Por que um ingrediente do veneno utilizado na Guerra do Vietnã é aplicado na agricultura familiar brasileira?

Imagem: Nosso Futuro Roubado

Por Isabelle Rieger* Ilza Maria Tourinho Girardi**

No domingo, 14 de abril, o programa Fantástico, da TV Globo, colocou no ar uma reportagem de autoria do jornalista Paulo Renato Soares, denunciando a aplicação do agrotóxico agente laranja, nas fazendas do pecuarista Claudecy Oliveira Lemes, do município de Barão de Melgaço, em Mato Grosso. Conforme a reportagem, agrotóxicos com a substância 2,4-D foram jogados sobre uma camada de floresta do Pantanal, em área de 80 mil hectares, equivalente à cidade de Campinas.

A reportagem informa também que o fazendeiro tem R$5,2 bilhões em autuações, desde 2019, por danos ao bioma. Além de destruir a floresta, ele expulsou dezenas de famílias para apropriar-se de uma área de 80 mil hectares. O desfolhante foi aplicado para transformar a área em campos de pastagem para a criação de gado.

Os investigadores encontraram em uma das fazendas notas fiscais que comprovam a compra de 240 toneladas de capim, de espécie exótica para substituir a área desmatada, outro problema para a biodiversidade. Conforme Jean Carlos Ferreira, fiscal da Secretaria do Meio Ambiente de Mato Grosso, ouvido pelo repórter no local da autuação, “quando ele joga diretamente do avião, além de matar essas árvores, influencia também diretamente na fauna, principalmente na água”.

Durante três anos foram lançados sobre a área 25 agrotóxicos diferentes, dentre eles o 2,4 – D. Essa é a mesma substância desfolhante encontrada no agente laranja, veneno usado pelos Estados Unidos na Guerra do Vietnã (1959-1976), para tentar vencer o inimigo que se escondia sob as árvores. O jornalista entrevista o professor Vanderlei Pignati, da UFMT, que afirma que o herbicida é bastante estável e é levado pelos ventos a uns 20 ou 30 km contaminando tudo. A secretaria do Meio Ambiente do Mato Grosso, Mauren Lazzaretti, também ouvida pela reportagem, declarou que houve uma mudança no protocolo de medidas impostas ao infrator, que passou a arcar também com a reparação dos danos ambientais. Outras fontes, como polícia, promotora de justiça e perito, mencionaram os danos à flora e à saúde das pessoas, além da questão legal. O jornalista tentou falar com o pecuarista, mas ele não quis dar entrevista.

A reportagem com 10 minutos e 41 segundos denuncia um problema ambiental grave, no entanto, poderia ter abordado com mais profundidade os danos do 2, 4 – D. A substância lançada sobre o Vietnã, junto com o 2, 4, 5- T, continua provocando doenças, como câncer e o nascimento de crianças com anomalias devido à sua periculosidade.

De acordo com os pesquisadores Gurgel, Guedes e Friedrich, nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro, foram liberados 997 agrotóxicos. Entre 2019 e 2020, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) finalizou a avaliação de ingredientes ativos de agrotóxicos mais utilizados no Brasil 2-4 D e o glifosato, além da abamectina, tiram e paraquate.

Conforme os pesquisadores, foi constituída uma Força Tarefa composta por representantes das empresas agroquímicas que atuaram na divulgação de  informações que atestam a segurança dos produtos, desqualificando a produção científica que apontava os riscos das substâncias. Além disso, o grupo fazia pressão para interferir nas decisões do governo e do legislativo. Tal procedimento não é novidade, pois ocorre desde a aprovação da Lei 7802, Lei dos Agrotóxicos, promulgada em 1989 e que incomodou muito a indústria agroquímica e seus prepostos no congresso e no governo em diferentes épocas.

A Anvisa concluiu pela não proibição tanto do glifosato como 2,4-D, além da abamectina e tiram. Manteve a proibição somente do paraquate. No entanto, conforme estudos acadêmicos, o 2,4-D é possivelmente cancerígeno, está relacionado ao desenvolvimento do Linfoma não Hodgkin (LNH), sarcomas, câncer de cólon e leucemia. Também “pode alterar o desempenho sexual e a fertilidade, exercer efeitos tóxicos no feto e em lactentes e interferir no desenvolvimento motor, comportamental, intelectual, reprodutivo, hormonal ou imunológico, provocando aborto ou morte nos primeiros meses de vida”, de acordo com Gurgel et al. no artigo Flexibilização da regulação de agrotóxicos enquanto oportunidade para a (necro)política brasileira: avanços do agronegócio e retrocessos para a saúde e o ambiente. Outro aspecto apontado pela literatura é que pode produzir dioxinas, que são classificadas como poluentes orgânicos persistentes, reconhecidas por causarem câncer e outros problemas.

