagem: Reprodução de notícia publicada em Mongabay no dia 18/01/2021
Por Patrícia Kolling*
Começar a ler um texto jornalístico, se deparando com a foto acima, que reflete um sorriso franco, um olhar firme e um rosto expressivo, é como sentir vida no texto e na história. O texto referente à foto conta a história de Osvalinda Alves Pereira, trabalhadora rural que vive no Projeto de Assentamento Areia, no município de Trairão, no sudeste do Pará. No dia 24 de novembro ela foi a primeira brasileira a receber o prêmio Edelstam, premiação sueca concedida as pessoas que contribuíram de forma excepcional, e com grande coragem para a defesa dos direitos humanos.
Segundo a notícia, em 2012, Osvalinda montou uma associação de mulheres para capacitar agricultores a difundir o projeto agroflorestal já consolidado em seu lote. O sistema criava alternativa de trabalho e renda para os assentados até então submetidos a condições análogas à de escravos na extração de madeira. Desde então, uma série de ameaças foram feitas a Osvalinda e ao seu marido Daniel. Duas sepulturas (com cruzes) foram construídas a 100 metros da sua casa em 2018, o que levou o casal a se retirar do assentamento durante 18 meses.
O assentamento é porta de entrada para um corredor de áreas protegidas e, cobiçadas por madeireiros ilegais. Ler a história, os dramas e as conquistas da mulher e trabalhadora rural Osvalinda nos aproxima da realidade vivida por ela e por outras centenas ou até milhares de pessoas que lutam pela preservação ambiental.
O jornalismo ganha seus méritos, quando suas notícias e reportagens abrem espaço para histórias de vida e relatos humanizados que nos aproximam das pessoas e das causas ambientais, como se elas estivessem acontecendo do lado da nossa casa, e não a milhares de quilômetros de distância. O texto vai entrelaçando a história de Osvalinda a outras informações, trazendo à tona as contradições nos discursos políticos, as irregularidades na fiscalização da exportação de madeira e também números sobre o aumento de áreas de desmatamento, que teve seu maior patamar da década, e, paralelamente, a redução das autuações por esse crime.
A reportagem, relação com a história de Osvalinda, mostra como a desestruturação das atividades de fiscalização ambiental, podem deixar ainda mais desprotegidas pessoas que, como ela, defendem os direitos humanos e se opõe a realização desta prática ilegal. Ou seja, nos permite ver como as determinações governamentais, criadas e aprovadas em Brasília, que privilegiam a impunidade, podem impactar no dia a dia das pessoas Brasil a fora, colocando em risco suas vidas.
É claro, que, jornalisticamente falando, Osvalinda foi pauta desta matéria devido ao prêmio recebido internacionalmente, o que dá caráter de atualidade e novidade a notícia, porém, mesmo que não tivesse sido premiada, é uma cidadã com uma história de vida determinante para instituir a empatia da sociedade às causas ambientais. No mesmo dia da publicação da notícia do Mongabay, 18 de janeiro, o Jornal Nacional veiculou uma notícia com números sobre o aumento do desmatamento na Amazônia, incluindo o Pará, como estado em que o aumento do desmatamento foi mais significativo. Notícia bem produzida, com dados do Instituto Imazon, muitas imagens, mas na qual sentiu-se falta de uma Osvalinda para despertar no telespectador a sensibilidade às causas ambientais.
*Patrícia Kolling é jornalista, doutoranda em comunicação pela UFRGS e professora da UFMT.
Imagem: Captura de tela do Internacional Consortium of Investigative Journalists
Por Mathias Lengert*
Organizações responsáveis por certificar a origem sustentável da madeira, na prática, validam produtos provenientes de desmatamento. Essa é uma das graves denúncias reveladas pelo Deforestation Inc., uma investigação primorosa liderada pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ) em colaboração com 39 organizações jornalísticas de diversos países, três delas brasileiras: Poder 360, Revista Piauí, e Agência Pública.
