O desafio da cobertura ambiental para além das catástrofes

Por Débora Gallas*

Em uma das edições do Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo Ambiental, talvez há uns dez anos, lembro que uma participante perguntou às demais presentes: como sensibilizar as pessoas sobre os efeitos das mudanças climáticas no planeta com imagens que sejam mais próximas da gente? Ela gostaria de exemplos para além da imagem-síntese do aquecimento global àquela altura – a do urso polar ilhado por conta do derretimento de gelo no Ártico.

Infelizmente, neste momento, estamos rodeadas de imagens exemplares sobre a emergência climática. Após um 2023 marcado por alto volume de chuvas e inundações, novamente acompanhamos o noticiário sobre os eventos climáticos que atingem o Rio Grande do Sul. A população brasileira sabe que as mudanças climáticas são realidade porque sente na pele seus efeitos.

Mas, se nossa preocupação há dez anos era informar e sensibilizar as pessoas sobre esses riscos através do jornalismo porque ainda havia tempo hábil para buscar alternativas que reduzissem danos e impactos, nosso desafio hoje é manter o público engajado para além do bombardeio de informações catastróficas. A mera reprodução do discurso de fontes oficiais reforça essa sensação porque está associada, por um lado, à ideia de que a tragédia é imprevisível e, por outro, de que ela é inevitável.

Estes dois pontos estiveram presentes no discurso do governador do estado, Eduardo Leite, em dois momentos distintos. No ano passado, o argumento de que as chuvas pegaram o estado de surpresa chegou a ser contestado ao vivo pelo jornalista André Trigueiro na GloboNews. Agora, como repercutem os veículos locais, como GZH, Leite vem usando as redes sociais para compartilhar informes da Defesa Civil sobre o agravamento da situação em áreas de risco.

Acompanhar as falas oficiais é, obviamente, uma tarefa fundamental do jornalismo, mas é importante variar o tom da cobertura e incluir aspectos diversos que demonstrem a complexidade do problema. Isso pode ser feito através de um olhar crítico ao discurso desses atores frente a posicionamentos recentes que podem levar ao agravamento da crise climática, como o incentivo à exploração de carvão no Rio Grande do Sul, tema que foi objeto de análise recentemente neste Observatório.

Pode vir também da escuta de outras fontes, como as especialistas, como fez esta matéria de O Globo, mesmo à distância. Além de explicar a origem do fenômeno, o texto incluiu a perspectiva de entidades da sociedade civil que acompanham há anos, com preocupação, o impacto de atividades como a monocultura de soja, por exemplo, para a regulação climática da região.

Por fim, urgem coberturas que mostrem à população a necessidade de políticas públicas que se antecipem às catástrofes – e que há muitas propostas boas por aí, com origem nos próprios territórios impactados, porém sujeitas à vontade política para terem seu potencial transformador aumentado.

O 20º Acampamento Terra Livre, por exemplo, que reuniu milhares de indígenas de todo o país em Brasília na semana passada, buscou pautar a contribuição da luta indígena pelo território para a conservação dos ecossistemas brasileiros – luta essa que consequentemente reverbera em estratégias de resiliência do país frente às mudanças climáticas e à perda de biodiversidade.

Portanto, cabe ao jornalismo acompanhar esses movimentos e manter o público engajado em possíveis soluções para que não haja apenas resignação e inação diante da catástrofe.

* Jornalista, doutora em Comunicação e Informação, integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS).

A causa da tragédia é o El Niño. Será?

Nasa capta imagem do El Niño / Imagem: Sentinel-6 Michael Freilich/Nasa

Por Clara Aguiar* e Eloisa Beling Loose**

Em toda a sua extensão, o Brasil tem vivenciado uma série de ocorrências de eventos climáticos extremos. Enquanto o Rio Grande do Sul tenta se recuperar após a passagem de nove ciclones em apenas três meses, estados da Região Norte enfrentam uma das mais graves estiagens de sua história. Os rios da região amazônica estão se transformando em bancos de areia, minando as possibilidades de deslocamento das populações — não é possível ir à escola nem aos postos de saúde. No Rio Negro, as embarcações encalham, prejudicando o abastecimento de água potável e alimento para os ribeirinhos. O combustível também não chega para fins de iluminação. Em outros pontos, a baixa profundidade e o aquecimento das águas têm causado a mortandade de peixes e mamíferos aquáticos, como no Lago Tefé em que mais de 100 botos foram encontrados mortos. Soma-se a isso a facilidade de expansão dos focos de incêndio em razão das temperaturas, estiagem e descida do nível das águas dos rios.

Esse cenário observado nos últimos meses pode, em parte, ser atribuído à influência do El Niño, caracterizado pelo aumento de chuvas no sul e secas prolongadas no norte e nordeste, combinado com o aquecimento do Oceano Atlântico Norte. Os dois fenômenos inibem a formação de nuvens e chuvas no Norte do País, o que acentua as características típicas do chamado “verão amazônico”, que costuma ser mais seco. Entretanto, de acordo com especialistas, a intensificação desses fenômenos precisa ser vista a partir de um contexto mais amplo, de transformação do ambiente e alteração do que até então se conhecia sobre o clima.