O engenheiro agrônomo Jacques Lüderitz Saldanha, curador de conteúdo do site Nosso Futuro Roubado, lembra do caso das parreiras  na região da Campanha Gaúcha, que ficaram prejudicadas pelo uso de um herbicida na soja. Tal herbicida é o 2,4-D, empregado como substituto ao glifosato/roundup, que já não mata as ‘super-ervas’. Saldanha questiona: “Está-se acompanhando os efeitos em termos de saúde de toda a população que consome soja e outros vegetais do agronegócio?”. O site informa sobre como ficou o Vietnã e sua sociobiodiversidade após a guerra, assim como as medidas compensatórias realizadas pelos Estados Unidos. Porém, isso devolve a vida ou a saúde das pessoas? E a biodiversidade?

Voltando à ação da Anvisa, percebe-se que o princípio da precaução não foi acionado pela agência, que deveria considerá-lo, caso sua finalidade seja mesmo “promover a proteção da saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e consumo de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados, bem como o controle de portos, aeroportos, fronteiras e recintos alfandegados”. (Lei nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999). A reportagem poderia ter apontado alguns desses problemas e questionado sobre quais estudos foram considerados para a liberação do produto. A finalidade do jornalismo, além de informar corretamente a população para que essa possa exercer sua cidadania, é fazer a vigilância dos poderes.

*Isabelle Rieger é estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS).

**Ilza Maria Tourinho Girardi é jornalista, professora titular aposentada/UFRGS, professora convidada no PPGCOM/UFRGS e coordenadora do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental CNPq/UFRGS e coordenadora do Observatório do Jornalismo Ambiental/Fabico/UFRGS.

Jornalismo ambiental e a arte de contar boas histórias, mesmo que sejam más

Imagem: Captura de tela do site The Intercept Brasil

*Por Ursula Schilling

Em tempos de #ForaSalles e de Cúpula do Clima, pode parecer difícil disputar espaço para outras abordagens sobre a pauta ambiental, mas é necessário e, felizmente, há exemplos de que é possível. Chamo a atenção para a reportagem publicada no site The Intercept Brasil, “Syngenta sabia dos riscos de agrotóxico que matou 100 mil pessoas, mas preferiu lucrar”, sobre a omissão da referida empresa no manejo do herbicida “paraquate”, um dos seus produtos mais vendidos. O químico, que é extremamente tóxico para humanos, segundo a matéria, também “perturba as membranas celulares das plantas e interfere no processo de fotossíntese, de modo que os efeitos podem ser vistos dentro de algumas horas. Por funcionar com tanta rapidez, o paraquate foi celebrado como um avanço significativo quando foi introduzido nos anos 1960”.

A longa reportagem levou em consideração 400 documentos, e o esforço de investigação resultou numa história bem apurada e com uma série de elementos. Se levar informações qualificadas ao leitor/espectador é a premissa básica do profissional de imprensa, o bom jornalismo também é, como diz o jargão, a arte de contar histórias — ainda que sejam más histórias. O desenvolvimento adequado, rítmico e consistente da narrativa envolve o leitor e, assim, ajuda a promover o engajamento no tema, em especial numa área que, como pontuado neste Observatório, necessita de ativa militância para que seja cotidianamente pautado pela opinião pública.

Imagem: Captura de tela do site The Intercept Brasil

Considerando a necessidade de uma perspectiva sistêmica para a cobertura midiática ambiental e não isolada das pautas cotidianas, o tema em questão — agrotóxicos — parece ainda pouco explorado, sobretudo nos meios de comunicação de massa. No caso de um portal como o The Intercept, a pauta recebeu um espaço grande o suficiente para atestar a importância do assunto. O tom é de denúncia, e o primeiro acerto se dá logo no título: sem meias palavras, destaca-se a importante informação — por vezes silenciada ou naturalizada nas coberturas-padrão — de que agrotóxicos, literalmente, matam.