A apuração revela que, apenas no Brasil, pelo menos 62 empresas certificadas pelo Forest Stewardship Council (FSC) concentradas na Amazônia Legal foram autuadas pelo Ibama. Os selos de auditores ambientais, como o FSC, agregam valor ao produto e possibilitam a exportação para mercados exigentes, como os europeus. No entanto, conforme a investigação, ao todo 48 organizações de certificação ambiental falharam em reconhecer crimes durante a averiguação das práticas socioambientais responsáveis.
Com a certificação em mãos, empresas com histórico de infrações ambientais em todo o mundo denominam-se sustentáveis, quando, na verdade, atuam sem comprometimento com a causa ambiental, configurando um caso exemplar de greenwashing (lavagem verde, em tradução livre).
A investigação publicada pelo ICIJ mostra que o jornalismo tem a responsabilidade de identificar e denunciar ocorrências de greenwashing. Isso implica em investimentos jornalísticos de fôlego, exigência de maior transparência de dados e informações das empresas e alfabetização ecológica do público, aproximando o leitor do conceito e auxiliando-o a identificar práticas enganosas.
Durante nove meses de apuração, os repórteres trabalharam em diversas frentes, analisando processos judiciais, dados de inspeção e registros de violação ambiental. A atuação colaborativa suscita reportagens com olhares mais abrangentes, capazes de promover conexões de problemas ambientais globais com os impactos locais. O consórcio é uma ferramenta potente por partilhar um senso colaborativo de fazer jornalismo, amparado na troca de conhecimentos e na verificação cruzada das informações.
Resta a necessidade de esforços exaustivos de contextualização desses dados para o público. O greenwashing é um fenômeno de disfarce da degradação ambiental e de construção de uma imagem pública falsamente positiva, que nem sempre é identificado pelo jornalismo, especialmente ao dar destaque para empresas em notícias sobre meio ambiente sem verificar se seus processos produtivos são, de fato, responsáveis. Em síntese, é essencial que o jornalismo desempenhe um papel crítico e posicionado na sociedade, questionando os impactos de empresas infratoras e a atuação dos órgãos de regulação, e educando o público sobre a relevância do tema.
* Mathias Lengert é jornalista, mestre em Comunicação e integrante do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS).
O diário multiplataforma catarinense Diarinho, que cobre Itajaí, Balneário Camboriú e região, publicou em 19 de janeiro notícia de dois parágrafos intitulada “Última casinha da avenida Atlântica vai virar prédio”. Trata-se da casa de madeira remanescente na mais badalada avenida do balneário que teve o metro quadrado mais caro do país, ao custo de R$ 11.635,00, em fevereiro, de acordo com o índice FipeZAP+ . Segundo a matéria, a casinha, construída em 1956 e em 1973 comprada pela família atualmente proprietária, será demolida e poderá dar lugar a um prédio de 12 andares.
Nos dias seguintes, outros veículos repercutiram a informação, como o site Camboriú Notícias, que acrescentou informações sobre os atuais proprietários, e o Balanço Geral Itajaí e o SC no Ar, do Grupo ND, retransmissor da Record. Nos dois últimos, os apresentadores citam o fato e a repercussão negativa nas redes, mas afirmam que se trata de propriedade particular e não tombada pelo município, o que permitiria a demolição. No Balanço Geral Itajaí, o apresentador minimiza a reação dos críticos e afirma que “o olho cresce, é natural” diante de valores implicados em negociações deste tipo. No SC no Ar, a repórter mostra o skyline da cidade, tomado por arranha-céus, e a apresentadora comenta: “Mas é linda Balneário Camboriú, né, é uma cidade linda, faz parte do progresso, da evolução, tá dentro da lei, tá tudo certo, então é isso aí”.
O “então é isso aí” de algum modo sinaliza o limite do jornalismo dominante hoje em Santa Catarina. Ao longo do mês de janeiro, Balneário Camboriú foi notícia por ficar semanas seguidas com a Praia Central – que passou por uma polêmica megaobra de alargamento para evitar a sombra projetada pelos arranha-céus na areia – totalmente imprópria para banho, de acordo com análise feita pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA). No mesmo período, a capital, Florianópolis, enfrentava uma epidemia de diarreia que foi notícia no Brasil e no exterior.
