A inserção dos refugiados e deslocados climáticos na cobertura da catástrofe no RS

Crédito: Isabelle Rieger/Sul21

Por Eloisa Beling Loose* e Cláudia Herte de Moraes**

As enchentes severas em diferentes municípios gaúchos provocaram uma fuga em massa. Muitos gaúchos tiveram que abandonar suas casas. Impossível não se comover com as imagens de desabrigados e desalojados, com poucos pertences, carregando crianças, animais domésticos e o que mais pudesse ser levado nas mãos diante do caos instalado. Para onde ir? 

A situação vivenciada por grande parte da população atingida, transmitida por canais de comunicação diversos, acabou trazendo à tona a expressão “refugiado climático”. O repórter Juliano Castro, da RBS, foi um dos primeiros a trazer essa questão para a cobertura das enchentes na televisão. Depois disso, muitos outros jornalistas e comentaristas colaboraram para popularizar a ideia de que, se não fosse a crise climática, essas pessoas não teriam que deixar suas casas.

O Nexo trouxe este debate, indicando que o uso do termo pode ser uma forma de clamar pela atenção ao desafio da emergência climática, que passa a ser cada vez mais presente na vida de milhões de pessoas no planeta. 

Na cobertura da imprensa, ao longo dos últimos dias, pode-se observar que tanto as imagens como a referência ao deslocamento humano são destacados. G1, Uol, Folha de S.Paulo e outros veículos enfatizaram a questão em seus títulos. As cidades foram abandonadas porque foram inundadas e/ou ainda apresentavam riscos de isolamento, desabastecimento, dentre outros. A imagem de “cidades fantasmas”, como foram retratadas Porto Alegre  e Eldorado do Sul,  reforçam o efeito do deslocamento massivo.

Há uma diferença entre deslocados e refugiados climáticos/ambientais: os primeiros seriam aqueles sujeitos à migração forçada por catástrofes climáticas, mas que não chegaram a atravessar fronteiras internacionais; já os refugiados são aqueles que, motivados pela mesma situação, são obrigados a deixar seu país de origem. A situação dos refugiados climáticos está inserida no Direito Internacional, com regulação específica e uma agência da ONU dedicada ao tema, a ACNUR. Juridicamente, a expressão “refugiado” não deve ser usada no caso da situação vivenciada pelos gaúchos. Ademais, é preciso ter cuidado para não banalizar o uso, já que a saída temporária das casas não é o mesmo que  não conseguir retornar para o lugar em que se vivia devido às consequências geradas pelas chuvas fortes.

No entanto, sob o ponto de vista do jornalismo, faz  sentido nomear essa consequência das enchentes com o adjetivo climático, realçando a conexão entre a intensificação das mudanças climáticas e a maior frequência dos eventos extremos. Além disso, dar visibilidade ao números de desabrigados e desalojados revela parte da dimensão da tragédia, já que ser obrigado a deixar o lugar que se vive, para além dos prejuízos materiais, traz perdas imateriais, de memórias, pertencimento e convívio, que são imensuráveis.

A crônica da jornalista Juliana Bublitz, de ZH, descreve os momentos em que os moradores de classe média da capital Porto Alegre são avisados sobre a urgência da evacuação no dia 6 de maio. A cena é de estranhamento, com ruas lotadas, impaciência, insegurança, medo, incerteza. O relato lembra o sentido de estar fora de seu lugar, traz a dimensão humana do desastre que se transfigura em tragédia diante de fatores agravantes, como a falta da manutenção do sistema de bombas que retiravam a água da cidade. Contudo, é sempre bom ressaltar, as classes vulnerabilizadas tendem a sentir esse impacto de forma mais aguda e prolongada, por não terem as mesmas condições socioeconômicas para lidar com os efeitos em cascata provocados pela eclosão do desastre.

A análise de Leonardo Sakamoto no UOL, no mesmo dia, é direta: “Não temos guerra, mas teremos cada vez mais refugiados ambientais”. Ele afirma: “tudo o que tem acontecido, ocorrido, essas pessoas mortas, ilhadas, desaparecidas, desabrigadas, e esses refugiados ambientais. [Isso] que a gente tem que cravar. O pessoal fala ‘o Brasil não tem refugiados, tragédia, vulcão, terremoto, guerra’. Tem sim!”.

O resultado dos eventos climáticos extremos no Rio Grande do Sul é desolador. Levando-se em conta um dos pressupostos do Jornalismo Ambiental, o engajamento, pensamos que há pertinência de trazer a referência da urgência e da relevância dos fatos. Desta forma, o jornalismo demonstra sua função social e política na sociedade. Neste sentido, usar o termo refugiado climático pode ser um caminho para evidenciar a conexão com o colapso do clima. Isso aparece na reportagem do Intercept Brasil: “Segundo números da Defesa Civil, divulgados na manhã desta quarta-feira, 8, 95 mortes foram confirmadas, e há 128 pessoas desaparecidas. Mais de 158 mil gaúchos precisaram deixar suas casas por causa das enchentes que assolam o estado. Nove mil só na capital, Porto Alegre. Mais de 66 mil pessoas estão em abrigos espalhados pelos 414 municípios afetados – mais de dois terços do estado. São os chamados refugiados climáticos: pessoas submetidas a um deslocamento forçado por conta de um evento climático extremo que coloca em risco sua existência.”

No dia 8 de maio, em função da calamidade gaúcha, um projeto de lei foi apresentado pedindo a definição da condição de “deslocado interno por questões climáticas”, como informa Sakamoto. A proposta do deputado pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ) diz que “Entende-se como deslocado interno por questões climáticas, qualquer pessoa, residente no Brasil, forçada a deixar seu habitat tradicional, temporária ou permanentemente, por causa de uma perturbação ambiental acentuada, desencadeada ou não por terceiros, que comprometam sua existência e/ou afete seriamente sua qualidade de vida”. O objetivo desta mudança é facilitar o acesso a políticas públicas, em especial ao financiamento da casa própria no programa Minha Casa, Minha Vida. A questão foi repercutida no UOL, por Sarah Moura. no dia 9 de maio.

