Tudo precisa ir a algum lugar (ou: meu copinho vai para o oceano)

Por Reges Schwaab*

Toneladas de plástico. O Brasil é o maior poluidor plástico da América Latina, conta uma das reportagens sobre problemáticas socioambientais que merecem destaque nestas últimas semanas. Em texto para O Eco, a atenta Paulina Chamorro, realizadora do @vozesdoplaneta.podcast, costura dados estarrecedores sobre a poluição plástica e algumas considerações importantes que ela ouviu desde a mais recente Conferência dos Oceanos. Em seu perfil no Instagram, a jornalista compartilha uma frase marcante no evento realizado em Lisboa, em julho passado. A poluição plástica no mar é como um derramamento de óleo lento e constante. E muito intenso. Na reportagem, a participação exponencial e ativa do nosso país como um dos propulsores do problema é destaque.

Daqui, mandamos 325 mil toneladas de plástico direto para os mares todos os anos. Aquele nosso “inocente” copinho descartável de café deve estar lá, portanto. Ou um dos muitos garfinhos para os bolos de aniversário vida afora. Ou uma das tantas coisas de plástico que já tivemos em casa. Ou, pelo menos, os fragmentos do “inocente” copinho descartável de café, do garfinho, da sacolinha. Com certeza estão lá. Todos participamos disso. Nosso cotidiano descartável está impregnado de plástico de uso único. Não há política pública contundente que possa frear essa linha de frente da destruição do planeta.

Um modo acelerado de levar a vida está ramificado por todos os lados, mas desconectado de tudo. Se lembrássemos, conscientes, do percurso do copinho plástico, se fôssemos atentos às conexões, o descartável não teria tanto espaço. Ainda não é assim, no entanto. “Tudo se conecta com tudo o mais”, diz uma das quatro leis informais da ecologia de Commoner. Só que não prestamos atenção. Em casa, no trabalho, em nossa cidade, em nosso país, em Brasília.

A imensidão de plástico que embrulha nossa vida e a de outros seres (que não optaram pelo plástico) está, em geral, na trilha da fabricação de embalagens e outros itens descartáveis. A reportagem contabiliza 2,95 milhões de toneladas produzidas por ano. Exemplificando: é o equivalente à produção de 500 bilhões de unidades de itens de uso único no Brasil. Como o “copinho” e o “garfinho”. E “tudo precisa ir a algum lugar”, continua Commoner na segunda lei informal da ecologia.

A terceira lei é: “a natureza sempre tem razão”. Isso faz pensar em muita coisa, inclusive no fato de que uma fruta, que tem casca, não precisaria estar embalada em isopor e coberta de filme plástico, para ficar em um exemplo corriqueiro.  Commoner termina: “nada vem do nada”, a quarta lei informal da ecologia. É o que assinalamos antes, as coisas estão absolutamente interligadas. Não é um papo de jovem místico, é lógica e observação.

Nós já sabemos disso, em termos gerais. Esse conceito faz sentido para nós. Mas nossa compreensão é apenas intelectual, não é da ordem de uma ética internalizada, refletida. Já lemos que não existe nada isolado no nosso sistema terrestre. Mesmo assim, seguimos descartando a vida, permeando tudo que é possível com plástico, enviado rapidamente a cantos do planeta. Nosso plástico já forma continentes no mar, está depositado na Antártida. Depois volta até nós, pois ingerimos microplástico todos os dias.

Outro alerta muito pertinente da matéria é o de que “reciclável” não quer dizer que seja, efetivamente, reciclado. Na sociedade descartável e desatenta, o selo de reciclável serve muito bem à nossa tentativa de sermos “legais” e termos a consciência tranquila. De fato, todavia, fazemos pouco ou quase nada. Valorizamos mais as opções passíveis de foto nas redes sociais. Na sociedade de selos e símbolos pouco perenes, seguimos achando que o destino final do saco de recicláveis – lixo seco que separamos (ainda bem!) – é algum lugar perto da nossa casa, no máximo. Algo bacana parece que vai acontecer, porém não temos real dimensão ou a informação completa sobre todo processo com os resíduos que geramos.

Quando andamos pelas cidades antes da coleta de resíduos, o cenário é arrasador. Se pegarmos uma ponta disso, se puxarmos os fios, se multiplicarmos o que vemos em escala ampla, podemos ter alguma noção do tipo de realidade que nossa sociedade está construindo. E não é a realidade de um futuro distante. Por isso, trata-se de uma pauta que precisa estar sempre no horizonte de forma insistente. O jornalismo precisa ajudar a puxar cada um desses fios.

