Por que um ingrediente do veneno utilizado na Guerra do Vietnã é aplicado na agricultura familiar brasileira?

Imagem: Nosso Futuro Roubado

Por Isabelle Rieger* Ilza Maria Tourinho Girardi**

No domingo, 14 de abril, o programa Fantástico, da TV Globo, colocou no ar uma reportagem de autoria do jornalista Paulo Renato Soares, denunciando a aplicação do agrotóxico agente laranja, nas fazendas do pecuarista Claudecy Oliveira Lemes, do município de Barão de Melgaço, em Mato Grosso. Conforme a reportagem, agrotóxicos com a substância 2,4-D foram jogados sobre uma camada de floresta do Pantanal, em área de 80 mil hectares, equivalente à cidade de Campinas.

A reportagem informa também que o fazendeiro tem R$5,2 bilhões em autuações, desde 2019, por danos ao bioma. Além de destruir a floresta, ele expulsou dezenas de famílias para apropriar-se de uma área de 80 mil hectares. O desfolhante foi aplicado para transformar a área em campos de pastagem para a criação de gado.

Os investigadores encontraram em uma das fazendas notas fiscais que comprovam a compra de 240 toneladas de capim, de espécie exótica para substituir a área desmatada, outro problema para a biodiversidade. Conforme Jean Carlos Ferreira, fiscal da Secretaria do Meio Ambiente de Mato Grosso, ouvido pelo repórter no local da autuação, “quando ele joga diretamente do avião, além de matar essas árvores, influencia também diretamente na fauna, principalmente na água”.

Durante três anos foram lançados sobre a área 25 agrotóxicos diferentes, dentre eles o 2,4 – D. Essa é a mesma substância desfolhante encontrada no agente laranja, veneno usado pelos Estados Unidos na Guerra do Vietnã (1959-1976), para tentar vencer o inimigo que se escondia sob as árvores. O jornalista entrevista o professor Vanderlei Pignati, da UFMT, que afirma que o herbicida é bastante estável e é levado pelos ventos a uns 20 ou 30 km contaminando tudo. A secretaria do Meio Ambiente do Mato Grosso, Mauren Lazzaretti, também ouvida pela reportagem, declarou que houve uma mudança no protocolo de medidas impostas ao infrator, que passou a arcar também com a reparação dos danos ambientais. Outras fontes, como polícia, promotora de justiça e perito, mencionaram os danos à flora e à saúde das pessoas, além da questão legal. O jornalista tentou falar com o pecuarista, mas ele não quis dar entrevista.

A reportagem com 10 minutos e 41 segundos denuncia um problema ambiental grave, no entanto, poderia ter abordado com mais profundidade os danos do 2, 4 – D. A substância lançada sobre o Vietnã, junto com o 2, 4, 5- T, continua provocando doenças, como câncer e o nascimento de crianças com anomalias devido à sua periculosidade.

De acordo com os pesquisadores Gurgel, Guedes e Friedrich, nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro, foram liberados 997 agrotóxicos. Entre 2019 e 2020, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) finalizou a avaliação de ingredientes ativos de agrotóxicos mais utilizados no Brasil 2-4 D e o glifosato, além da abamectina, tiram e paraquate.

Conforme os pesquisadores, foi constituída uma Força Tarefa composta por representantes das empresas agroquímicas que atuaram na divulgação de  informações que atestam a segurança dos produtos, desqualificando a produção científica que apontava os riscos das substâncias. Além disso, o grupo fazia pressão para interferir nas decisões do governo e do legislativo. Tal procedimento não é novidade, pois ocorre desde a aprovação da Lei 7802, Lei dos Agrotóxicos, promulgada em 1989 e que incomodou muito a indústria agroquímica e seus prepostos no congresso e no governo em diferentes épocas.

A Anvisa concluiu pela não proibição tanto do glifosato como 2,4-D, além da abamectina e tiram. Manteve a proibição somente do paraquate. No entanto, conforme estudos acadêmicos, o 2,4-D é possivelmente cancerígeno, está relacionado ao desenvolvimento do Linfoma não Hodgkin (LNH), sarcomas, câncer de cólon e leucemia. Também “pode alterar o desempenho sexual e a fertilidade, exercer efeitos tóxicos no feto e em lactentes e interferir no desenvolvimento motor, comportamental, intelectual, reprodutivo, hormonal ou imunológico, provocando aborto ou morte nos primeiros meses de vida”, de acordo com Gurgel et al. no artigo Flexibilização da regulação de agrotóxicos enquanto oportunidade para a (necro)política brasileira: avanços do agronegócio e retrocessos para a saúde e o ambiente. Outro aspecto apontado pela literatura é que pode produzir dioxinas, que são classificadas como poluentes orgânicos persistentes, reconhecidas por causarem câncer e outros problemas.

O engenheiro agrônomo Jacques Lüderitz Saldanha, curador de conteúdo do site Nosso Futuro Roubado, lembra do caso das parreiras  na região da Campanha Gaúcha, que ficaram prejudicadas pelo uso de um herbicida na soja. Tal herbicida é o 2,4-D, empregado como substituto ao glifosato/roundup, que já não mata as ‘super-ervas’. Saldanha questiona: “Está-se acompanhando os efeitos em termos de saúde de toda a população que consome soja e outros vegetais do agronegócio?”. O site informa sobre como ficou o Vietnã e sua sociobiodiversidade após a guerra, assim como as medidas compensatórias realizadas pelos Estados Unidos. Porém, isso devolve a vida ou a saúde das pessoas? E a biodiversidade?

