‘Nem um cm demarcado’: série da Folha escancara a rotina de violência diante das omissões do Governo Bolsonaro

Capa da Folha no dia 10 de outubro (reprodução)

Por Ângela Camana*

Tomado pelo clima eleitoral, o noticiário brasileiro tem se desdobrado para analisar as tendências para o próximo dia 30, desmentir informações falsas e repercutir as agendas dos candidatos. Diante de tarefas árduas e sem grandes propostas que a mencionem, a pauta ambiental parece perder fôlego no jornalismo nacional – uma exceção louvável é a série “Nem um cm demarcado”, cujas reportagens vêm sendo publicadas pela Folha de S. Paulo. Neste esforço de investigação, Vinicius Sassimi e o fotógrafo Lalo de Almeida percorreram 6.000 quilômetros pela Amazônia a fim de averiguar os efeitos da política de “demarcação zero” do Governo Bolsonaro.

O nome da série, aliás, é uma referência à fala de Jair Bolsonaro em 2018, quando o então candidato à presidência afirmou que, em sua gestão, não demarcaria “nem um centímetro sequer” de Terras Indígenas. A promessa não só foi cumprida como o desmonte da FUNAI e da política ambiental atuam para a intensificação da violência na região amazônica. Nos últimos anos, tornou-se notícia comum a invasão de territórios tradicionais por garimpeiros, madeireiros, piratas e outras práticas ilegais. As reportagens da série, como a que figurou na capa da Folha neste dia 10, indicam que a omissão do Estado modificou a forma como povos indígenas vivem e, em uma tentativa de defenderem as suas próprias vidas e a floresta, se organizam. Estratégias como a autodemarcação e criação de guardas florestais indígenas surgem no vácuo do Estado a fim de conter a escalada da violência, ainda que se mostrem insuficientes diante do cenário que se impõe.

Não parece, então, ser por acaso a coincidência entre o chamado arco do desmatamento e a prevalência de votos para Jair Bolsonaro no primeiro turno. As reportagens da série da Folha nos convidam a identificar os efeitos políticos de escolhas institucionais realizadas nos últimos quatro anos. É justamente por isto que preocupa a ausência da pauta ambiental no cenário eleitoral, seja nas agendas dos candidatos ou na cobertura cotidiana, que não os demanda suficientemente a se posicionarem. A despeito das dificuldades que o debate público tem enfrentado, talvez caiba ao jornalismo brasileiro, por meio de trabalhos de qualidade como os da série em questão, contribuir para sua qualificação.

* Jornalista e socióloga. Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisadora colaboradora no Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental e no grupo de pesquisa TEMAS – Tecnologia, Meio Ambiente e Sociedade. E-mail: angela.camana@hotmail.com.


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O desmatamento em números, sem causas e consequências

Imagem: Captura de tela de notícia do dia 18.11.21 publicada na Folha de S. Paulo

Por Patrícia Kolling*

Na última semana a pauta foi, novamente, o aumento da taxa de desmatamento na Amazônia, que cresceu 22% em um ano, com a devastação de 13.235 km2 entre agosto de 2020 e julho de 2021. Os dados foram divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e mostram o maior desmatamento dos últimos 15 anos. O novo levantamento do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) confirmou o aumento no desmatamento, com dados de janeiro a outubro de 2021, chegando a uma área de 9.742 km2, o equivalente a mais de 6 vezes o tamanho da cidade de São Paulo.

Sobre o tema, repercutiram na imprensa também as declarações de autoridades brasileiras contradizendo ou justificando os dados divulgados. O presidente Jair Bolsonaro afirmou na segunda-feira, dia 15, durante evento com investidores em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, que “os ataques que o Brasil sofre em relação à Amazônia não são justos”, que a floresta “tem mais de 90% de área preservada” e que está “exatamente igual a como era em 1500”. Na Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP26), o presidente havia ressaltado que tem protegido a Amazônia e o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, anunciou que o Brasil deverá zerar o desmatamento ilegal em 2028.


O ministro do Meio Ambiente também sustentou na semana passada que os números do INPE “não refletem a ação do Governo nos últimos meses” com o destacamento dos integrantes da Guarda Nacional. Para completar o vice-presidente, Hamilton Mourão, disse que o crescimento do desmatamento na Amazônia está associado ao avanço da população na região.


Ainda ganhou destaque na imprensa o fato de que o documento do INPE com os dados oficiais ter a data de 27 de outubro, mas ser divulgado apenas em 18 de novembro, depois de ser encerrada a COP 26, em Glasgow.

Números, declarações oficiais, questões políticas vieram à tona com o relatório do INPE. Mas, e o desmatamento: quais as causas, quem são os responsáveis, quais os prejuízos sociais, ambientais e econômicos, qual a importância da floresta em pé para a manutenção do clima brasileiro e mundial, quais as relações do desmatamento com a agropecuária, quais os riscos que o Brasil corre ao desmatar a Amazônia? Infelizmente, nenhuma das matérias jornalísticas, acessadas, respondiam essas questões.

A causa ambiental é urgente, e independente da política editorial de cada veículo e da busca pela imparcialidade, já não é mais possível deparar-se com textos que trazem números e declarações contraditórias e, muitas vezes, falsas, como já abordadas neste observatório, e que confundem o leitor que busca informação. Já que a imprensa brasileira se alimenta do factual, precisa aproveitar esses momentos, no caso, a divulgação dos dados do INPE, para tratar em profundidade e com informações contextualizadas as questões ambientais. A informação é a chave para a educação e as ações na preservação do meio ambiente e a imprensa um dos principais canais de difusão.


Deveria estar no manual de redação de todas as organizações jornalísticas, a obrigatoriedade de que todas as notícias ambientais, que são factuais e sintéticas, viessem acompanhadas por reportagens que tratassem a temática em profundidade, abordando causas e consequências.

*Patrícia Kolling é jornalista, professora da Universidade Federal de Mato Grosso – Campus Universitário do Araguaia e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.