Assim, embora o termo siga em discussão nos organismos internacionais de Direitos Humanos para uma definição aceita para fins jurídicos, na esfera do debate público e diante da calamidade e do sofrimento humano, acreditamos que o uso das expressões refugiado climático ou ambiental é uma forma de o jornalismo visibilizar algumas consequências humanas que nem sempre aparecem em meio à cobertura a partir dos números. Quem sabe, ao pensarmos no que sustenta a designação de um deslocado ou refugiado climático, possamos recordar que o objetivo maior de uma Nação é  dar condições dignas de vida e segurança ao seu povo. E sem cuidado ambiental isso não é possível.

* Jornalista, doutora em Comunicação e em Meio Ambiente e Desenvolvimento. Vice-líder do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). E-mail: eloisa.beling@gmail.com.

** Jornalista, doutora em Comunicação e Informação, professora na UFSM, Integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). E-mail: claudia.moraes@ufsm.br.

RS embaixo d’água: observações neste início da cobertura do desastre

Fotografia: Isabelle Rieger

Por Clara Aguiar* e Eloisa Beling Loose **

Nesta semana estamos acompanhando a cobertura da imprensa sobre mais um desastre que assola o estado do Rio Grande do Sul. Chuvas extremas provocaram alagamentos, aumentaram o volume dos rios e encharcaram encostas. A cidade de Santa registrou o maior volume de chuva no mundo nesta quarta-feira, com Bento Gonçalves, Santa Cruz do Sul e Soledade também presentes no topo do ranking, conforme dados do site Ogimet. Na mesma noite, do dia 1º de maio, o governador Eduardo Leite decretou estado de calamidade pública. Mais de 110 municípios foram atingidos; alguns deles, no Vale do Taquari, ainda se recuperavam da cheia de setembro de 2023, considerada a maior em, pelo menos, 150 anos.

Enquanto a chuva cai sem parar, a imprensa busca, em tempo real, dimensionar os impactos do que esse fenômeno climático extremo significa no cotidiano das pessoas. No feriado do Dia do Trabalhador, o Jornal do Almoço trouxe um panorama de diversas cidades atingidas pelas cheias, relatando, principalmente, as dores daqueles que tiveram que deixar suas casas e perderam tudo o que tinham. Se, por um lado, os testemunhos aproximam os telespectadores da situação e podem ser importantes impulsionadores de doações e pressão pública por resposta emergencial, por outro, podem sobrepor outras questões importantes. Para além da necessidade de empatia dos profissionais que entrevistam os afetados, pessoas em situação de alta vulnerabilidade, é preciso entender qual o propósito de tal cobertura. Quem, afinal, beneficia-se com tamanha exposição? Quem mais poderia ser ouvido? É possível reportar o desastre de outra forma? 

Também reforçamos a urgência de desnaturalizar os desastres. De forma geral, os gatilhos que desencadeiam as tragédias são tidos como os causadores. A imprensa reproduz que as chuvas matam, provocam destruição, causam estragos. Contudo, é importante pontuar que o risco de desastre decorre de uma articulação entre as ameaças naturais, que estão sendo intensificadas em magnitude e frequência pela emergência climática, e a vulnerabilidade, decorrente de aspectos sociais, econômicos e culturais. O desastre não ocorre apenas em razão de uma chuva extrema, mas também porque há ações humanas que colocam pessoas em situações frágeis, como o valor da moradia em espaços seguros e a falta de medidas preventivas ou de investimento na adaptação das construções diante dos novos cenários. Culpar as chuvas ou os temporais é um discurso que desvia o olhar dos problemas estruturais das nossas cidades e do que entendemos por desenvolvimento.

A cobertura de desastres, especialmente este com extensão e impactos inéditos, é um grande desafio. A informação correta e atualizada sobre a situação dos resgates, abrigos e fornecimento de insumos básicos, como água e alimentos, assim como de novos alertas, tem sido realizada de forma incessante por boa parte da imprensa gaúcha. A programação habitual foi suspensa para orientar a população sobre as prioridades de cada dia, auxiliar na gestão da resposta e desfazer boatos e outras formas de desinformação que geram pânico e prejudicam o trabalho de manter as pessoas a salvo de perigos.

Além disso, os jornais locais têm priorizado relatar a atuação imediata do governo – no  âmbito municipal, estadual e federal, diante dos efeitos desse evento extremo. É crucial manter a população atualizada neste momento de calamidade, no entanto, uma abordagem que se limita a apresentar os fatos de forma simplista e factual não oferece aos cidadãos uma compreensão completa das reais causas da tragédia na qual estão submetidos e das estratégias possíveis para enfrentá-las. 

É essencial que o jornalismo local também questione sobre o andamento do plano de enfrentamento do governo para prevenção, adaptação e mitigação aos efeitos das mudanças climáticas. Na matéria “Em meio à tragédia no RS, Eduardo Leite e deputado do PSOL discutem por orçamento destinado à Defesa Civil”, O Globo repercutiu as críticas feitas pelo deputado estadual da oposição Matheus Gomes (PSOL) ao governador Eduardo Leite (PSDB) sobre o baixo investimento estadual no enfrentamento da crise climática. Para o ano de 2024, o Rio Grande do Sul possui um orçamento de menos de 0,2% para enfrentar eventos climáticos. Apenas R$ 115 milhões foram investidos pelo Governo Leite nessa área, de um valor total de R$ 83 bilhões. Desse valor, somente R$ 50 mil foram destinados para a Defesa Civil. 