Voltando à ação da Anvisa, percebe-se que o princípio da precaução não foi acionado pela agência, que deveria considerá-lo, caso sua finalidade seja mesmo “promover a proteção da saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e consumo de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados, bem como o controle de portos, aeroportos, fronteiras e recintos alfandegados”. (Lei nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999). A reportagem poderia ter apontado alguns desses problemas e questionado sobre quais estudos foram considerados para a liberação do produto. A finalidade do jornalismo, além de informar corretamente a população para que essa possa exercer sua cidadania, é fazer a vigilância dos poderes.

*Isabelle Rieger é estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS).

**Ilza Maria Tourinho Girardi é jornalista, professora titular aposentada/UFRGS, professora convidada no PPGCOM/UFRGS e coordenadora do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental CNPq/UFRGS e coordenadora do Observatório do Jornalismo Ambiental/Fabico/UFRGS.

Dengue além dos números: por que a doença ainda mata no Brasil?

Imagem: João Paulo Burini / Getty Images

Por Patrícia Kolling*

A leitura da coluna Saúde, meio ambiente, políticas públicas: a dengue mostra que está tudo interligado, produzida pelas colegas Isabelle Rieger e Cláudia Herte de Moraes, e publicada no site Eco, me instigou a apurar sobre a abordagem dada nas notícias da imprensa brasileira sobre a doença e suas relações com o meio ambiente e as políticas públicas. Em notícia publicada pelo governo federal, no dia 27/02, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, ressalta que o aumento no número de casos neste período do ano não era esperado, considerando as tendências históricas que indicam o pico das epidemias entre março e abril. O texto diz ainda que os motivos para esta situação, diferente do esperado, têm raízes múltiplas, entre elas as alterações climáticas, em especial na época de chuvas, e a mudança nos sorotipos circulantes da dengue. O Ministério declarou que o Brasil chegou a quase 1 milhão de casos registrados de dengue e que vai fazer uma mobilização nacional para combater os focos do mosquito, no sábado dia 2.

A fala da ministra foi citada em algumas notícias, porém, pouco se aproveitou para aprofundar a temática, explicando como e porque as alterações climáticas podem estar levando ao aumento dos mosquitos e dos casos de dengue. Uma apuração rápida, nos sites G1, Folha de São Paulo e Estadão, mostrou que a maioria das notícias foca nos números de infectados e mortos pela doença. A Folha de São Paulo, no dia 19, além das dezenas de números e gráficos que trouxe sobre a dengue, destacou que especialistas apontam os fatores climáticos como centrais para a explosão de casos. Diz o texto que o calor acima da média e o período chuvoso criam condições ideais para a proliferação do mosquito Aedes aegypti, transmissor da doença.

Para a construção deste texto, fizemos uma breve análise das notícias publicadas, mas em 2015 e 2016, o tema já foi estudado em profundidade por colegas deste grupo, e apresentado no artigo Dengue, Zika e Chikungunya: Análise da cobertura do risco de doenças associadas às mudanças climáticas sob a ótica do Jornalismo Ambiental. Na época vivia-se no Brasil também um período de aumento de casos de dengue, e da mesma forma a imprensa não aprofundou as relações entre as mudanças climáticas, o aumento dos mosquitos e de casos de dengue.

Outro aspecto que percebemos nas notícias foi a publicação de números que apontam o aumento das mortes por dengue no Brasil. A Folha de São Paulo, citou a fala da ministra Nísia, em que ela destaca a preocupação com o aumento dos casos graves.  “Temos de olhar o manejo adequado, cuidado no tempo certo e hidratação [do paciente]”. O infectologista da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e consultor da Organização Mundial da Saúde (OMS), Kleber Luz, ressaltou esse aspecto no G1 “… é preciso mitigar o problema. Capacitar médicos, enfermeiros, equipes de saúde para tratar a dengue de forma adequada, disponibilizar insumos como soro, para que as pessoas sejam tratadas. O que devemos fazer é evitar as mortes”. O consultor da OMS ressaltou ainda que a dengue é uma doença completamente tratável, “com baixo índice de óbito se o paciente procurar atendimento precocemente” e se for realizada a intervenção adequada.

Diante dessas explicações por que tantas pessoas ainda estão morrendo de dengue no Brasil? Diferente da covid-19, que é uma doença ainda pouco conhecida, a dengue existe no Brasil há mais de 30 anos. A imprensa precisa questionar as autoridades e especialistas e buscar respostas para o porquê de as pessoas ainda estarem morrendo de dengue no Brasil. Os hospitais e postos de saúde não estão preparados para receber e fazer diagnósticos rápidos nos pacientes? Está sendo monitorado os índices de plaquetas nos pacientes e há bolsas de plaquetas para as transfusões nos casos graves? Os pacientes estão recebendo hidratação quando necessário? Essas são algumas das perguntas que a imprensa deveria estar fazendo e não está. As pautas estão aí, citadas nas próprias notícias. Cabe a imprensa saber olhar além dos números.

*Doutora em Comunicação pela UFRGS, docente no curso de Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso, Campus do Araguaia, integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). E-mail: patikolling@gmail.com.

A dicotomia do Brasil na COP 28 e a cobertura midiática

Imagem: Chris LeBoutillier / Unsplash

Por Janaína Capeletti*

O Brasil está presente na 28ª Conferência do Clima das Nações Unidas (ONU), a COP28, com a maior delegação entre as 195 nações participantes. São cerca de 2.400 inscrições do governo, setor privado e sociedade civil. A comitiva do presidente Luiz Inácio Lula da Silva é composta por 13 ministros e outros tantos parlamentares e representantes de empresas estatais.  