No livro “O segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo”, o teórico do jornalismo Adelmo Genro Filho mostra que a notícia não caminha do mais para o menos importante, máxima de manuais de redação vendidos por empresas jornalísticas, e sim do singular – matéria-prima do jornalismo – para o particular, sem descuidar do universal, pois essas três categorias filosóficas então ligadas. Ou seja, o jornalismo deve irradiar o singular, o irrepetível, o único, a forma originária do novo – deixando antever a transformação social – a partir da relação com as outras duas dimensões, evitando assim que a totalidade seja vista com uma mera soma de partes, e a realidade como um “(…) agregado de fenômenos destituídos de nexos históricos e dialéticos” (GENRO FILHO, 1989, p. 156).
A iminente derrubada da última casinha de madeira na mais badalada avenida de Balneário Camboriú é o fato singular, único, irrepetível. A relação com o particular se explica pela necessária conexão com a realidade deste município que exalta os prédios gigantescos, os moradores famosos e tenta tapar ou ignorar a ruína das praias e da paisagem, realidade compartilhada por inúmeras cidades no litoral brasileiro, entre elas Torres e Florianópolis, onde as disputadas paisagens provocam pressão para mudanças nos planos diretores atualmente em discussão. É importante mencionar que o citado índice FipeZAP+ lista, além de Balneário Camboriú, Itapema, Florianópolis e Itajaí, todas em Santa Catarina, entre os 10 primeiros lugares no ranking do metro quadrado mais caro do Brasil.
O universal, o “é isso aí” com o qual a apresentadora do SC no Ar conclui o comentário da matéria, está no “olho gordo” mencionado pelo apresentador do Balanço Geral Itajaí, que ele naturaliza: é o lucro com a renda da terra em um sistema em que as sobras da natureza são vendidas como parte dos negócios. É, portanto, um jornalismo que legitima a propriedade privada e o lucro acima do bem comum e limita ao mero discurso a preocupação ambiental, naturalizando os fenômenos sociais e suas consequências.
A última casinha de madeira da Avenida Atlântica ficou à espera de um jornalismo de fato para contá-la.
REFERÊNCIA:
GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo, Porto Alegre: Tchê, 1989.
* Jornalista, especialista em Educação e Meio Ambiente, mestre em Geografia e doutora em Jornalismo
A esperança na eleição do novo governo Lula (2023-2026) ainda alimenta mentes, corações e militâncias em março de 2023. Em poucos meses de governo, os indicadores são ruins para os territórios indígenas, porém em relação à situação do povo Yanomami todo um esforço de contenção de danos tem sido realizado. Em janeiro, a crise humanitária Yanomami teve atenção do governo federal e com isso houve ampla cobertura da imprensa em todos os meios e formatos. As manchetes trouxeram os números que chocaram: mais de 500 crianças mortas por causas evitáveis em quatro anos, estupros, violência, adolescentes grávidas. Fome, falta de condições de saúde. Eram denúncias antigas que finalmente tiveram destaque na mídia como um todo.
O caso pode ser considerado um exemplo de um tema que teve tratamento abrangente na imprensa, trazendo as conexões entre a exploração ambiental – por meio do garimpo ilegal – à contaminação por mercúrio da água em Terras Indígenas, que deveriam estar protegidas. É o que propomos quando falamos da necessidade de contextualização dos temas ambientais pelo jornalismo, conduzindo o leitor às condições de entender fatos, causas e consequências dos problemas enfrentados.