Vale lembrar ainda que a flexibilização das leis ambientais vai na contramão das ações de prevenção e mitigação de acontecimentos como esse. Mesmo que os tomadores de decisão reforcem o discurso que não seja hora de apontar culpados, justificando que é preciso salvar vidas e restabelecer os serviços básicos para não colapsar as cidades, a cobertura não pode silenciar sobre as decisões que tornaram a população gaúcha mais vulnerável às consequências climáticas.

No contexto atual, é inaceitável que o jornalismo trate eventos extremos como uma mera ameaça natural. O alto impacto dos desastres nas cidades é também uma consequência da falta de planejamento governamental na gestão da emergência climática. Na cobertura pós-desastre, os jornalistas devem ser mais cautelosos ao apontar o microfone para o rosto das vítimas e optar por direcioná-lo mais incisivamente ao governador (e outras autoridades competentes), buscando questioná-lo sobre o andamento de planos de curto, médio e longo prazo de adaptação e mitigação aos efeitos das mudanças climáticas.

Um último aspecto que destacamos é a pouca visibilidade da ligação entre desastres e mudanças climáticas. Embora alguns especialistas sejam entrevistados, como foi o caso do pesquisador Francisco Aquino na cobertura do dia 1º de maio no Jornal do Almoço, a mensagem deve ser consistente e não pontual.  O ponto de partida dos impactos hoje presenciados é a escolha por um sistema socioeconômico que explora a natureza em razão de benefício de curtíssimo prazo para alguns poucos, que ignora a finitude dos recursos e suas externalidades negativas. É essa forma de viver, apresentada como a única possível, que não deve ser esquecida quando um novo desastre eclode.

*Clara Aguiar é estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). E-mail: claraaguiar14@hotmail.com.

**Eloisa Beling Loose é jornalista e pesquisadora na área de Comunicação de Riscos e Desastres. Vice-líder do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). E-mail: eloisa.beling@gmail.com.

O desafio da cobertura ambiental para além das catástrofes

Imagem: Gustavo Ghisleni / AFP / MetSul Meteorologia

Por Débora Gallas*

Em uma das edições do Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo Ambiental, talvez há uns dez anos, lembro que uma participante perguntou às demais presentes: como sensibilizar as pessoas sobre os efeitos das mudanças climáticas no planeta com imagens que sejam mais próximas da gente? Ela gostaria de exemplos para além da imagem-síntese do aquecimento global àquela altura – a do urso polar ilhado por conta do derretimento de gelo no Ártico.

Infelizmente, neste momento, estamos rodeadas de imagens exemplares sobre a emergência climática. Após um 2023 marcado por alto volume de chuvas e inundações, novamente acompanhamos o noticiário sobre os eventos climáticos que atingem o Rio Grande do Sul. A população brasileira sabe que as mudanças climáticas são realidade porque sente na pele seus efeitos.

Mas, se nossa preocupação há dez anos era informar e sensibilizar as pessoas sobre esses riscos através do jornalismo porque ainda havia tempo hábil para buscar alternativas que reduzissem danos e impactos, nosso desafio hoje é manter o público engajado para além do bombardeio de informações catastróficas. A mera reprodução do discurso de fontes oficiais reforça essa sensação porque está associada, por um lado, à ideia de que a tragédia é imprevisível e, por outro, de que ela é inevitável.

Estes dois pontos estiveram presentes no discurso do governador do estado, Eduardo Leite, em dois momentos distintos. No ano passado, o argumento de que as chuvas pegaram o estado de surpresa chegou a ser contestado ao vivo pelo jornalista André Trigueiro na GloboNews. Agora, como repercutem os veículos locais, como GZH, Leite vem usando as redes sociais para compartilhar informes da Defesa Civil sobre o agravamento da situação em áreas de risco.

Acompanhar as falas oficiais é, obviamente, uma tarefa fundamental do jornalismo, mas é importante variar o tom da cobertura e incluir aspectos diversos que demonstrem a complexidade do problema. Isso pode ser feito através de um olhar crítico ao discurso desses atores frente a posicionamentos recentes que podem levar ao agravamento da crise climática, como o incentivo à exploração de carvão no Rio Grande do Sul, tema que foi objeto de análise recentemente neste Observatório.

Pode vir também da escuta de outras fontes, como as especialistas, como fez esta matéria de O Globo, mesmo à distância. Além de explicar a origem do fenômeno, o texto incluiu a perspectiva de entidades da sociedade civil que acompanham há anos, com preocupação, o impacto de atividades como a monocultura de soja, por exemplo, para a regulação climática da região.

Por fim, urgem coberturas que mostrem à população a necessidade de políticas públicas que se antecipem às catástrofes – e que há muitas propostas boas por aí, com origem nos próprios territórios impactados, porém sujeitas à vontade política para terem seu potencial transformador aumentado.

O 20º Acampamento Terra Livre, por exemplo, que reuniu milhares de indígenas de todo o país em Brasília na semana passada, buscou pautar a contribuição da luta indígena pelo território para a conservação dos ecossistemas brasileiros – luta essa que consequentemente reverbera em estratégias de resiliência do país frente às mudanças climáticas e à perda de biodiversidade.

Portanto, cabe ao jornalismo acompanhar esses movimentos e manter o público engajado em possíveis soluções para que não haja apenas resignação e inação diante da catástrofe.

* Jornalista, doutora em Comunicação e Informação, integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS).

Recorde de conflitos no campo: qual a repercussão para além do release?

Imagem: Polícia Federal / Gov

Por Ângela Camana*

A Comissão Pastoral da Terra (CPT) lançou nesta segunda-feira, dia 22, o relatório “Conflitos no Campo 2023”, publicação anual que reúne dados da violência no meio rural brasileiro. Os dados são alarmantes: o país registrou o maior número de conflitos desde 1985, quando a série começou a ser publicada. Foram 2.203 ocorrências, envolvendo 950 mil pessoas; também foi recorde a quantidade de vítimas do trabalho escravo, com 251 casos denunciados e 2.663 pessoas resgatadas. A divulgação do relatório ganhou as páginas dos principais portais de notícias no Brasil, o que indica a consolidação do trabalho da CPT nas últimas décadas. Contudo, raros foram os veículos que se dedicaram a algo mais que a simples reprodução dos dados do documento – a exceção até aqui é A Pública.