O país chegou ao evento com a ambição de liderar mundialmente o enfrentamento da crise climática e de cobrar do mundo o cumprimento do Acordo de Paris. Na sessão de abertura da Conferência, o presidente do Brasil fez um discurso forte, aproveitando a oportunidade para chamar a atenção das potências mundiais pelo cumprimento de compromissos estabelecidos para o enfrentamento do aquecimento global. A imprensa repercutiu. Na CNN, a matéria “Lula critica países que ‘lucram com a guerra’ e cobra redução de combustíveis fósseis na COP28” destacou a fala do presidente cobrando os países por ações concretas de descarbonização.  

“O planeta está farto de acordos climáticos não cumpridos. De metas de redução de emissão de carbono negligenciadas. Do auxílio financeiro aos países pobres que não chega. De discursos eloquentes e vazios. Precisamos de atitudes concretas. Quantos líderes mundiais estão de fato comprometidos em salvar o planeta?”, questionou o presidente.

Além de apresentar resultados obtidos na atual gestão, como a redução do desmatamento, o evento foi palco para o lançamento mundial do Plano de Transformação Ecológica do país. Também foi anunciada a proposta de criação do Fundo Floresta Tropical para Sempre (FFTS), que proverá recursos para ajudar cerca de 80 nações detentoras de florestas, como o próprio Brasil, a conservá-las.

Contudo, já no início do evento, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, divulgou a adesão do Brasil na OPEP+, grupo estendido da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep). Questionado sobre a contradição entre discurso e ação, Lula disse que a participação do Brasil no cartel do petróleo será para “convencer” os países à transição energética. O mal-estar foi completado pelo presidente da Petrobrás anunciando que a empresa tem intenção em criar um braço no Oriente Médio.

As mensagens dúbias transmitidas pelo Brasil no início do evento tiveram ampla cobertura da mídia nacional e internacional. Como as matérias dos jornais Valor Econômico “Petróleo respinga em ‘liderança verde’ de Lula na COP 28“, Folha de São Paulo “Lula confirma na COP28 entrada na Opep+ para ‘convencer’ países a abandonar petróleo“, o Blog do Noblat no Metrópoles “Contradições de Lula na COP28 (por Hubert Alquéres)“, Reuters “Lula says Brazil’s participation in OPEC+ is to stop oil producers using fossil fuels“, The Guardian “Lula’s bid to style himself climate leader at Cop28 undermined by Opec move” e Le Monde “COP28: Heads of state call for action but remain divided on fossil fuels“.

Os holofotes estão sob o Brasil não à toa, o país recebeu da Climate Action Network (CAN), uma associação de 1.300 ONGs de mais de 120 países, o prêmio “Fóssil do Dia”, entregue diariamente durante a COP a alguma “personalidade”. O pesquisador Paulo Artaxo escreveu artigo para a Academia Brasileira de Ciências, comentando o fato.  

A imprensa não se absteve de apontar as incoerências da posição brasileira, contudo, sem aprofundamentos sobre as consequências de tais políticas. Dentre as exceções, a reportagem de Anna Beatriz Anjos, da Agência Pública, “Na COP28, Lula mostra lição de casa sobre Amazônia, mas reforça contradição com petróleo,” apresenta a contextualização do tema e sua repercussão. Na mesma linha, o site Sumaúma publicou uma excelente entrevista com o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, que se mostra na disputa pela liderança verde na América Latina. O colombiano divulgou na COP que seu país decidiu não assinar novos contratos de exploração de carvão, petróleo e gás. E por fim, a análise da jornalista Daniela Chiaretti: “Lula equilibra pratos entre florestas e petróleo na COP 28, enquanto Gustavo Petro diz o que se quer ouvir” também apresenta com lucidez a disputa regional pelo protagonismo verde.

A crise climática que nos encontramos demonstra a urgência de ações e não de discursos. É importante que o jornalismo seja vigilante e aponte as inconsistências das posições políticas. Entre os pressupostos do jornalismo ambiental está a responsabilidade na promoção da mudança de pensamento. Engajar a sociedade por meio de informações consistentes, contextualizadas, próximas de sua realidade é dever do jornalismo e de fundamental importância no momento em que o planeta se encontra.

*Jornalista, mestranda em Comunicação na UFRGS, integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). E-mail: janacapeletti@gmail.com.


Queimadas no Amazonas: também cabe ao jornalismo apurar responsabilidades

Imagem: Camila Garce Idesam/Flickr

Por Débora Gallas*

Ciclonesenchentescalor recordeseca… Relatar as causas e consequências desses eventos climáticos extremos na vida da população tem sido desafiador para jornalistas brasileiros. É possível observar que a sobreposição de emergências afeta diretamente a cobertura: a imprensa nacional não tem dado a merecida atenção às queimadas que assolam a região metropolitana de Manaus pelo menos desde setembro.

É verdade que o assunto esteve em pauta em grandes portais como FolhaValor e g1 especialmente entre os dias 11 e 13 de outubro, período em que a qualidade do ar em Manaus se tornou uma das piores do mundo. A cobertura desses veículos inclui fontes da ciência para explicar como os efeitos do fenômeno El Niño e a degradação ambiental contribuem para que a cidade seja tomada por fumaça, vinda sobretudo de focos no município de Autazes e nas adjacências da BR-319, que liga Manaus e Porto Velho. Também são ouvidas fontes oficiais, que explicam onde estão os principais focos de queimadas e quais providências que estão sendo tomadas, como a prisão de suspeitos de atear fogo em áreas de floresta.

As matérias publicadas na última semana carecem, porém, de alguma apuração própria desses veículos no local dos fatos. Diante de outro gravíssimo acontecimento que atinge o estado – a seca histórica de rios amazônicos – e de pautas igualmente urgentes de outras editorias – como a guerra entre Israel e Hamas –, há o risco de as atenções se dividirem e o tema sumir do noticiário assim que a fumaça se dissipar e o problema parecer controlado. É interessante lembrar que, em agosto de 2019, bastou que uma nuvem cinza encobrisse o céu de São Paulo para que as queimadas na Amazônia tomassem o noticiário nacional e a ação apelidada de “dia do fogo”, apurada primeiramente pelo jornal paraense Folha do Progresso, ganhasse repercussão em todo o país.

