Patrimônio material e imaterial em Ouro Preto na cobertura jornalística

Imagem: Deslizamento do Morro da Forca que destruiu um casario histórico em Ouro Preto. 
Fonte: Redes Sociais, autor(a) desconhecido(a).

Por Matheus Cervo*

Os extremos climáticos na América do Sul se tornam cada vez mais parte do nosso cotidiano. Logo após a passagem de 2021 para 2022, tivemos a presença de uma grande onda de calor no sul do continente e fortes chuvas registradas em Minas Gerais e na Bahia – fenômenos que não podem ser desconectados do colapso climático que segue em curso.

Não é surpresa que esses extremos estejam atingindo parte do nosso patrimônio histórico e social, visto que isso tem acontecido de forma cada vez mais agressiva. Como mais um evento desse tipo, o aumento das chuvas em Minas Gerais causou a destruição de um casario histórico no Morro da Forca em Ouro Preto devido a um deslizamento de terra no dia 13 de janeiro. Com isso, uma parte do jornalismo brasileiro se debruçou sobre o ocorrido para discutir a situação da memória brasileira frente a esses fenômenos climáticos.

O G1 fez uma matéria chamada “Patrimônio Mundial da Humanidade, Ouro Preto convive com áreas de risco e danos ao casario histórico”. Ela se destaca por ter buscado especialistas de diferentes áreas para entender não só a destruição em si, mas o que pode ser feito para que se tenha um resguardo das edificações históricas do nosso país. Entre eles, foram mencionadas falas de uma professora da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) do departamento da Arquitetura e do Urbanismo, explicações de um geólogo e estudos sobre áreas de risco do Serviço Geológico do Brasil/CPRM. Além disso, tentaram entrar em contato com a administração municipal de Ouro Preto e com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), assim como trouxeram alguns dados antigos para mostrar que os deslizamentos de terra e as perdas ao patrimônio não são novidades nessa cidade.

O evento causou tanta comoção aos profissionais que se preocupam com a questão da memória que a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) se pronunciou com uma nota no dia 14 afirmando que foi uma grande perda para toda a humanidade – o que foi resumido e noticiado pelo jornal O Estado de São Paulo. Essa grande mobilização da organização internacional se deve ao fato de Ouro Preto ser a primeira cidade brasileira inscrita na década de 1980 na Lista do Patrimônio Mundial da Unesco, sendo uma cidade que é monitorada pelo Centro do Patrimônio Mundial. Não é trivial salientar que a diretora ressaltou que medidas protetivas são ainda mais importantes em meio ao avanço das mudanças climáticas, o que foi noticiado pelo Estadão.

Percebe-se que, até aqui, cumpre-se com a necessidade de buscar pela complexidade dentro do jornalismo, especialmente nessa imbricação de áreas que estudam as questões ambientais relacionadas com a preservação do patrimônio nacional. Contudo, ainda dentro da discussão sobre memória e sociedade, é possível dizer que a cobertura desses fatos carece de uma discussão mais aprofundada acerca do patrimônio imaterial que se refere às sociabilidades e modos de vida existentes nesses locais. Depois desse evento que foi seguido de alguns outros deslizamentos noticiados, surgiram diversas matérias afirmando que Ouro Preto tem mais de 300 áreas de risco, sendo que 882 residências estão nessas regiões. Saíram notícias mostrando que 80 famílias foram removidas do bairro Taquaral e diversos serviços foram evacuados como forma de precaução.

Por isso, como o jornalismo ambiental poderia noticiar esses desastres ao patrimônio brasileiro sem prezar somente pelo material? Não seriam as formas de sociabilidade e as construções históricas de modos de vida específicos desses locais patrimônios imateriais tão importantes quanto as edificações? Não seriam elas também formas tão importantes de resguardo quanto a materialidade da nossa memória brasileira? São essas questões que ficam pungentes para aprofundamento dessa discussão sobre o que realmente é o patrimônio mundial da humanidade e como o jornalismo (assim como organizações como a Unesco) poderiam ter uma noção mais abrangente de como a memória se mantém viva na sociedade através das suas dimensões imateriais.

* Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e mestrando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da mesma universidade.

Washington Novaes: “Essa coisa de meio ambiente não existe porque o meio ambiente é tudo”

Imagem: Reprodução/TV Anhanguera

Reges Schwaab*

Uma parte da história do jornalismo de qualidade acerca das questões socioambientais passa pelo trabalho dedicado de Washington Novaes, falecido em 25 de agosto, aos 86 anos, em Goiás. Um profissional que sugeriu caminhos e acompanhou diferentes fases da abordagem do tema no país. Em seu percurso, soube bem como abrir espaço e ajudar a pensar a cobertura sobre meio ambiente em distintos contextos. 

    Na atualidade, os problemas ambientais são reconhecidos publicamente pela dinâmica social na qual se inserem e pelo modo como ingressam nas agendas globais e nacionais, exigindo atenção jornalística mais cuidadosa. O cenário de riscos, que afeta todos os modos de vida, tornou impossível não reconhecer que o esforço deve vir também dos jornalistas. Novaes, podemos arriscar, é nome central para pensar viéses de atuação nesse cenário. Apesar dos distintos entraves e desafios, o lugar do jornalismo sobre meio ambiente no Brasil deve muito ao que Washington Novaes produziu, e como ele realizou a proposta jornalística que tinha em mente, em uma intencionalidade clara e embasada. 

    Na internet, uma rápida busca pelo nome do jornalista nos levará a diferentes contribuições, seja fazendo jornalismo, seja produzindo crítica ou opinião, em um esforço continuado pelo bom debate. Era um defensor de que o jornalista buscasse formar seu repertório para atuação. E a despeito do intenso trabalho com temáticas ambientais e socioambientais, chegou a declarar, certa vez, que não se considerava um jornalista especializado em meio ambiente: “Eu sou jornalista, como sempre fui. Mas tenho uma história de vida e de profissão que me levou a um interesse cada vez maior por isso ”.

    A declaração, assim como a frase que dá título ao presente texto, estão no episódio “Meio ambiente: a mídia ainda de olhos fechados”, exibido pelo Observatório da Imprensa em 12 de junho de 2012, às portas de mais uma Conferência da ONU sobre Meio Ambiente, novamente no Brasil, a Rio+20 (vídeo a seguir). Algum tempo depois, em entrevista para as jornalistas Paula Chamorro e Mônica Ribeiro, elaborou sua crítica em termos semelhantes: “Eu sempre tento esclarecer que não sou ambientalista. Eu sou jornalista, e se trato muito dessas questões é porque não há como isolar o meio ambiente do restante. O meio ambiente está em tudo que a gente faz, na nossa vida toda. Não pensar nas chamadas questões ambientais significa deixar os problemas crescerem, e esses problemas são cada vez maiores”.

“A gente sempre esbarra em uma mesma questão, que são as lógicas financeiras se sobrepondo às chamadas lógicas ambientais” – Washington Novaes

    Em cerca de seis décadas de atuação, Washington Novaes foi colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Popular (GO). Na TV Cultura de São Paulo, foi supervisor de Biodiversidade e comentarista do programa Repórter Eco. Passou por diferentes funções nos jornais Folha de S. Paulo, Estado, Jornal do Brasil, Gazeta Mercantil, Última Hora, Correio da Manhã, e nas revistas Veja e Visão. Foi por sete anos editor-chefe do Globo Repórter, editor do Jornal Nacional e comentarista do Globo Ecologia, da Rede Globo. Como produtor independente de televisão, dirigiu as séries Xingu – a terra mágica, Kuarup, Pantanal e Xingu – a terra ameaçada, frutos de sua especialização em questões indígenas. Entre seus livros estão Xingu – uma flecha no coração (Brasiliense, 1985), A quem pertence a informação (Vozes, 1989) e A Década do Impasse – da Rio 92 à Rio+10 (Estação Liberdade, 2002). Recebeu o título de doutor honoris causa pela Universidade Federal de Goiás (em 2009).