Imagem: Captura de tela

Ao buscar fontes para ampliar as possibilidades interpretativas do que o relatório informa e ao elaborar um conjunto de gráficos e representações visuais, a Pública parece levar a sério a publicação e, ainda mais, o panorama dos conflitos no campo. Isto, evidentemente, não é fortuito, já que o portal possui um Mapa dos Conflitos alimentado com os dados da própria CPT, além de rotineiramente se dedicar ao tema das disputas ambientais no Brasil.

De acordo com os dados do relatório, as disputas por terra persistem sendo o principal motor dos conflitos no campo, seguidas por confrontos em torno à água. Em paralelo, os dados da CPT informam que indígenas, pescadores, ribeirinhos, quilombolas e assentados são os grupos que mais sofrem com a violência. O único texto que busca repercutir o sentido de tais dados é, novamente, o da Pública: de fato, talvez esta seja um dos poucos, senão o único, veículo que se dedica a uma cobertura contínua dos conflitos no campo e às relações entre as disputas e a forma predatória de ocupação da terra. Justamente pela ausência desta temática em outros veículos, não deixa de ser curioso que a repercussão do relatório no G1 esteja abrigada sob a cartola “Agro” – a despeito do termo não aparecer nenhuma vez ao longo do texto. É uma pena que a relação não tenha sido mais bem explorada, para além da meia palavra na editora.

Imagem: Captura de tela

Não é novidade que, por seu caráter sistêmico, os conflitos no campo pouco repercutam, à exceção de momentos em que a violência irrompe deixando mártires – o que parece se enquadrar melhor nos valores-notícia ainda em voga no país. Ainda que o relatório da CPT seja um importante esforço de catalogação dos conflitos no Brasil e que sua publicização pelos principais veículos já represente um ganho para aqueles que se ocupam de questões fundiárias e ambientais, o jornalismo convencional, ao se concentrar na reprodução de números de release e em histórias póstumas, parece ter escolhido um perigoso caminho.

*Jornalista e socióloga. Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisadora colaboradora no Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental e no grupo de pesquisa TEMAS – Tecnologia, Meio Ambiente e Sociedade. E-mail: angela.camana@hotmail.com.

Por que um ingrediente do veneno utilizado na Guerra do Vietnã é aplicado na agricultura familiar brasileira?

Imagem: Nosso Futuro Roubado

Por Isabelle Rieger* Ilza Maria Tourinho Girardi**

No domingo, 14 de abril, o programa Fantástico, da TV Globo, colocou no ar uma reportagem de autoria do jornalista Paulo Renato Soares, denunciando a aplicação do agrotóxico agente laranja, nas fazendas do pecuarista Claudecy Oliveira Lemes, do município de Barão de Melgaço, em Mato Grosso. Conforme a reportagem, agrotóxicos com a substância 2,4-D foram jogados sobre uma camada de floresta do Pantanal, em área de 80 mil hectares, equivalente à cidade de Campinas.

A reportagem informa também que o fazendeiro tem R$5,2 bilhões em autuações, desde 2019, por danos ao bioma. Além de destruir a floresta, ele expulsou dezenas de famílias para apropriar-se de uma área de 80 mil hectares. O desfolhante foi aplicado para transformar a área em campos de pastagem para a criação de gado.

Os investigadores encontraram em uma das fazendas notas fiscais que comprovam a compra de 240 toneladas de capim, de espécie exótica para substituir a área desmatada, outro problema para a biodiversidade. Conforme Jean Carlos Ferreira, fiscal da Secretaria do Meio Ambiente de Mato Grosso, ouvido pelo repórter no local da autuação, “quando ele joga diretamente do avião, além de matar essas árvores, influencia também diretamente na fauna, principalmente na água”.

Durante três anos foram lançados sobre a área 25 agrotóxicos diferentes, dentre eles o 2,4 – D. Essa é a mesma substância desfolhante encontrada no agente laranja, veneno usado pelos Estados Unidos na Guerra do Vietnã (1959-1976), para tentar vencer o inimigo que se escondia sob as árvores. O jornalista entrevista o professor Vanderlei Pignati, da UFMT, que afirma que o herbicida é bastante estável e é levado pelos ventos a uns 20 ou 30 km contaminando tudo. A secretaria do Meio Ambiente do Mato Grosso, Mauren Lazzaretti, também ouvida pela reportagem, declarou que houve uma mudança no protocolo de medidas impostas ao infrator, que passou a arcar também com a reparação dos danos ambientais. Outras fontes, como polícia, promotora de justiça e perito, mencionaram os danos à flora e à saúde das pessoas, além da questão legal. O jornalista tentou falar com o pecuarista, mas ele não quis dar entrevista.

A reportagem com 10 minutos e 41 segundos denuncia um problema ambiental grave, no entanto, poderia ter abordado com mais profundidade os danos do 2, 4 – D. A substância lançada sobre o Vietnã, junto com o 2, 4, 5- T, continua provocando doenças, como câncer e o nascimento de crianças com anomalias devido à sua periculosidade.

De acordo com os pesquisadores Gurgel, Guedes e Friedrich, nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro, foram liberados 997 agrotóxicos. Entre 2019 e 2020, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) finalizou a avaliação de ingredientes ativos de agrotóxicos mais utilizados no Brasil 2-4 D e o glifosato, além da abamectina, tiram e paraquate.