Leitores de todo o país certamente podem contar com a cobertura qualificada de veículos locais. Ainda em julho, reportagem de Amazônia Real apontava a previsão de cientistas sobre o aumento dos focos de queimadas no maior bioma do Brasil durante o ápice da estação seca – justamente o mês de outubro. Alerta semelhante foi realizado por Vocativo em 8 de setembro, que destacou a possibilidade de piora da fumaça que já tomava Manaus naquele momento. Mais recentemente, Vocativo repercutiu a coletiva de Marina Silva em Manaus no dia 13 de outubro, em que a ministra destacou a origem criminosa dos incêndios. Amazônia Real, por sua vez, está em campo para destacar os prejuízos diretos das queimadas à saúde pública.

Apesar do árduo trabalho dos veículos independentes na abordagem das causas e consequências, urge que, em um evento com essa gravidade, os gestores de veículos que se apresentam como nacionais – e possuem estrutura e financiamento condizentes com tal pretensão – mobilizem ampla base de correspondentes ou repórteres freelancers locais para reforçar a investigação jornalística. A sociedade precisa conhecer os CPFs e CNPJs envolvidos na destruição para lhes atribuir as devidas responsabilidades – e o jornalismo é essencial para que essas e outras informações de interesse público venham à tona. Afinal, como falar de solução para crise ambiental sem haver conhecimento sobre a origem dos problemas?

*Jornalista, doutora em Comunicação e Informação, integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS).

A causa da tragédia é o El Niño. Será?

Nasa capta imagem do El Niño / Imagem: Sentinel-6 Michael Freilich/Nasa

Por Clara Aguiar* e Eloisa Beling Loose**

Em toda a sua extensão, o Brasil tem vivenciado uma série de ocorrências de eventos climáticos extremos. Enquanto o Rio Grande do Sul tenta se recuperar após a passagem de nove ciclones em apenas três meses, estados da Região Norte enfrentam uma das mais graves estiagens de sua história. Os rios da região amazônica estão se transformando em bancos de areia, minando as possibilidades de deslocamento das populações — não é possível ir à escola nem aos postos de saúde. No Rio Negro, as embarcações encalham, prejudicando o abastecimento de água potável e alimento para os ribeirinhos. O combustível também não chega para fins de iluminação. Em outros pontos, a baixa profundidade e o aquecimento das águas têm causado a mortandade de peixes e mamíferos aquáticos, como no Lago Tefé em que mais de 100 botos foram encontrados mortos. Soma-se a isso a facilidade de expansão dos focos de incêndio em razão das temperaturas, estiagem e descida do nível das águas dos rios.

Esse cenário observado nos últimos meses pode, em parte, ser atribuído à influência do El Niño, caracterizado pelo aumento de chuvas no sul e secas prolongadas no norte e nordeste, combinado com o aquecimento do Oceano Atlântico Norte. Os dois fenômenos inibem a formação de nuvens e chuvas no Norte do País, o que acentua as características típicas do chamado “verão amazônico”, que costuma ser mais seco. Entretanto, de acordo com especialistas, a intensificação desses fenômenos precisa ser vista a partir de um contexto mais amplo, de transformação do ambiente e alteração do que até então se conhecia sobre o clima.

No caso da seca histórica que afeta os estados da Região Norte, a combinação do desmatamento e das queimadas na Floresta Amazônica tem relação direta, pois prejudicam a capacidade que o bioma possui de produzir umidade e de reter gases do efeito estufa. Por conta disso, a região se torna mais suscetível aos mais variados tipos de desastres climatológicos. Carlos Nobre, climatologista, explica que a seca, quando somada ao desmatamento da região, desregula o oferecimento de chuvas e prolonga esse período: “Em todo o sul da Amazônia, nós temos mais de 35% de áreas desmatadas e degradadas. Durante a estação seca, a Amazônia recicla muita água, cerca de 4,5 mm de água por dia. São 4,5 litros de água por metro quadrado de floresta. Já na pastagem muito degradada, ela recicla no máximo 1,5 mm. Com isso, há menos vapor de água na atmosfera, menos chuva durante a estação seca”.

Desde agosto — quando a seca no Amazonas ganhou repercussão nacional — o Portal g1 tem realizado a cobertura dos impactos no âmbito social, econômico e ambiental. No entanto, percebe-se que ao focalizar nos efeitos imediatos, o g1 acaba por não relacionar a situação com o desmatamento e com a crise do clima. 

Foram analisadas 47 notícias publicadas no período de 1º de agosto a 3 de outubro de 2023. O filtro das matérias foi realizado no buscador disponível no site do g1, por meio das palavras-chave “seca”, “estiagem” e “Amazonas”. 

Desse total, apenas quatro notícias estabelecem uma conexão entre o evento extremo de seca e as mudanças climáticas. São elas: “Especialistas analisam causas dos fenômenos climáticos catastróficos dos últimos meses no planeta”; “Seca fora do normal em rios da Amazônia tem relação com El Niño e aquecimento do Atlântico Norte; entenda” (traz uma citação da ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva); “Sem água na torneira, comida mais cara: o suplício das famílias em seca histórica na Amazônia” (apresenta a análise de José Genivaldo Moreira, doutor em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos e professor da Universidade Federal do Acre); e “Temperatura em lago no AM chegou a 40ºC em dia com pico de morte de botos; instituto soma 125 mortes” (entrevista Miriam Marmontel, líder do Grupo de Pesquisas em Mamíferos Aquáticos Amazônicos do Instituto Mamirauá).

