
Em dois meses, estaremos na metade da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP-26 (entre 1º e 12/11/2021), na Escócia. O acontecimento vai exigir dos países a apresentação de metas de redução das emissões dos gases de efeito estufa que sejam coerentes com o contexto do Antropoceno. Neste percurso, as notícias jornalísticas de meios de referência (como a Folha, o Estadão e o Valor Econômico) já persuadem leitores a respeito da produção de hidrogênio verde (H2V) com fontes renováveis (usinas eólicas e solares, mas também nucleares).
Essa persuasão, basicamente, se nutre de duas justificativas. A primeira é possibilitar a descarbonização global dos setores produtivos que mais poluem: siderurgia e mineração; indústria química; transporte aéreo e rodoviário (especialmente o de cargas pesadas); geração de eletricidade; produção de amônia e fertilizantes para agricultura. A segunda é atender às demandas de consumo dos países desenvolvidos, como Alemanha e França, entre outros europeus, e os Estados Unidos, ou seja, de importar H2V de modo a manter suas economias ativas. Os links, nas palavras em destaque neste texto, conduzem às notícias que basearam a nossa análise.
Segundo as notícias, o Ceará, através do Complexo Industrial e Portuário do Pecém, está mais avançado nos acordos com megaempresas transnacionais: a Enegix e a White Martins e, recentemente, com a EDP. Na sequência, o Rio de Janeiro tem memorando assinado com a Fortescue pelo Porto do Açu. Soubemos por outros meios, que Minas Gerais e Rio Grande do Sul também estão na disputa pela atração de investidores aos nominados hub’s de hidrogênio. Tanto os executivos como as megaempresas seguem os princípios da ESG (Environmental, Social e Corporate Governance) através das chamadas boas práticas ambientais, sociais e de governança corporativa. Contudo, não deixam claro como essas práticas vão frear a devastação da natureza e os consequentes efeitos da mudança do clima, já que a exploração capitalista vai continuar voraz sobre os territórios. Esta problematização tampouco é feita pela Folha e pelo Valor Econômico, que reportam em espaços específicos essas iniciativas no âmbito da ESG, como o hidrogênio verde, além da cobertura nas editorias convencionais. Age igualmente o jornal O Estado, que nomeou o espaço como Retomada Verde.
Se considerarmos o jornalismo como mais uma forma de conhecimento, assim como os teóricos Robert Park (1864-1944), Adelmo Genro Filho (1951-1988) e Eduardo Medistch, a reprodução das informações obtidas através das fontes oficiais não adere ao princípio do jornalismo de atendimento ao interesse público. Não por ter faltado o contraditório nas notícias, mas sim, pela restrita abordagem economicista/crematística, como se essa visão de mundo (particular) fosse universal no nosso país, um dos mais megabiodiversos (tanto em termos ecológicos como socioantropológicos). Um exemplo disso, a dramática questão da água no país reportada como “oportunidade de investimento em meio à crise hídrica e perspectiva de escassez no futuro” por O Estado.
De modo semelhante, notícia da Folha destacou o que seria uma boa prática ambiental pela Embraer através do “primeiro voo com um avião elétrico produzido pela fabricante no Brasil”. O detalhe é que o modelo Ipanema é “usado para pulverizar lavouras com pesticidas”. Até aqui, as notícias indicaram a proposta do norte global de descarbonizar os oligopólios econômicos como a licença que vai possibilitar o neoextrativismo no sul. O presidente da Siemens Energy na América Latina, Tim Holt, disse: “Todos os países [da América Latina] estão em ótima posição [para o hidrogênio verde], pela abundância de recursos renováveis, hídrico, solar e vento. Na Europa, não temos recursos naturais para produzi-lo em quantidade suficiente para todo o consumo. Então, temos a política de apoiar ativamente outros países, como Chile e Colômbia, para criar oportunidades de produção e exportação”.
Em 7 de setembro de 2020, O Estado exaltava “o potencial” e “a vocação” do Brasil para produzir hidrogênio verde enquanto explicava o processo de eletrólise da água. Que nesta semana da pátria possamos considerar tudo o que está em jogo nessa produção e na exportação do hidrogênio verde pelo Brasil. Só encontramos um texto [ainda que não jornalístico] contemplando os interesses das comunidades locais e populações dos países do nosso continente. Segundo Maximiliano PROAÑO, como a produção de H2V depende de eletricidade e água (sendo este o bem comum essencial à vida), o risco de escassez hídrica e seca nos territórios precisa ser avaliado. Além disso, alerta que utilizar água dessalinizada como alternativa à doce vai interferir na temperatura da água do mar, reduzindo o oxigênio e provocando graves danos à vida aquática. Esse é um relevante apontamento em meio à crise hídrica e energética que vivemos no Brasil, visto que há previsão de apagões no fornecimento de água e eletricidade dentro de um ano se não forem tomadas medidas adequadas.
Por tudo isso, acreditamos na prática jornalística como forma de conhecimento (produtora e reprodutora) sob princípios da ética cidadã diante dos bens comuns. No caso do H2V, cuja tecnologia está em desenvolvimento, incorporar o princípio da precaução pode fazer a diferença na interpretação sobre os fatos e os respectivos discursos. Recente artigo do nosso Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental concluiu que a “aplicação da ideia de precaução está ainda distante da discussão jornalística na academia e nas redações, apesar de todos os sinais de que estamos vivendo uma crise ambiental sem precedentes”.
*Eliege Fante é jornalista e pós-graduada pela UFRGS em Comunicação e Informação. Integra o Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS) e é associada ao Núcleo de Ecojornalistas (NEJ-RS). E-mail: gippcom@gmail.com.