    Em diferentes ocasiões, afirmou que o repórter que ingressa no tema ambiental tem de mudar sua visão de mundo e conhecer uma grande variedade de assuntos. Seu olhar atento também desafiava a repensar a cobertura corrente: “Se a imprensa resolvesse levar a sério a questão ambiental, teria que mudar toda a cobertura”, comentou certa vez. Seu trânsito por meios de referência e o tempo de profissão permitiam uma análise mais conjuntural. No episódio do Observatório da Imprensa, conversando com Alberto Dines, outro grande nome do jornalismo e da crítica à imprensa, Washington Novaes sintetizou um dos entraves no tratamento mais adequado do tema ambiental no Brasil, o conflito de interesses do mercado de comunicação: 

Eu acho que os meios de comunicação, durante muito tempo, viram as questões sobre o meio ambiente como coisa de hippies ou de profetas do apocalipse. Hoje, se tem a consciência de que é quase impossível discutir qualquer tema sem levar o meio ambiente em conta, porque tudo o que o ser humano faz causa algum impacto sobre o meio ambiente. O problema é que isso atinge interesses poderosos e a mídia fica com medo de ferir esses interesses. Então tudo isso se torna bastante complicado. 

Veja o episódio completo:

    As alterações do clima, hoje tratadas como emergência climática, o crescimento da população, o caos urbano e aumento da demanda por matéria-prima, com exploração desenfreada do ambiente, além do desrespeito aos povos tradicionais, temas demasiado complexos e inter-relacionados, não condizem com a descontinuidade e a falta de aprofundamento. Em sua visão, o jornalismo carecia de uma abordagem mais assertiva: “A comunicação tem que dar uma sequência no debate sobre o meio ambiente e não ficar cobrindo apenas fatos episódicos”, fazendo referência ao abandono das abordagens findado seu suposto “ciclo”. Um outro trecho do programa ilustra esse pensamento. Na interação com Dines, Washington Novaes exemplifica a recorrente incorreção do jornalismo na abordagem das pautas ambientais:

Dines – E a imprensa tem medo…

Washington – É. E fica ali se equilibrando entre as contas e um outro problema, esse você conhecDines – E a imprensa tem medo…e bem, que é a falta de continuidade no tratamento das questões. Noticia num primeiro momento em que há um impacto.

Alberto Dines – Como agora, nesse momento [à época, vésperas da Rio+20] 

Washington Novaes – … e depois esquece totalmente. Que é que está tratando, por exemplo, das consequências dos desastres climáticos na região serrana do Rio de Janeiro há mais de um ano [falando em 2012]. Quem está indo lá ver o que está acontecendo, o que foi feito para resolver? […] Não há sequência e os problemas vão acontecendo. Por exemplo, ninguém viu que 400 mil pessoas ocuparam as margens das represas de abastecimento de água de São Paulo, em áreas ilegais. Ninguém viu isso? E de repente vira um problema enorme. Como você faz com 400 mil pessoas ali, sem redes de esgotos, despejando esgoto e lixo na beira do manancial.

    A atenção respeitosa com as temáticas indígenas foi traço marcante em toda sua trajetória, em especial no trabalho em livros e no audiovisual. Novaes sublinhava a necessidade de respeito e profundo reconhecimento ao modo de vida e aos ensinamentos dos povos tradicionais. Por tal esforço, quando no centro do programa Roda Viva (TV Cultura), no ano 2000, recebeu um questionamento do então senador Blairo Maggi, sobre se teríamos de passar a viver como indígenas, se esta seria sua opinião. Washington Novaes rapidamente contestou: “Não, nós não teríamos competência para isso. Mas nós poderíamos aprender com eles”. 

    O exemplo de Washington Novaes é demasiado importante para ser resumido, cabendo recomendar o estudo de sua produção. Mas podemos ter sempre em conta que seu trabalho e sua obra compreendem um gesto de repensar constante do jornalismo por um princípio ecológico, justamente na potencialidade geradora que o fundamenta, em lógica dialética. Emerge um sentido cidadão e adequado ao tempo que vivemos, capaz de contemplar o cenário de exigências que se desenha para as práticas jornalísticas e o tema ambiental.

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