Além disso, verificou-se que o enquadramento predominante é sobre os efeitos imediatos, sem trazer uma contextualização que relacionasse a degradação do bioma com o agravamento da estiagem. Quando há uma tentativa de explicação sobre as causas do problema, detém-se em mencionar a combinação de fatores naturais, construindo uma (falsa) ideia de inevitabilidade. Como ocorre nas matérias “Seca no Amazonas deixa cidade em emergência, afeta navegação e dificulta acesso a água potável”, que traz uma nota da Defesa Civil atribuindo a intensificação da seca e o aquecimento anormal nas águas somente ao fenômeno El Niño, e “O que é o fenômeno El Niño e como ele vai afetar o inverno”, que chega a afirmar em determinado trecho do texto que não há nenhuma relação entre El Niño e o aquecimento global, embora na sequência diga que as mudanças climáticas podem alterar fenômenos como esse. A afirmação é dúbia e gera desinformação. Especialistas já apontam o aquecimento global como um fator determinante da frequência e da intensidade do fenômeno. Tal abordagem invisibiliza o debate da responsabilidade da atuação humana no desequilíbrio climático.

A devastação da floresta é um propulsor da emergência climática, que tende a ser mais sentida justamente por aqueles que dependem diretamente da natureza para sua sobrevivência e não conseguem manter seus modos de vida. Com um tempo mais seco e escassez de água, os incêndios terão mais chance de se propagar e alimentar ainda mais o contexto de superaquecimento ou fervura climática. Uma crise humanitária, com aumento de doenças respiratórias decorrentes das queimadas, e falta de água e comida, está em curso. Mais de 170 mil pessoas já foram impactadas e outras ainda deverão ser atingidas, pois a previsão é de um processo longo e intenso. 

O Jornalismo tende a reportar os desastres longos, como é o caso das secas, quando se evidenciam situações-limite em que a possibilidade de ação está na fase de resposta, dificultando a cobrança por ações de mitigação e prevenção a partir da invisibilidade, do apagamento da questão na agenda pública. Diante das manifestações frequentes da crise ambiental, cabe aos jornalistas incluírem o clima como valor-notícia não apenas na cobertura dos extremos, mas no rol das pautas cotidianas. Só assim poderemos conectar causas e consequências, e, tomara, agir sobre o planeta de forma mais responsável.

*Estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). E-mail: claraaguiar14@hotmail.com.

**Jornalista e pesquisadora na área de Comunicação de Riscos e Desastres. Vice-líder do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). E-mail: eloisa.beling@gmail.com.

Parque Harmonia, da negligência ambiental à jornalística

Imagem: Gabriel Poester

Por Mathias Lengert*

O dia 20 de setembro, que tradicionalmente celebra a cultura gaúcha, rememora não apenas o churrasco e a música típica, mas também a imagem do acampamento farroupilha no Parque Harmonia, em Porto Alegre. O local, que antes abrigava diversas espécies de árvores e animais, agora é cenário de devastação. Concedida ao poder privado, a área foi transformada em um vasto canteiro de obras, resultando na descaracterização da sua vegetação em prol de um projeto de desenvolvimento que ignora a importância das áreas verdes urbanas.

Alertas de ambientalistas e pesquisadores não são escassos, no entanto, são ignorados pelas autoridades públicas, ao passo que a mídia hegemônica gaúcha parece dar de ombros para essas preocupações.

Publicada no dia 19 de setembro, a notícia Parcerias com a iniciativa privada impulsionam desenvolvimento de Porto Alegre, da Rádio Guaíba, apresenta uma abordagem questionável da concessão da Orla do Guaíba, do Cais Mauá e do Parque Harmonia. O veículo assume uma postura pró-concessão ao descrever os projetos de revitalização em Porto Alegre como bem-sucedidos e promissores. Apesar de mencionar que uma parte da população questiona esse modelo de gestão, a reportagem se limita a ouvir apenas uma fonte: o Secretário de Parcerias e Concessões do Governo do Estado do Rio Grande do Sul. O jornalismo, no entanto, possui a responsabilidade de ouvir vozes que constituam outras perspectivas, como cidadãos, movimentos sociais e especialistas em urbanismo, especialmente quando se trata de decisões que afetam os espaços públicos.

Além disso, embora enfatize a revitalização de espaços urbanos, a Rádio Guaíba não indica como essas concessões podem impactar o meio ambiente e as áreas verdes da cidade. Esse enfoque transforma a notícia quase que em uma peça de promoção dos interesses de atores que defendem esse modelo de urbanização.

É fundamental questionar que tipo de desenvolvimento está sendo priorizado em Porto Alegre e quais são os custos ambientais para a cidade. O jornalismo deve desempenhar o papel de oferecer contrapontos, conscientizar a população e incentivá-la a se engajar na preservação das áreas verdes urbanas.

Como bem expressou a professora Ana Maria Dalla Zen, “matar árvores tornou-se rotina em Porto Alegre”. Sua coluna sobre o arboricídio na capital gaúcha, publicada no Sul21, mostra que a destruição do Parque Harmonia é apenas uma peça em um projeto sistemático e abrangente que atua em várias frentes, suprimindo as áreas verdes da orla porto-alegrense. Este é um plano que negligencia os desafios urbanos contemporâneos, a necessidade de mitigação climática e a responsabilidade em relação às futuras gerações. Quando a imprensa relata esses eventos sem questionar as forças políticas que os impulsionam, acaba por adotar uma visão limitada do mundo.

*Jornalista, mestre em Comunicação e integrante do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS).