A reportagem de Paulina Chamorro é reflexo de uma apuração importante, capaz de fazer alguma ranhura na casca grossa dos nossos hábitos desatentos. Junto, levanta também o olhar sobre as questões macro, que dependeriam de ação política e governamental, tão distante quanto a possibilidade de uma sociedade sustentável (o que não nos impede de seguir construindo um caminho). A nossa vida está aqui, está na Amazônia, está no córrego que passa no fundo da nossa cidade, está no meio do oceano. Nossa vida está conectada a tudo, em toda parte. As conexões são incalculáveis. Em geral, é uma pena, permanecemos embalados pela incompreensão de qual é o nosso lugar nisso tudo.

Já abordamos a problemática em outros textos aqui no Observatório. Você pode vê-los aqui.

* Jornalista, doutor em Comunicação e Informação, professor na UFSM e integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS).

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Velhas promessas e novas questões: a Baía de Guanabara e a privatização do saneamento

Imagem: Baía de Guanabara. Fonte: Pixabay

Por Michel Misse Filho*


Importante cartão-postal brasileiro e recorrente pauta jornalística ambiental, não é novidade dizer que a Baía de Guanabara padece de um processo de poluição que vem de décadas. Desde 2001, o 18 de janeiro é o Dia Estadual da Baía de Guanabara, ocasião menos celebrativa do que reflexiva, que remonta ao crime ambiental decorrente do vazamento de um duto da Petrobrás, com graves consequências para o ecossistema — sobretudo no fundo da baía, longe dos bairros turísticos.


A data deste ano vem acompanhada de “velhas novidades” para a região. A concessão do saneamento básico para a iniciativa privada promete a resolução do histórico problema nos municípios do entorno da baía, como São Gonçalo e cidades da Baixada Fluminense, na periferia metropolitana, que contam com alguns dos piores índices de tratamento de esgoto do Brasil¹; junto às favelas, elas também detêm as maiores concentrações de pessoas pobres e negras da região metropolitana.


Ao longo das últimas semanas, a baía foi assunto em três matérias publicadas pelo jornal Folha de S. Paulo. A primeira, “Baía de Guanabara ‘fura fila’ e vê nova promessa de despoluição”, faz uma boa retrospectiva das muitas promessas fracassadas de despoluição e apresenta dados sobre saneamento e qualidade da água. Mas a notícia, de fato, é a implantação de um sistema emergencial (o “coletor de tempo seco”), ao longo dos próximos cinco anos, antes do sistema tradicional de esgoto (o “separador absoluto”). Para que se diminua o passivo ambiental da baía de forma mais rápida e com menor custo, o esgoto seguirá sendo escoado nas redes pluviais, mas será coletado e tratado antes do despejo nos rios — nos dias de chuva, todavia, o sistema não dá vazão, as comportas se abrem e a poluição segue o curso. Ficam adiadas, assim, as obras definitivas de saneamento de residência por residência; e permanecem os valões de esgoto na porta das casas e os riscos à saúde da população. A controvérsia é bem colocada e trabalhada pelo jornalista, com bons argumentos de ambos os lados: no fundo, estaria a despoluição de um ambiente sendo priorizada em relação à saúde das pessoas?


A resposta não é trivial, o assunto não é leviano e o consenso mais palpável é que os dois sistemas, em algum momento, precisam ser concretizados de forma complementar num modelo duplo. A segunda matéria da Folha, no entanto, dá pistas sobre interesses privados e alertas à sociedade. Numa entrevista com o presidente da concessionária, a promessa de limpar a Praia de Botafogo em cinco anos intitula a matéria, jogando luz sobre o principal cartão-postal da cidade. A recuperação da baía é tratada como oportunidade de projeção internacional da empresa; e, por que não, podemos supor, de avalizar e justificar a privatização do saneamento Brasil afora. Um olhar atento ainda deve questionar as implicações imobiliárias do empreendimento, sobretudo pela dificuldade — admitida na entrevista — de tornar balneáveis as praias da periferia, próximas à Ilha do Governador.

Longe de uma discussão que contraponha pessoas e ambiente em polos distintos, é preciso garantir que os benefícios de lazer, econômicos, sanitários etc. de uma eventual despoluição contemplem toda a população da desigual baía. A terceira e última matéria, por fim, retoma pontos já conhecidos da população, como a triste constatação de que os botos-cinza, presentes no brasão municipal, tendem ao desaparecimento; e o bom exemplo da preservação e recuperação de manguezais da região. Que desenterremos, do fundo da lama dos mangues do recôncavo, a esperança de uma baía economicamente indutora, ambientalmente rica e socialmente igualitária.

¹O Ranking de Saneamento 2021 do Instituto Trata Brasil coloca quatro cidades do entorno da baía entre as dez piores do Brasil em tratamento de esgoto — as únicas fora da região Norte.

* Jornalista, doutorando em Sociologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ) e mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). E-mail: michelmisse93@gmail.com