A desigualdade agravada pelos desastres

São Sebastião (SP) em 22/02/2023. Casas destruídas em deslizamentos na Barra do Sahy após tempestades no litoral norte de São Paulo. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Por Eloisa Beling Loose*


A imprensa brasileira, de modo geral, tem ampliado e evidenciado as conexões entre a emergência climática e a eclosão, cada vez mais intensa e frequente, de desastres. Mesmo assim, essa cobertura mais analítica, que trata das causas estruturais ao invés de simplesmente culpabilizar as fortes chuvas, segue sendo menos volumosa do que aquela focada na situação imediata.


Essa reação é similar à atenção dada pelo Sistema de Proteção e Defesa Civil na hora da resposta e recuperação, onde há mais disponibilização de recursos financeiros, se comparada com as fases de prevenção, mitigação e preparação (antes do desastre). Segundo dados do Tribunal de Contas da União (TCU), publicado na coluna de Carlos Madeiro, no UOL, nos últimos 10 anos, o governo federal gastou 69% dos recursos de defesa civil com ações de recuperação e resposta às tragédias – para prevenção foram destinados apenas 31% dos recursos.


Nesse Carnaval, a região de São Sebastião, no litoral de São Paulo, foi atingida por chuvas torrenciais. O desastre foi amplamente divulgado e destacou que a população mais atingida foi aquela que vivia em áreas de risco. Mais de 60 pessoas morreram, cerca de mil pessoas ficaram desabrigadas e inúmeros prejuízos, de diferentes ordens, se somam às consequências de uma situação fruto de grilagem de terra, especulação imobiliária e racismo ambiental.


A reportagem “De risco ou de rico”, escrita por Rodrigo Bertolotto com as fotografias de Keiny Andrade para o TAB UOL, traz nesta semana os relatos de caiçaras que foram pressionados a vender suas terras e migrar para áreas mais baratas, próximas aos morros e sujeitas às tragédias. Uma das razões apresentadas pela reportagem é que o imposto predial e territorial urbano (IPTU) pago pelas comunidades tradicionais é o mesmo das casas de alto padrão dos veranistas abastados, por apenas considerar o valor dos terrenos à beira-mar.


Além disso, o aumento do custo de vida na região obrigou essa comunidade tradicional a se tornar mão de obra a serviço do bem-estar de uma elite. “Antes donos da terra, os caiçaras se transformaram em um exército de funcionários para garantir o conforto alheio, como vigias, jardineiros e pedreiros. Espalhada do sul fluminense até o litoral do Paraná, a população caiçara se formou desde a época colonial em praias isoladas, a partir da mistura de indígenas, quilombolas e migrantes europeus”, afirma a reportagem, assinalando que essa não é uma questão isolada.


Esse afastamento das populações tradicionais (e de outras empobrecidas) decorre de uma base colonialista que depende da exploração de muitos para o conforto de poucos. A expressão “colonialismo climático” é mobilizada para se referir como países desenvolvidos vivem às custas dos países chamados “em desenvolvimento”, deixando o ônus ecológico distante espacial e temporalmente de sua localização. Contudo, o colonialismo interno também é uma realidade: as classes mais abastadas ditam as regras de quem e de que forma os recursos devem ser utilizados. No caso de São Sebastião, o prefeito chegou a declarar que moradores ricos impediram a construção de casas populares, para realocação daqueles que estavam em áreas de risco, em 2020.


Nesta semana ainda a TV Folha em parceria com a produtora FICs divulgou o documentário “E o Morro desceu no Carnaval” sobre o desastre do litoral Norte de São Paulo. Nele a tragédia é narrada pelos moradores das regiões atingidas, que reforçam o abismo social existente entre aqueles que moram na parte bem estruturada da cidade e a população que foi empurrada para os terrenos próximos às encostas dos morros, suscetíveis aos riscos.


A crise ambiental sublinha as injustiças e preconceitos, afinal são sempre aqueles mais vulnerabilizados que mais perdem e têm mais dificuldade para se adaptar após um desastre. O jornalismo deve atuar para reportar o agravamento das desigualdades e discutir as razões que sustentam esse modelo de ocupação. Os processos lentos e contínuos, que conformam os riscos, não podem ser naturalizados pela sociedade. Afinal, para pensarmos em soluções e atuarmos na prevenção de riscos, é preciso visibilizar o que desencadeia o processo de vulnerabilização frente aos fenômenos climáticos.

* Jornalista e pesquisadora na área de Comunicação de Riscos e Desastres. Vice-líder do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). E-mail: eloisa.beling@gmail.com.

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