Um certo jornalismo e a cidade como “cenário de oportunidades”

Imagem: Instituto De Planejamento Urbano De Florianópolis (IPUF)

Por Míriam Santini de Abreu*

“Nas cidades, as fórmulas urbanísticas disseminadas pelo neoliberalismo a transformaram em um grande negócio: privatizações, desregulamentações, cidade empreendedora, competição entre cidades. (…) A cidade pode ser vista então como palco das relações sociais ou palco dos negócios, mas ela pode ser vista como o próprio negócio ou mercadoria. Há uma diferença entre ser suporte, palco onde as coisas acontecem, ou objeto central do processo de acumulação.” — Ermínia Maricato, arquiteta e urbanista, professora titular aposentada da USP¹

Se a disputa pelo espaço urbano e natural provoca conflitos, cabe evidenciar, na cobertura jornalística, se estão visibilizados os diferentes interesses e interpretações dos sujeitos implicados nesses conflitos. Espera-se a dita “pluralidade de fontes”, mas a quantidade de pessoas ouvidas necessariamente não garante pluralidade de opiniões, mesmo em coberturas anunciadas como robustas.

O jornal Notícias do Dia, único jornal impresso diário da Grande Florianópolis, comemorou 17 anos e, em agosto, lançou o projeto Super 17 ND para dedicar o mês ao debate sobre o futuro da região. O jornal pertence ao grupo ND, parceiro da Rede Record. O projeto teve oito cadernos temáticos, quatro videocasts e uma série de quatro seminários do chamado Fórum 2050. Segundo o grupo, a produção das reportagens envolveu mais de 40 profissionais durante quatro meses. 

A partir da análise de dois cadernos, “Plano diretor, desenvolvimento da cidade e oportunidades” (15 de agosto) e “Cidades sustentáveis e o saneamento” (22 de agosto), conclui-se que a cidade de Florianópolis é tomada como um “cenário de oportunidades” – como destaca o editorial do caderno sobre o Plano Diretor – mapeadas e interpretadas por um conjunto de fontes prioritariamente oficiais, empresariais e institucionais. A experiência de viver na “Ilha da Magia” por diferentes classes sociais passa praticamente ao largo das 44 páginas dos dois cadernos analisados.

O caderno sobre o Plano Diretor, com 24 páginas, tem 17 fontes, sendo apenas 3 delas ligadas ao meio universitário e críticas ao modelo do novo Plano Diretor de Florianópolis, aprovado pela Câmara Municipal em maio passado (Lei 739/23). O conjunto de fontes oficiais, empresariais e institucionais é interrompido em três únicos momentos: uma retranca de dois parágrafos sobre um engenheiro de software que escolheu Florianópolis para morar, uma notícia que abre com declaração aleatória de sete linhas de um morador do Centro, e outra retranca, de cinco parágrafos, sobre um casal que saiu do Norte da Ilha para morar em São José, município vizinho, em um apartamento do programa Minha Casa Minha Vida, em função dos altos valores do metro quadrado na Ilha.

A retranca é parte de uma reportagem de duas páginas que tem o mérito de levantar uma situação grave, a falta de habitação social na capital catarinense, que não faz esse tipo de moradia desde 2019 e, nos últimos 16 anos, construiu apenas 424 casas populares, número muito abaixo da média estimada pelo Ministério das Cidades. Mas o texto não desenvolve como tal situação aflige milhares de famílias em Florianópolis e no município vizinho, ambos na lista do metro quadrado mais caro do país.

Duas páginas do caderno são de conteúdo patrocinado, informado em tímida linha de pé de página, com comercial casado na página vizinha. Outras duas páginas, com duas fontes ligadas à construção civil, tratam cansativamente de novas tecnologias de materiais ligadas ao setor.

O caderno sobre saneamento, com 20 páginas, é ainda mais magro de fontes: apenas oito, sendo apenas uma fora do rol de fontes oficiais, empresariais e institucionais. Trata-se de uma moradora de São José que trabalha em Florianópolis e leva cerca de uma hora e meia do trabalho para casa, realidade esgotada em oito linhas. A frase que finaliza o único parágrafo afirma: “O trânsito congestionado e a falta de um sistema de transporte coletivo integrado são as principais causas do tempo elevado de deslocamento casa-trabalho”. Há um mundo de experiências vividas no espaço urbano da Grande Florianópolis insinuadas no curto parágrafo, mas apagadas no caderno. Como no do Plano Diretor, o caderno sobre saneamento também dedica uma página a conteúdo patrocinado com comercial casado.

O fato de a cobertura apostar mais em fontes protocolares, que deixam os textos sem a marca da rua, do vivido, impede o melhor aproveitamento de ganchos importantes, como o da reportagem intitulada “Mais de 40% da população de Florianópolis não tem acesso à rede de esgoto”. Parte expressiva dela parece alimentada por releases da Casan (Companhia Catarinense de Águas e Saneamento) e da Prefeitura.

Os dois cadernos, em especial o do Plano Diretor, tangenciam as críticas dos movimentos populares à lei aprovada em maio que revisou o Plano Diretor de Florianópolis. Na ocasião, foi ignorada, na votação e na mídia local, um Substitutivo Global dos movimentos que identificou 26 inconstitucionalidades, entre outras infrações, presentes no anteprojeto da Prefeitura.

O editorial do caderno sobre saneamento, no título, afirma que “Saneamento é o ponto-chave para uma cidade mais humana”, e que “a única forma de fazer isso é cuidando das pessoas”. Difícil é saber, no jornalismo do Grupo ND, onde param os cuidados e começam as oportunidades.