Quando focamos nas consequências, temos farto material. A palavra genocídio apareceu novamente na imprensa durante o período da cobertura desta crise, que foi contextualizada por entrevistas e artigos sobre direitos humanos, antropologia, saúde, com autoridades, militantes e especialistas. Em 20 de janeiro, a reportagem de Samantha Rufino e Valéria Oliveira, de Roraima para o Portal G1 trouxe elementos básicos para o entendimento da situação dos povos, indicando a questão alimentar como fundamental para o quadro triste de mortes de mais de 500 crianças e outras tantas em desnutrição crônica. No dia 24 de janeiro, Laís Seguin escreve para o Portal UOL e faz um histórico da tragédia com foco nas questões da saúde da população indígena.
Em fevereiro, algumas reportagens aprofundaram a questão mostrando porque políticas públicas e fiscalização do governo são essenciais para a região, como neste caso do texto de João Fellet e Leandro Prazeres na BBC. “O número de mortes por desnutrição de indígenas da etnia yanomami aumentou 331% nos quatro anos do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em comparação com os quatro anos anteriores”. No G1, a ênfase às práticas econômicas prevaleceu na análise sobre os fatos, em reportagem de Arthur Stabile e Poliana Casemiro: “Dados do Inpe mostram crescimento da mineração ilegal em áreas de reservas protegidas e especialista vê projeto de exploração econômica da Amazônia como fator determinante para a prática.”
De forma geral, para uma observação mais crítica, podemos pensar em causas que ficaram de fora da maioria dos relatos. Como por exemplo, para além da contaminação por mercúrio, a forte pressão de violência que impedia os indígenas de caminhar, coletar, plantar, usufruir do território, e como isso faz impacto direto na situação de fome e insegurança alimentar.
Lembramos, ainda, que há o olhar do jornalismo local que trouxe mais elementos para entender o contexto. Entre esses, destacamos o material da agência de jornalismo independente e investigativo Amazônia Real. Vale conferir a reportagem do IJNET que discute a cobertura, incluindo a percepção de jornalistas indígenas. Também por conta da explosão da pauta, outros veículos locais recuperaram denúncias de outros povos, como os Kaingangs no Rio Grande do Sul, como nesta notícia de Luis Gomes noSul 21.
A repercussão da crise também incluiu apontar que o desmatamento nas terras Yanomami cresceram 25% somente em 2022, com dados do INPE, como publicado por Diego Gimenes na revista Veja. As notícias sobre desmatamento e garimpo ilegal ainda vão persistir, pela complexidade das ações necessárias, que envolvem imediata desintrusão das terras, demarcação e homologação de processos dos territórios, para o bem dos povos originários e do planeta. Ao jornalismo cabe manter-se firme no acompanhamento da pauta, uma das mais importantes desta década.
* Jornalista, doutora em Comunicação e Informação, professora na UFSM, Integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). E-mail: claudia.moraes@ufsm.br
Este texto tem como base de reflexão material escrito por Nathália Gameiro, em 10 de outubro de 2022, em alusão ao Dia Mundial da Alimentação: não deixar ninguém para trás, do Programa de Alimentação, Nutrição e Cultura (Palin) da Fiocruz Brasília. Na data em que se comemorou o Dia Mundial da Alimentação no dia 16 de outubro, a reflexão deveria também ser sobre como a Amazônia, uma região rica em variedade e diversidade de espécies vegetais e animais pode contribuir para a erradicação da fome do planeta. A data está ancorada em quatro pilares: melhor nutrição, melhor produção, melhor ambiente e melhor qualidade de vida e foi escolhida para lembrar a criação da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), em 1945. A partir dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), o Dia Mundial da Alimentação de 2022 traz o desafio da redução das desigualdades, incluindo a segurança alimentar e nutricional do mundo. O consumo de produtos oriundos da floresta amazônica ainda se apresenta de uma forma bastante restrita aos moradores tradicionais da região e, na atualidade não chega nem mesmo a representar um fator positivo para a sustentabilidade da segurança alimentar para os