Conforme os pesquisadores, foi constituída uma Força Tarefa composta por representantes das empresas agroquímicas que atuaram na divulgação de  informações que atestam a segurança dos produtos, desqualificando a produção científica que apontava os riscos das substâncias. Além disso, o grupo fazia pressão para interferir nas decisões do governo e do legislativo. Tal procedimento não é novidade, pois ocorre desde a aprovação da Lei 7802, Lei dos Agrotóxicos, promulgada em 1989 e que incomodou muito a indústria agroquímica e seus prepostos no congresso e no governo em diferentes épocas.

A Anvisa concluiu pela não proibição tanto do glifosato como 2,4-D, além da abamectina e tiram. Manteve a proibição somente do paraquate. No entanto, conforme estudos acadêmicos, o 2,4-D é possivelmente cancerígeno, está relacionado ao desenvolvimento do Linfoma não Hodgkin (LNH), sarcomas, câncer de cólon e leucemia. Também “pode alterar o desempenho sexual e a fertilidade, exercer efeitos tóxicos no feto e em lactentes e interferir no desenvolvimento motor, comportamental, intelectual, reprodutivo, hormonal ou imunológico, provocando aborto ou morte nos primeiros meses de vida”, de acordo com Gurgel et al. no artigo Flexibilização da regulação de agrotóxicos enquanto oportunidade para a (necro)política brasileira: avanços do agronegócio e retrocessos para a saúde e o ambiente. Outro aspecto apontado pela literatura é que pode produzir dioxinas, que são classificadas como poluentes orgânicos persistentes, reconhecidas por causarem câncer e outros problemas.

O engenheiro agrônomo Jacques Lüderitz Saldanha, curador de conteúdo do site Nosso Futuro Roubado, lembra do caso das parreiras  na região da Campanha Gaúcha, que ficaram prejudicadas pelo uso de um herbicida na soja. Tal herbicida é o 2,4-D, empregado como substituto ao glifosato/roundup, que já não mata as ‘super-ervas’. Saldanha questiona: “Está-se acompanhando os efeitos em termos de saúde de toda a população que consome soja e outros vegetais do agronegócio?”. O site informa sobre como ficou o Vietnã e sua sociobiodiversidade após a guerra, assim como as medidas compensatórias realizadas pelos Estados Unidos. Porém, isso devolve a vida ou a saúde das pessoas? E a biodiversidade?

Voltando à ação da Anvisa, percebe-se que o princípio da precaução não foi acionado pela agência, que deveria considerá-lo, caso sua finalidade seja mesmo “promover a proteção da saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e consumo de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados, bem como o controle de portos, aeroportos, fronteiras e recintos alfandegados”. (Lei nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999). A reportagem poderia ter apontado alguns desses problemas e questionado sobre quais estudos foram considerados para a liberação do produto. A finalidade do jornalismo, além de informar corretamente a população para que essa possa exercer sua cidadania, é fazer a vigilância dos poderes.

*Isabelle Rieger é estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS).

**Ilza Maria Tourinho Girardi é jornalista, professora titular aposentada/UFRGS, professora convidada no PPGCOM/UFRGS e coordenadora do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental CNPq/UFRGS e coordenadora do Observatório do Jornalismo Ambiental/Fabico/UFRGS.

Quem ganha com a exploração do carvão?

Imagem: Eletrobras CGT Eletrosul

Por Eutalita Bezerra*

De acordo com o Mapa de Conflitos Envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, que visa a “tornar públicas vozes que lutam por justiça ambiental de populações frequentemente discriminadas e invisibilizadas pelas instituições e pela mídia”, estão em andamento no Brasil, atualmente, doze conflitos gerados por termoelétricas. Um deles diz respeito ao Complexo Termelétrico de Candiota, na Campanha Gaúcha, que figurou no jornalismo nesta semana – com pompas – após anúncio da chegada de uma nova indústria.

O vultuoso investimento de R$ 420 milhões foi o grande destaque das publicações referentes ao projeto Ferroligas Candiota, que vai fabricar, no Polo Carboquímico de Candiota, uma liga metálica a partir do carvão. Em publicação veiculada no Correio do Povo do último dia 10, por exemplo, as únicas menções à questão ambiental envolvida são declaratórias e entreguistas: o governador Eduardo Leite teria afirmado que “o governo tem compromisso com o desenvolvimento sustentável, destacando a importância da responsabilidade ambiental para impulsionar a economia estadual”. O trecho destaca, ainda, que é papel do governo garantir “que a emissão de licenças ambientais seja baseada em análises detalhadas e em conformidade com a legislação”.

Do mesmo modo, o secretário do Desenvolvimento Econômico do estado foi ouvido, retomando a questão do meio ambiente. Conforme o texto, ele teria destacado “os esforços do governo para agilizar as análises relacionadas ao meio ambiente”. Já o prefeito de Candiota, Luiz Carlos Folador, teria focado sua atenção exclusivamente na possível geração de empregos. Apesar de ser tratado como tábua de salvação, é preciso destacar sempre que a exploração de carvão em Candiota traz graves problemas, além de nem sempre ser considerada uma boa opção do ponto de vista econômico.

Em 2022, o Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema) publicou o Inventário de Emissões Atmosféricas em Usinas Termelétricas segundo o qual “Entre as dez usinas com mais baixa eficiência energética, cinco são movidas a carvão. Entre as piores estão Pampa Sul e Candiota III, com apenas 27% de eficiência.” Candiota III também foi considerada a usina a carvão mineral com a maior taxa de emissão entre todas as que forneceram energia ao Sistema Interligado Nacional em 2020, ano-base da pesquisa. Tudo isso colocou Candiota como um dos municípios mais emissores de gases do efeito estufa no país na mesma ocasião.