No caso da seca histórica que afeta os estados da Região Norte, a combinação do desmatamento e das queimadas na Floresta Amazônica tem relação direta, pois prejudicam a capacidade que o bioma possui de produzir umidade e de reter gases do efeito estufa. Por conta disso, a região se torna mais suscetível aos mais variados tipos de desastres climatológicos. Carlos Nobre, climatologista, explica que a seca, quando somada ao desmatamento da região, desregula o oferecimento de chuvas e prolonga esse período: “Em todo o sul da Amazônia, nós temos mais de 35% de áreas desmatadas e degradadas. Durante a estação seca, a Amazônia recicla muita água, cerca de 4,5 mm de água por dia. São 4,5 litros de água por metro quadrado de floresta. Já na pastagem muito degradada, ela recicla no máximo 1,5 mm. Com isso, há menos vapor de água na atmosfera, menos chuva durante a estação seca”.

Desde agosto — quando a seca no Amazonas ganhou repercussão nacional — o Portal g1 tem realizado a cobertura dos impactos no âmbito social, econômico e ambiental. No entanto, percebe-se que ao focalizar nos efeitos imediatos, o g1 acaba por não relacionar a situação com o desmatamento e com a crise do clima. 

Foram analisadas 47 notícias publicadas no período de 1º de agosto a 3 de outubro de 2023. O filtro das matérias foi realizado no buscador disponível no site do g1, por meio das palavras-chave “seca”, “estiagem” e “Amazonas”. 

Desse total, apenas quatro notícias estabelecem uma conexão entre o evento extremo de seca e as mudanças climáticas. São elas: “Especialistas analisam causas dos fenômenos climáticos catastróficos dos últimos meses no planeta”; “Seca fora do normal em rios da Amazônia tem relação com El Niño e aquecimento do Atlântico Norte; entenda” (traz uma citação da ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva); “Sem água na torneira, comida mais cara: o suplício das famílias em seca histórica na Amazônia” (apresenta a análise de José Genivaldo Moreira, doutor em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos e professor da Universidade Federal do Acre); e “Temperatura em lago no AM chegou a 40ºC em dia com pico de morte de botos; instituto soma 125 mortes” (entrevista Miriam Marmontel, líder do Grupo de Pesquisas em Mamíferos Aquáticos Amazônicos do Instituto Mamirauá).

Além disso, verificou-se que o enquadramento predominante é sobre os efeitos imediatos, sem trazer uma contextualização que relacionasse a degradação do bioma com o agravamento da estiagem. Quando há uma tentativa de explicação sobre as causas do problema, detém-se em mencionar a combinação de fatores naturais, construindo uma (falsa) ideia de inevitabilidade. Como ocorre nas matérias “Seca no Amazonas deixa cidade em emergência, afeta navegação e dificulta acesso a água potável”, que traz uma nota da Defesa Civil atribuindo a intensificação da seca e o aquecimento anormal nas águas somente ao fenômeno El Niño, e “O que é o fenômeno El Niño e como ele vai afetar o inverno”, que chega a afirmar em determinado trecho do texto que não há nenhuma relação entre El Niño e o aquecimento global, embora na sequência diga que as mudanças climáticas podem alterar fenômenos como esse. A afirmação é dúbia e gera desinformação. Especialistas já apontam o aquecimento global como um fator determinante da frequência e da intensidade do fenômeno. Tal abordagem invisibiliza o debate da responsabilidade da atuação humana no desequilíbrio climático.

A devastação da floresta é um propulsor da emergência climática, que tende a ser mais sentida justamente por aqueles que dependem diretamente da natureza para sua sobrevivência e não conseguem manter seus modos de vida. Com um tempo mais seco e escassez de água, os incêndios terão mais chance de se propagar e alimentar ainda mais o contexto de superaquecimento ou fervura climática. Uma crise humanitária, com aumento de doenças respiratórias decorrentes das queimadas, e falta de água e comida, está em curso. Mais de 170 mil pessoas já foram impactadas e outras ainda deverão ser atingidas, pois a previsão é de um processo longo e intenso. 

O Jornalismo tende a reportar os desastres longos, como é o caso das secas, quando se evidenciam situações-limite em que a possibilidade de ação está na fase de resposta, dificultando a cobrança por ações de mitigação e prevenção a partir da invisibilidade, do apagamento da questão na agenda pública. Diante das manifestações frequentes da crise ambiental, cabe aos jornalistas incluírem o clima como valor-notícia não apenas na cobertura dos extremos, mas no rol das pautas cotidianas. Só assim poderemos conectar causas e consequências, e, tomara, agir sobre o planeta de forma mais responsável.

*Estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). E-mail: claraaguiar14@hotmail.com.

**Jornalista e pesquisadora na área de Comunicação de Riscos e Desastres. Vice-líder do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). E-mail: eloisa.beling@gmail.com.