nativos. E esses produtos estão distribuídos de forma bastante variada nos reinos animal e vegetal em toda a vasta extensão territorial que engloba o bioma amazônico. A exuberância da floresta com seus rios caudalosos, sempre apresentou para as populações exóticas uma impressão de fartura inesgotável, ledo engano. Na floresta tanto animais como vegetais possuem seus ciclos naturais de produção e reprodução, assim como locais apropriados para sua existência. O aumento da exploração e exportação dos recursos naturais utilizados como alimento fora da região colocou em risco a própria segurança alimentar da população regional, pois toneladas de pescado são exportados a cada ano para as demais regiões do Brasil, sendo que essa captura além do fato da retirada do produto ainda possui como efeito paralelo o desperdício de pescado não comercializável que é descartado, não permitindo a recuperação natural dos cardumes; as carnes de caça de animais silvestres já há algum tempo entraram no rol dos produtos proibidos pois a captura foi tão intensa e descontrolada que praticamente dizimou as populações de espécies comestíveis. A floresta amazônica não tem a capacidade de alimentar de maneira satisfatória a população humana que hoje se abriga em seu território. Contudo, essa floresta tem a capacidade de contribuir com uma variedade de produtos de origem vegetal e animal que dela tem origem. Finalizo minha breve reflexão aproveitando artigo sobre a utilização da semente do cupuaçu como um produto alternativo a amêndoa do cacau, encontrado no site do G1. Isso representa uma iniciativa inovadora tanto no campo alimentar como na produção de renda para a população regional, pois o cupuaçu até recentemente tinha como aproveitamento apenas sua polpa de sabor inconfundível para a produção de sucos e sorvetes. Suas amêndoas que correspondem a metade do seu peso eram descartadas no processo de produção da polpa. Da região amazônica apenas a polpa do açaí ganhou destaque de consumo fora da região em razão de sua popularização junto ao público praticante das academias de fitness, outras frutas regionais que oferecem sucos deliciosos como a bacaba, patauá, buruti, taperebá, têm seu consumo restrito a região e a população de mais idade. O jornalismo ambiental portanto, vai muito além das matérias oportunistas, educação e sensibilização devem ser sempre o foco de sua orientação.
*Doutorando pelo PPGCOM, DINTER UFRGS/UFAM. E-mail: ferreiraalberto2009@gmail.com
Referências
Nathália Gameiro, em 10 de outubro de 2022, em alusão ao Dia Mundial da Alimentação: não deixar ninguém para trás, do Programa de Alimentação, Nutrição e Cultura (Palin) da Fiocruz Brasília Cupulate: o desafio do ‘primo’ do chocolate que pode ajudar Amazônia, segundo pesquisadores. Por BBC em 09/10/2022 15h52 texto originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62665457
Imagem: o candidato Lula em campanha com indígenas em Belém (PA) – Foto: Divulgação/Ricardo Stuckert
Por Sérgio Pereira*
É impossível determinar o quanto o tema “meio ambiente” influenciou na escolha por Luiz Inácio Lula da Silva, presidente eleito por mais de 60 milhões de brasileiros. Afinal, o voto é secreto. Há algumas elementos, no entanto, que podem ajudar a mensurar quais foram os principais interesses do eleitor neste pleito de 2022.
Uma dessas ferramentas é uma pesquisa divulgada pelo Datafolha no início de setembro sobre as questões mais importantes para o eleitorado na hora de se definir entre os postulantes à Presidência. O formulário do levantamento, no entanto, relaciona apenas seis assuntos e não questiona os entrevistados sobre meio ambiente, conforme dados disponíveis no site do Tribunal Superior Eleitoral.
Aqui, permita-me um parêntese: o instituto de pesquisa poderia ter definido apenas temas genéricos no questionário aplicado, como educação, saúde, transporte, segurança ou meio ambiente. Ao contrário, colocou no levantamento três pautas gerais e outras três que faziam parte da campanha do candidato da extrema direita: defesa dos valores da família; combate à corrupção; e combate à violência. Já plataformas defendidas pelos candidatos da esquerda, como combate à fome, inclusão social ou defesa da Amazônia, por exemplo, foram ignoradas.