Há que se destacar, também, retomando o Mapa de Conflitos, que vários problemas de saúde e ambientais foram relatados desde a instalação das usinas termelétricas no município, culminando com a recomendação, em 2011, por parte do Ministério Público Federal, da suspensão da licença de operação de uma das usinas, além da paralisação e adequação de outras duas, pelo não cumprimento das exigências mínimas de controle da poluição emitida.
Abrir mão de tratar sobre estas questões quando se fala de Polo Carboquímico é um precedente perigoso que, nas grandes empresas de comunicação do Rio Grande do Sul, tem sido o habitual. Não se trata de negar a importância da geração de empregos e de receitas aos municípios, mas de estabelecer à custa de que isso está sendo possível.

*Jornalista, doutora em Comunicação e Informação pela UFRGS e membro do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Meio Ambiente. eutalita@gmail.com.

Livro e blog sistematizam pesquisas e práticas de Jornalismo Ambiental em Santa Catarina


Capa do livro “Território e texto: jornalismo ambiental em Santa Catarina

Por Míriam Santini de Abreu*

O conhecimento sobre o jornalismo ambiental em Santa Catarina é o objeto que a equipe da Revista Pobres & Nojentas, que desde 2006 atua em Florianópolis, vem buscando consolidar. A primeira iniciativa foi o lançamento, em dezembro de 2023, do livro “Território e texto: jornalismo ambiental em Santa Catarina”, com seis artigos de jornalistas que, em momentos de sua trajetória, escreveram sobre a relação entre sociedade e natureza no estado.  A segunda foi a criação de um blog, em fevereiro passado, para reunir pesquisas na área e também sobre a história do movimento ambientalista estadual.

A primeira análise do material localizado revelou a existência de cinco Trabalhos de Conclusão de Curso (TCCs), seis dissertações, oito artigos e dois livros. A mais antiga pesquisa localizada foi a minha dissertação de mestrado em Geografia, de 2004, analisando o discurso jornalístico sobre o desenvolvimento sustentável. O mais recente, de 2024, é a dissertação de mestrado de Camila Collato intitulada “Jornalismo ambiental em Santa Catarina: direitos humanos e da natureza sob a perspectiva dos grupos RBS e NC”, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da UFSC.

As primeiras constatações com o levantamento foram as seguintes: 1) a revisão bibliográfica das pesquisas traz o conhecimento do jornalismo em geral e do jornalismo ambiental em particular, mas as pesquisas, independentemente da orientação teórico-metodológica e dos objetos empíricos, em geral não dialogam com trabalhos anteriores, ainda que poucos, produzidos no estado; 2) em minha dissertação, que completa 20 anos em 2024, afirmo que o espaço é constitutivo do discurso jornalístico sobre meio ambiente, mas verifica-se que as marcas da formação socioespacial catarinense praticamente não são levadas em conta nas análises.

A situação é incompatível com a realidade socioespacial tão diversa de Santa Catarina e a necessidade de um jornalismo que a interprete. O geógrafo Armen Mamigonian (2003) afirma que, no decorrer do processo histórico, delinearam-se em Santa Catarina três regiões industriais importantes identificadas como a região alemã, o Oeste agroindustrial e a região carbonífero-cerâmica do Sul. Cada uma dessas regiões lida com impactos ambientais comuns, como o desmatamento e a poluição do solo e da água, mas singulares na forma como se expressam no cotidiano da população. Porém, o jornalismo catarinense não tem abordado tão complexa realidade e parte expressiva das pesquisas localizadas também não leva em conta essas particularidades socioespaciais.

A recente pesquisa de Camila Collato é importante por dialogar com trabalhos anteriores e revelar a situação da cobertura na atualidade, concluindo o seguinte: a) a cobertura privilegia uma constituição antropocêntrica de sentidos, apoiando-se em uma base científica moderna em relação ao meio ambiente, sendo este abordado majoritariamente por meio do dualismo humano x Natureza; b) é fragmentária, ao apresentar uma baixa interlocução entre áreas de conhecimento e saberes e; c) por vezes, é fatalista, ao furtar-se do papel de fomentador de um debate público crítico sobre responsabilidades e possíveis soluções diante dos problemas ambientais enfrentados pela população. A autora destaca anda a baixa participação dos cidadãos, com a predominância de fontes documentais e oficiais, e um jornalismo orientado para a construção de sentidos de apelo modernizante por meio de discursos econômicos de matriz capitalista.

A conclusão desses esforços para consolidar o conhecimento sobre o jornalismo ambiental em Santa Catarina é que os dois grupos hegemônicos mais importantes de mídia no estado, NSC e ND, desconsideram a importância de interpretar jornalisticamente a grave realidade socioambiental regional, situação que vem se agravando com o enxugamento de profissionais nas redações, restando a sites de circulação local – como O Blumenauense e a Folha Metropolitana (Joinville) – a iniciativa de manter editorias sobre o tema, ainda que não haja pesquisas direcionadas à análise do material divulgado.

Referência:

MAMIGONIAN, Armen. Projeto integrado de pesquisa: Santa Catarina – sociedade e natureza. Relatório final de pesquisa. Florianópolis, 2003.

* Jornalista, doutora em Jornalismo, mestre em Geografia e especialista em Educação e Meio Ambiente.


Água pra que quero se não te venero?

Imagem: iStock / Getty Images

Por Carine Massierer*

O Dia Mundial da Água é celebrado em 22 de março. A data foi instituída em 1992 durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, a Rio-92, com o objetivo conscientizar as pessoas sobre a importância vital da água. Esse recurso é indispensável para a vida das pessoas e para o equilíbrio dos ecossistemas. No entanto, o que se vê é que não há uma tomada de consciência das pessoas já que todos os dias são dias de se venerar a água deste planeta.

Neste dia, a Revista Exame publicou matéria que tem por base a pesquisa “A percepção dos brasileiros sobre segurança hídrica”, realizada pela The Nature Conservacy Brasil (TNC) com o apoio técnico do Instituto Ipsos.