¹Palestra de abertura da 10° edição do Ciclo de Palestras “Quintas Urbanas” promovido pelo Núcleo de Análises Urbanas do Instituto de Ciências Humanas e da Informação da FURG. Disponível em: file:///C:/Users/2274/Downloads/5518-Texto%20do%20artigo-15608-1-10-20151203.pdf.

*Jornalista, doutora em Jornalismo, mestre em Geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e especialista em Educação e Meio Ambiente.  

Notícias fazem associação das ondas de calor extremo com as mudanças climáticas

Imagem: MetSul

Por Cláudia Herte de Moraes*

Temperaturas muito altas para o período, destacadas por vários veículos de imprensa brasileira nesta terça, 22 de agosto de 2023. Mas será que esses fatos são acompanhados pela preocupação com as mudanças climáticas?  O mundo está cada vez mais quente, o que acelera a crise do clima e, por consequência, se amplifica o risco de eventos climáticos extremos, como as ondas de calor, incêndios naturais e enchentes.

Ao trazer a notícia de que nesta semana teremos uma intensa onda de calor, generalizada, no Brasil, matéria do G1 não fala diretamente da emergência climática, mas deixa linkada uma reportagem do início de agosto, que  trata dos efeitos do aquecimento global, agora rebatizado como “era da fervura global”, pelo secretário-geral da ONU, António Guterres. Também fez ligação com o podcast “O Assunto”, que tratou dos “Recordes de calor e a ameaça à vida humana”, produzido por Natuza Nery. 

O texto do UOL, ao final das informações sobre as altas temperaturas, traz um trecho associando a onda de calor e as mudanças climáticas: “Um novo estudo da Unicamp detalha os efeitos das mudanças climáticas em Campinas, cidade de 1,1 milhão de habitantes no interior do Estado. Entre 1989 e o ano passado, a média das temperaturas máximas locais subiu 1,2ºC. E se não frearmos as emissões de gases de efeito estufa, a alta não deve parar por aí.”

Já a Folha de SP é bastante direta em seu título: Entenda por que mudanças climáticas causam tanto calor e incêndios na Europa” e subtítulo: “Sem redução de gases-estufa, ondas de calor e queimadas serão mais intensas e frequentes, alertam cientistas”.

Na cobertura do tema, as notícias de outros países também figuram nos portais. Como essa, da Agência Reuters publicada no UOL, que fala sobre como os incêndios se espalham na Europa diante da onda de calor, causando mortes e destruição na Grécia, Espanha, Itália e França. Não faz ligação com as mudanças climáticas.

Já no site da Época Negócios, a fonte ouvida MeteoSuisse estabelece a associação: “A mudança climática antropogênica fez com que a altitude da linha de zero grau aumentasse significativamente a cada estação”. Informa ainda que há “um impacto considerável nos habitats de humanos, animais e plantas. Recordes sucessivos para o indicador foram estabelecidos nos últimos 10 anos.”

Com esse rápido recorte do noticiário, podemos perceber que a gravidade dos problemas ambientais está batendo à porta e, com isso, a maior parte das notícias já traz a percepção de que os eventos extremos de calor fazem parte da ebulição global e da emergência climática. Mas ainda é necessário, ao discutir esse tema, trazer o debate sobre o que fazer para mitigar o aquecimento global, com a redução de emissão de gases de efeito estufa. Não há tempo para o conformismo, é preciso agir preventivamente.

As mudanças climáticas são tema frequente neste Observatório. Em julho, as ondas de calor já eram sentidas no Hemisfério Norte, e sobre isso escreveram Michel Misse Filho e de Débora Gallas. Confira ainda a análise do tema em 2022, feita por Carine Massierer.

* Jornalista, doutora em Comunicação e Informação, professora na UFSM, Integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). E-mail: claudia.moraes@ufsm.br.

Novo PAC, Plano de Transformação Ecológica e a cobertura da mídia

Imagem: Geraldo Falcão/Agência Petrobrás

Por Janaína C. Capeletti*

O governo federal lançou na última semana um novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), com a promessa de investir R$ 1,7 trilhão em todos os Estados do país. O novo PAC possui nove eixos prioritários, sendo que a área batizada como Transição e Segurança Energética receberá o segundo maior volume de recursos, com projeção de receber R$ 449,6 bilhões até 2026 e R$ 91,1 bilhões pós-2026. O valor fica atrás apenas dos projetos para Cidades Sustentáveis e Resilientes.

Além do PAC, o ministro da Economia, Fernando Haddad, apresentou o Plano de Transformação Ecológica. Entre as ações previstas estão: nova infraestrutura verde, finanças sustentáveis, economia circular, adensamento tecnológico, bioeconomia, transição energética e adaptação à mudança do clima.

Como esperado, houve ampla cobertura dos veículos de comunicação nacionais e regionais, alguns dando destaque ao Plano de Transformação Ecológica especificamente, como o Correio Brazilense e o G1, que apresentaram falas do ministro e pontos básicos do projeto. O portal o Eco também noticiou e questiona, no texto, como o governo irá equilibrar o retorno de grandes obras de infraestrutura e a preservação ambiental. O Globo Rural abordou a previsão de investimentos em biocombustíveis e energia limpa, já o R7 enfatizou os investimentos que a Petrobras planeja, que inclui um fundo de descarbonização.

Os textos, em geral, não discutem de forma aprofundada o projeto, apenas reproduzem o discurso governamental, sem a escuta de outras vozes que pudessem ampliar o debate em torno de pautas tão relevantes para a sociedade. Não há crítica sobre os reais impactos do PAC na questão ambiental, se o que está sendo posto realmente é positivo e viável. Pode ser que repercussões mais específicas sobre as propostas do governo ocorram nos próximos dias.