Nesta pesquisa, os entrevistados elencaram como suas principais preocupações eleitorais a saúde, com 34%; educação, com 24%; e emprego e renda, com 17%. O combate à corrupção aparece em quarto lugar, com apenas 10% de interesse; seguido da defesa dos valores da família, com 7%; e combate à violência, com 6%.
Outra pesquisa foi elaborada no início de setembro, quando o PoderData entrevistou 3.000 pessoas sobre a importância da Amazônia para o desenvolvimento da economia brasileira, sendo que 74% responderam afirmativamente. O levantamento encomendado pelo Instituto Clima e Sociedade (iCS), no entanto, fixou-se apenas no Bioma Amazônico, com um viés econômico e sem perguntar até que ponto esse item influenciaria na hora do voto, não sendo possível, portanto, utilizá-lo como indicador nesta breve pesquisa.
Um novo instrumento que nos auxilia a medir o interesse sobre determinados temas, mesmo que seja de uso restrito, é o Google Trends (GT). Para quem não se aventurou ainda a usar, o GT é “uma ferramenta de avaliação de dados que permite que os usuários personalizem as pesquisas por termos e frases relevantes e monitorem as tendências de SEO (Search Engine Optimization ou otimização de mecanismos de busca) em qualquer período definido”, conforme definição da própria plataforma.
Em outubro, o GT disponibilizou um levantamento sobre os principais assuntos pesquisados envolvendo os dois candidatos do segundo turno. Importante destacar que a aba ainda está ativa e continua sendo atualizada.
Os internautas, quando pesquisaram sobre Lula nos últimos 90 dias, procuraram respostas para questões como o boné usado pelo candidato em determinado dia da campanha com as letras “CPX” (que significam “complexo do Alemão”, mas que foi usado como fake News por parte do adversário como sendo de uma facção criminosa) ou sobre a participação do ex-presidente em entrevistas, como no Programa do Ratinho ou no podcast Flow.
Já sobre Jair Bolsonaro, no mesmo período, as 25 principais consultas envolveram pontos com “pintou um clima” ou “pedófilo” (sobre um comentário feito sobre um momento de campanha em que encontrou meninas venezuelanas entre 14 e 15 anos), “canibal” (outra declaração mais antiga sobre episódio em que se mostrou interessado em comer um indígena), além de participações suas em programas de entrevistas.
Nos dois casos, nada envolvendo assuntos da esfera ambiental, o que já é revelador sobre o desinteresse do eleitor pelo assunto.
Um dos objetivos da imprensa é despertar a sociedade sobre assuntos que são relevantes. Em rápida análise sobre o principal jornal do RS, é possível constatar que Zero Hora divulgou pelo menos sete matérias envolvendo “eleições e meio ambiente” em outubro, durante a campanha do segundo turno. Entre elas, um texto tratando do desmatamento na Amazônia no governo atual e em outra comparando propostas dos dois candidatos sobre diversos temas e entre eles foi incluído o meio ambiente. Ou seja, não houve omissão por parte de ZH, mas o jornal poderia ter explorado mais o assunto por sua importância não apenas para os brasileiros, mas para todo o mundo.
Pode-se afirmar que a vitória de Lula passa por uma série de fatores. Pautas como combate à fome, mais empregos e defesa da democracia foram fundamentais neste processo eleitoral. Mas a estratégia equivocada de Bolsonaro durante a pandemia da Covid-19, sua total inabilidade para tratar os principais problemas nacionais e seu estilo insultuoso também pesaram na decisão do eleitor. Não há indícios, porém, para afirmar que os temas ambientais foram decisivos para a grande maioria do eleitorado brasileiro, infelizmente. Mesmo assim, os 60 milhões de brasileiros que miraram em outros interesses acabaram por dar um basta à política devastadora de Bolsonaro. Mais quatro anos poderiam ser irreversíveis e, por isso, o mundo agradece.
*Jornalista, servidor público, mestrando em Comunicação e Informação pela UFRGS e integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Meio ambiente