Imagem: Captura de tela do site da Exame em 26 de março de 2023. (Dia Mundial da Água: maioria da população vê amento da poluição e pouco cuidado do recurso natural | Exame).

O texto apresenta o resultado da pesquisa: a água é um recurso natural muito utilizado, mas pouco cuidado, de acordo com a percepção de sete em cada dez brasileiros. Além disso, 78% da população nota um aumento na poluição das águas nos últimos quatro anos no país.

A matéria é um deleite, pois apresenta dados comparativos com o Atlas do Saneamento, divulgado pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), em 2017, que mostrou que o Brasil tem cerca de 114.000 quilômetros de rios com a qualidade da água comprometida, uma extensão equivalente a quase três vezes a circunferência do Planeta Terra. O texto traz ainda a metodologia aplicada na pesquisa do Instituto Ipsos e as respostas associadas à falta de água e às mudanças climáticas. “As populações menos favorecidas indicam menor associação entre problemas ambientais e mudanças climáticas, enquanto os mais privilegiados têm um entendimento mais amplo”, destaca o texto.

Empresas de comunicação como O Globo e outras (dia mundial da agua 2024 – Pesquisar News (bing.com), aproveitaram a oportunidade para cobrir eventos ou trazer matérias mais reflexivas, como a proposta pelos jornalistas Juliana Perdigão e Odilon Amaral, no jornal Estado de Minas.

Imagem: Captura de tela do site do Jornal Estado de Minas Gerais em 26 de março de 2023.(Dia Mundial da Água: Série retrata o impacto do recurso na cultura mineira – Estado de Minas).

No dia Mundial da Água a empresa jornalística lançou a série de vídeo documental ‘Saberes Ancestrais’, realizada pelo Projeto Preserva, coordenada pelos jornalistas. A série demonstra exemplos de sustentabilidade, preservação ambiental e também cultural. Estruturada em cinco episódios, as histórias mostram como a natureza e seus recursos impactam a vida das comunidades do interior de Minas Gerais e contribuem também para a formação da cultura local. 

Isso mostra que, se a preservação das águas, que são fonte essencial para nossas vidas, não está ocorrendo, ao menos a imprensa tem demonstrado em suas escolhas editoriais a preocupação de trazer estas reflexões aos leitores e seguidores, o que anteriormente se centrava mais na cobertura de eventos ou estratégias utilizadas por órgãos governamentais como oportunidades para atrair os holofotes do cidadão. Bora cuidar da água e venerar este bem tão precioso para deixarmos para as gerações futuras?

*Carine Massierer é jornalista, especialista em Marketing e mestre em Comunicação e Informação pela UFRGS e integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS).

Clima, condições de trabalho e desafios de jornalistas em coberturas

Imagem: Devido as altas temperaturas, o repórter Nicolas Córdova, da Rádio Grenal, perdeu os sentidos e caiu no chão durante transmissão ao vivo / Reprodução

Por Isabelle Rieger* e Ilza M. Tourinho Girardi**

Recentemente, durante a cobertura do evento South Summit no Cais Embarcadero de Porto Alegre, um repórter da Rádio Grenal desmaiou durante uma transmissão ao vivo, devido ao intenso calor e à ausência de ar-condicionado. Este incidente destaca as precárias condições enfrentadas pelos jornalistas, no exercício da profissão, revelando também a falta de cuidado ou mesmo negligência das autoridades em implementar planos de prevenção e enfrentamento para eventos climáticos extremos.

Porto Alegre estava vivenciando uma onda de calor, fenômeno cada vez mais frequente devido às mudanças climáticas. Em um evento que atrai milhares de pessoas e se autoproclama o maior da América Latina em inovação e empreendedorismo, é inaceitável que não tenham sido providenciadas medidas básicas para mitigar os impactos das altas temperaturas. A falta de ar-condicionado não apenas colocou em risco a saúde e segurança dos participantes, mas também expôs os jornalistas, essenciais para relatar e informar sobre tais eventos.

A segurança e bem-estar dos trabalhadores da mídia devem ser prioridades em todos os eventos, especialmente quando há conhecimento prévio de condições ambientais adversas. A prevenção de riscos deve ser parte integrante do planejamento de eventos, incluindo a provisão de infraestrutura adequada para lidar com condições climáticas extremas. Isso não apenas protege os profissionais envolvidos, mas também garante a qualidade e a continuidade da cobertura jornalística.

O caso do South Summit ressalta a importância de repensar a infraestrutura e o planejamento urbano em Porto Alegre. O Cais Embarcadero, um espaço privatizado na orla do Guaíba, exemplifica uma tendência preocupante de transformar áreas urbanas em locais voltados para o lucro e o entretenimento, em detrimento das necessidades e segurança dos cidadãos. 

A privatização desses espaços muitas vezes prioriza os interesses comerciais e ignora o bem-estar público, resultando em infraestruturas inadequadas pela falta de um olhar atento à prevenção. Durante o evento que prega inovação, houve um desmaio no primeiro dia por conta do calor extremo, e o atraso da hora de abertura no segundo dia foi devido as chuvas que assolaram a cidade. Onde está a inovação em um evento que não pensa no meio ambiente, que está na pautas das discussões em diversos fóruns justamente porque estamos vivendo uma época de emergência climática?

É imperativo que as autoridades municipais e organizadores de eventos assumam a responsabilidade pela segurança e conforto de todos os envolvidos, incluindo jornalistas. Isso requer não apenas a implementação de medidas de prevenção eficazes para lidar com condições climáticas extremas, mas também uma abordagem mais ampla e inclusiva para o planejamento urbano, que priorize as necessidades e interesses de toda a comunidade.

O desmaio ao vivo não é só uma chamada para melhorar as condições de trabalho, mas também para repensar a maneira como planejamos e gerenciamos nossas cidades e eventos. Somente por meio de uma abordagem que entenda a cidade como um bem comum e não como um local para ser vendido é que conseguiremos avançar na pauta ambiental. 