O site Capital Reset foi, dos veículos analisados, o que mais aprofundou o tema com a matéria “Em novo PAC, 62% dos recursos para energia ficam com fósseis”. O texto apresenta informações claras que permitem perceber as incongruências de discurso e ação do governo com relação à pauta ambiental.

O site Um só planeta, com a matéria “Novo PAC prevê transição ecológica, mas também investimento bilionário em petróleo e gás e projetos ambientalmente polêmicos”, também apresentou uma visão mais analítica com relação ao PAC, destacando os projetos  já em andamento e que são duvidosos com relação ao impacto ambiental positivo.

Vivemos uma emergência climática, não há mais espaço para que compromissos assumidos em termos governamentais sejam ambíguos, reforçando uma condição que já se mostra inviável em termos planetários. Os veículos de comunicação têm o compromisso de informar, e como vimos nos textos citados, eles fizeram bem o seu papel, mas é preciso ir além. É também compromisso do jornalismo ouvir diferentes vozes e questionar. Espera-se que esta pauta seja ampliada.

*Jornalista, mestranda em Comunicação na UFRGS, integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). E-mail: janacapeletti@gmail.com.

As dificuldades na cobertura de um bioma campestre

Pesquisa encontra até mais de 50 espécies de plantas/metro quadrado no campo nativo pampeano. Como restaurar tamanha biodiversidade campestre? – Imagem: Eliege Fante/Rede Campos Sulinos.

Por Eliege Fante*

A recente boa notícia do governo gaúcho sobre o plantio de “800 mil mudas no bioma pampa”, ler aqui e aqui, denotando resultados de Projeto iniciado em 2018 “a partir de dados alarmantes sobre o bioma pampa, entre eles, a diminuição de quatro milhões de hectares de área entre 1985 e 2021 (de 18,2 mi/ha para 14 mi/ha)”, foi repetida por grande parte da imprensa, através de rádios como a Guaíba e outras do interior do estado, tevês e internet. Por conhecermos as adversidades enfrentadas pelos jornalistas para realizarem os seus trabalhos, entre outros obstáculos diante do extremado enxugamento das redações, cabe problematizar esta mera repetição/republicação com a imprensa-empresa.

A publicação dos chamados relises é comum, bem como a necessidade conhecida por jornalistas, de complementar as informações que veiculam. Uma semana depois, outro relise foi meramente repetido, só que a respeito da renovação do Projeto, tendo sido exaltado pelo governo e igualmente por GZH, entre outros veículos de imprensa. O fato é que os relises republicados anunciam benefícios para o Pampa, mas afirmam que o recurso provém do cumprimento de débitos de Reposição Florestal Obrigatória (RFO), ou seja, relacionado às áreas florestais.

RFO destinada à recuperação de áreas na Mata Atlântica faz sentido, mas não tem o mesmo peso para a conservação de um bioma predominantemente campestre como o Pampa. É importante, sim; mas o desmatamento no Pampa é muito menor do que a supressão de campos, tendo sido de 3 mil hectares em 2022 segundo o MapBiomas. E a Rede Campos Sulinos estima que a supressão de vegetação campestre no Pampa tenha sido, em média, de 145 mil hectares por ano entre 2012 e 2020. Esta é a maior perda de vegetação nativa entre todos os biomas brasileiros, e os pesquisadores se perguntam quanto dessa supressão foi autorizada de acordo com a Lei 12.651/2012 (que não é Código Florestal, é Lei de Proteção a Vegetação Nativa). Fica aí sugerida uma pauta para a imprensa.

“No Pampa, o que faz sentido é restaurar campos nativos, haja vista a perda anual de milhares de hectares”, comentou um especialista. O uso de recursos da RFO na recuperação de campos nativos do Pampa seria uma boa notícia, porém essa confirmação depende do envio de um pedido de informação, pois, na notícia consta apenas que “A RFO é uma medida legal para compensação ou reparação ambiental pela supressão ou manejo de vegetação nativa. A cada árvore suprimida, o empreendedor precisa compensar as perdas com valores equivalentes a outras 15 mudas”. O exemplo da árvore não facilita a compreensão ainda mais que o gravíssimo risco de extinção encontra-se na vegetação campestre característica do Rio Grande do Sul e da matriz cultural.

Urge qualificar a produção dessas notícias por meio da escuta de fontes diversificadas, especialmente de técnicos dos órgãos ambientais, que igualmente são fontes oficiais do Estado. Ou seguiremos festejando a circulação de informações incompletas quando poderiam evidenciar as demais ações cabíveis e, o mais importante, eficazes para evitar a extinção do Pampa. E a primeira delas é “Dar imediato cumprimento ao previsto na Lei n° 12.651/2012, implementando a análise do Cadastro Ambiental Rural (CAR) com exigência de Reserva Legal, representando no mínimo 20% da área total das propriedades rurais do bioma Pampa”, conforme explicitado na Carta Aberta da Coalizão pelo Pampa.

Afinal, quantas notícias a imprensa publicou sobre o uso produtivo das áreas de reserva legal no Pampa, onde o manejo pastoril é permitido e merece ser incentivado? Enquanto isso, predominam as notícias sobre a conversão do Pampa através dos incentivos às lavouras, em especial de soja, mas também de arroz, milho e eucaliptos. Por fim, é preciso ultrapassar a ideia falaciosa de que áreas de campo com pecuária são de uso consolidado, porque o manejo pastoril conserva a biodiversidade do Pampa. Para tanto, a imprensa-empresa tem que aceder à escuta de fontes diversificadas, bem como pautar as recomendações técnicas dos órgãos ambientais para estancar a supressão da vegetação nativa campestre.

*Jornalista, doutora em Comunicação e Informação, membra do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental UFRGS/CNPq e assessora de comunicação da Rede Campos Sulinos.