Ao aprofundar o tema, no entanto, há um foco excessivo na questão da ingestão deliberada do paraquate (em suicídios), não trazendo um elemento central para a denúncia: estes produtos são usados em larga escala em lavouras de todo tipo, e os alimentos produzidos a partir da agricultura tradicional, que se vale de tais recursos para ganhar produtividade, vão para os nossos pratos. Haveria, certamente, espaço para uma melhor amarração, para uma abordagem que não desse a impressão de que o problema está em tomar deliberadamente uma dose do veneno. De qualquer forma, são importantes os fatos e dados trazidos pela matéria, mostrando a lógica da empresa e os efeitos funestos dela decorrentes.

Cabe reiterar ainda que, para o tipo de jornalismo que vai na contramão do desmonte das redações e da sobrecarga dos seus profissionais, é preciso uma porção de recursos fundamentais: humanos (jornalistas com condições dignas de trabalho e capacitados), materiais (para pesquisa, deslocamentos e tudo o mais necessário para uma boa apuração) e imateriais (tempo, coragem e retaguarda para fazer frente à oposição de gigantes da indústria de sementes e agroquímicos, por exemplo). Não é fácil fazer jornalismo de qualidade, mas torna-se cada vez mais imprescindível.

*Jornalista e membro do Núcleo de Ecojornalistas do RS e do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS).

Onde estão os vaga-lumes?Meio ambiente, nosso modus vivendi e realidades pouco abordadas pelo jornalismo

Fonte: Pixabay

*Por Ursula Schilling

Dia desses, assistindo, com minha filha de 2 anos e meio, a um canal infantil só sobre animais, apareceu, não me lembro em que contexto, o desenho de um vaga-lume. Minha pequena companheira fitou a tela admirada. Até aquele dia, não vira ou ouvira falar da criatura. Ao que ela me olhou, curiosa, tentei explicar: “é um vaga-lume, filha, um inseto que brilha no escuro… não se vê muitos por aí”.

Dei-me conta, então, de que eu mesma não os vejo desde a infância. Até os meus 10 anos de idade (isso faz bastante tempo), mais ou menos, ainda era comum assistir, nos fundos da minha casa, de onde se avistava um imenso terreno verde, ao espetáculo luminoso de centenas desses pequenos animais piscantes.

Mas onde estão, afinal, os vaga-lumes? Por que não ouço ninguém falar do seu sumiço? Segundo matéria publicada no site da revista Superinteressante, em fevereiro deste ano, esses insetos estão sob risco de extinção. Entre as causas apontadas: uso de agroquímicos, que podem exterminá-los do ambiente ainda em estágio larval; perda de habitat em função da ocupação humana e consequente destruição ambiental; poluição luminosa, visto que as luzes artificiais afetam o ritmo de diversos animais, inclusive o nosso.

Fonte: Captura de tela do site da revista Superinteressante

O desaparecimento de espécies, sejam elas grandes ou pequenas, não parece receber destaque das manchetes. E, se não está nos jornais, compreendidos aqui quaisquer canais de mídia, é como se não fizesse parte de nossa realidade, como se não nos afetasse ou fosse algo muito distante.

Há diversos autores e teorias que explicam porque isso ocorre. Ainda que não seja o único elemento a sere considerado na construção social da realidade, o jornalismo tem papel significativo nessa construção, seja ela objetiva ou subjetiva. O jornalista interpreta os acontecimentos na sua produção discursiva e, por meio das notícias, o indivíduo poderá interpretar o mundo que o cerca e será afetado em maior ou menor grau pelas notícias. É uma forma de conhecer e conhecer-se no mundo. Com isso, podemos ter a falsa impressão de que aquilo que não nos é contado (ou que não faz parte de nossa realidade imediata) não existe. E, se não existe, como refletir a respeito?

Em se tratando da pauta ambiental, sabemos que catástrofes como queimadas, eventos climáticos dramáticos e rompimento de barragens, por exemplo, ainda são grandes ganchos para a cobertura do tema. A importância de tais tópicos é inquestionável, mas e os reflexos do nosso dia a dia no meio ambiente? Aquilo que não é catastrófico no curto prazo ou não grita aos nossos olhos, mas que tem resultados igualmente desastrosos, merece e deve ser agendado jornalisticamente.

Precisamos exercer e demandar um jornalismo que questione nosso modus vivendi, que traga discussões incômodas mas necessárias. Do contrário, não são só os animais que desaparecerão. Não é um processo simples, são muitos vieses e caminhos possíveis.

Por ora, terei de mostrar as luzes de natal à minha filha e dizer: “assim brilham os vaga-lumes”, desejando que ela tenha a oportunidade de conhecê-los ao vivo, e não somente pela televisão.

*Jornalista, mãe, membro do Núcleo de Ecojornalistas do RS.