Já que estamos falando das condições de trabalho dos jornalistas em tempos de eventos extremos, podemos ressaltar a importância de os profissionais terem conhecimento sobre o que está acontecendo no mundo e quais as previsões relacionadas ao aumento da temperatura, se os países não agirem imediatamente para conter esse processo. Nesse caso não se trata de precaução, mas de tomar medidas de prevenção e cuidado por parte da prefeitura e organizadores de eventos para permitir que os jornalistas cumpram com seu papel de informar e os cidadãos tenham segurança para acessar tais espaços. Da mesma forma é necessário que as chefias que ficam nas redações pensem na saúde do repórter que vai se submeter a situações de risco.

*Isabelle Rieger é estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS).

**Ilza Maria Tourinho Girardi é jornalista, professora titular aposentada/UFRGS, professora convidada no PPGCOM/UFRGS e coordenadora do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental CNPq/UFRGS e coordenadora do Observatório do Jornalismo Ambiental/Fabico/UFRGS.

Inteligência Artificial e o Princípio da Precaução

Imagem: Pixabay

Por Sérgio Pereira*

O assunto do momento é a Inteligência Artificial (IA) e suas consequências. Esse avanço tecnológico está em todas as redes de debates. O mundo discute questões éticas (uso indevido na produção de fake news e violação do direito de imagem), econômicas (quem vai lucrar e o que fazer com o exército de desempregados que porventura surgir?), jurídicas (as sentenças um dia ficarão a cargo dos algoritmos?), tributárias (como manter os níveis de arrecadação já que robô não paga imposto?), entre tantos outros.

Quando o assunto é jornalismo, as discussões envolvem, no momento, como aproveitar essa ferramenta no dia a dia e o quanto isso impactará na estrutura das redações. Entidades de classe se preocupam com o provável aumento no número de demissões, que já se intensificaram nos últimos dez anos no Brasil, deixando sem emprego parte considerável dos profissionais de imprensa.

Na área ambiental, por sua vez, alguns estudos já fazem a conexão entre o uso de IA e o crescimento na emissão de dióxido de carbono (CO2). O portal Earth.Org destaca pesquisa da OpenAI que estima que as emissões da indústria das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC), como um todo, atinjam 14% das emissões globais no ano de 2040.

O professor Anders Nordgren, da Universidade de Linköping (Suécia), faz um alerta sobre a emissão de CO2 em treinamentos de Inteligência Artificial: “Um estudo focado explicitamente na IA como contribuinte para as alterações climáticas foi conduzido por Strubell et al. (2019). Eles investigaram a pegada de carbono de vários modelos diferentes de IA. Concluíram que as emissões variam significativamente. As maiores foram encontradas no treinamento de um modelo de IA para processamento de linguagem natural (PNL)” (2023).

Conforme Nordgren, calcula-se que o treinamento de IA resulte em cerca de 300 mil quilos de CO2e (Strubell et al., 2019). Essas emissões equivalem a, aproximadamente, 125 voos de ida e volta de Nova Iorque a Pequim (Dobbe e Whittaker, 2019).

Essas pesquisas científicas, no entanto, estão sendo ignoradas quando a discussão envolve essa nova ferramenta tecnológica, independentemente da área envolvida. Mas os jornalistas não podem deixar de considerar esses dados quando escrevem sobre o assunto.

Um dos pressupostos do Jornalismo Ambiental é o Princípio da Precaução, que já foi abordado em artigos anteriores aqui no Observatório. Conforme Girardi et al., esse princípio “amplia o tempo de ação do jornalismo, orientando-o para o futuro na tentativa de alertar e evitar consequências negativas” (2017). Girardi acrescenta que a “ampliação da divulgação de incertezas por parte do campo científico e as constatações de que não temos controle sobre as consequências de muitos processos e produtos conduziram a um olhar mais cauteloso, que levou à discussão do princípio da precaução”.

Já o “Princípio 15” da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento na Conferência das Nações Unidas, elaborado durante a Rio-92, estabelece: “Com o fim de proteger o meio ambiente, o Princípio da Precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental”.

Nesse sentido, devemos, a partir da preocupação com as consequências negativas do uso da IA, sem considerar os danos ao ambiente, recomendar que os jornalistas, amparados na cautela, busquem sempre aprofundar o tema e informar a sociedade sobre o impacto e os riscos inerentes do uso desse novo instrumento. É preciso contextualizar e elencar sempre os prós e contras.

Uma máxima universal estabelece que, na dúvida, não devemos ultrapassar. Essa regra, no entanto, é deixada de lado quando conveniências econômicas e políticas se tornam prioridades. E o jornalismo não pode se submeter a interesses que não coloquem a coletividade em primeiro lugar. Principalmente quando os danos forem irreversíveis, como testemunhamos agora com os trágicos efeitos das mudanças climáticas, para citar apenas um exemplo dos muitos que poderíamos relacionar aqui.

*Jornalista, servidor público, mestre em Comunicação pela UFRGS e integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (UFRGS/CNPq). E-mail: sergiorobepereira@gmail.com.

Referências

GIRARDI, Ilza Maria Tourinho; LOOSE, Eloisa Beling; STEIGLEDER, Débora Gallas; BELMONTE, Roberto Villar; MASSIERER, Carine. A contribuição do princípio da precaução para a epistemologia do Jornalismo Ambiental. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde, Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, p.279–291, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.29397/reciis.v14i2.2053. Acesso em: 11 mar. 2024.

NORDGREN, Anders. Artificial intelligence and climate change: ethical issues, Journal of Information, Communication and Ethics in Society, Vol. 21 Nº 1, pp (2023). Disponível em: https://doi.org/10.1108/JICES-11-2021-0106. Acesso em: 12 mar. 2024.