A CPI do escárnio e a imprensa

Imagem: Reprodução do site do MST

Por Sérgio Pereira*

A notícia é de 17 de maio: a Câmara Federal instalou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a atuação do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), composta por 17 integrantes da bancada ruralista (entre 23 membros). Seu relator, acredite, é o deputado Ricardo Salles (PL-SP). Parece deboche. E é mesmo.

Sim, Salles é o relator, esse mesmo que fez parte do ministério de Jair Bolsonaro. O ministro do Meio Ambiente que queria passar a boiada e se orgulhava de devolver aos criminosos do Pará centenas de árvores cortadas irregularmente apreendidas pela Polícia Federal. O mesmo que trabalhou com afinco para atingir a maior destruição da Amazônia nos últimos 15 anos, o equivalente a 35.193 quilômetros quadrados de área desmatada (maior que os estados de Sergipe e Alagoas).

Vejamos brevemente como os cinco jornais de maior circulação do Brasil, conforme o Instituto Verificador de Comunicação (IVC), trataram o assunto em seus sites. O Globo oferece aos seus leitores a polêmica envolvendo a nomeação de Salles: Câmara instala CPI do MST com ex-ministro de Bolsonaro na relatoria e opositor de Lula na presidência. O Estado de S.Paulo, por sua vez, coloca primeiramente declarações de Zucco e Salles com a contestação do nome do ex-ministro relatada na segunda metade do texto: CPI do MST é instaurada e Ricardo Salles, ex-ministro de Bolsonaro, é escolhido como relator. O mineiro Supernotícias evita a polêmica envolvendo o nome do relato e ainda menciona a suposta influência do governo Lula nas “invasões” dos últimos dois meses: Câmara dos deputados instala CPI para investigar ações do MST; Salles é relator.

A Folha de S.Paulo foca na vitória da oposição e da bancada ruralista na definição dos integrantes da CPI e deixa para o final da notícia a tentativa de barrar a nomeação de Salles: CPI do MST inicia sob controle ruralista e com Salles na relatoria. Já ZH evitou as polêmicas e coloca apenas uma declaração do ex-ministro prometendo fazer um trabalho técnico: Ricardo Salles será relator e Zucco assume presidência da CPI do MST.

Na reunião de instalação da CPI, a deputada Sâmia Bomfim (Psol-SP) questionou a escolha por Salles, já que o regimento interno da casa impede parlamentares de relatar matéria quando há interesses pessoais envolvidos. Ela lembrou que o deputado paulista tem entre seus financiadores de campanha usineiros e madeireiros, conhecidos inimigos dos sem-terra.

“Quando foi candidato a deputado federal em 2018, Salles fez campanha baseada na criminalização do MST. Na época, ele foi investigado porque dizia abertamente que iria fuzilar os militantes do movimento”, alegou Sâmia Bonfim. Seu questionamento, no entanto, foi rejeitado pelo presidente do colegiado, o deputado Tenente Coronel Zucco (Republicanos-RS), outro fiel apoiador de Bolsonaro. A declaração da deputada do Psol, no entanto, não aparece em todos as notícias sobre o assunto.

Salles, em sua defesa, prometeu agir com o “máximo de abertura para o diálogo”. Disse ainda que “espera poder contar com a ajuda daqueles que representam uma visão favorável aos movimentos e à reforma agrária”. Difícil acreditar conhecendo a biografia do deputado.

Apesar das críticas, o relator da CPI sabe que poderá contar com pelo menos um importante aliado: a imprensa hegemônica brasileira. A mídia nacional trabalha há anos para desqualificar e criminalizar o MST. O relator, com certeza, tentará fornecer material para abastecer os veículos de comunicação.

Alexandre Conceição, uma das lideranças dos sem-terra em Pernambuco, observa que o tratamento noticioso sobre o movimento é sempre no sentido de difamar, mesmo que a notícia seja verdadeira. Ele usa um exemplo comum, como a derrubada de uma cerca pelo MST. “Não se diz que aquela cerca que foi quebrada existe um latifúndio improdutivo, existe toda uma história por trás. A relação é muito de dizer, de tentar dizer a meia verdade, escondendo a verdade dos fatos” (MELO, 2008, p.67).

Os motivos que levam a grande imprensa a agir assim são muitos, vão desde ideológicos, como ser contra a reforma agrária, a econômicos, pela parceria com os grandes conglomerados rurais, ou mesmo pessoais, já que muitos empresários da mídia são eles próprios proprietários de latifúndios.

Outra liderança do movimento, Jaime Amorim, acrescenta que a imprensa busca construir uma imagem ligada à violência. Ele lembra da cobertura jornalística do assassinato de dois integrantes do MST, em 2004, em Passira (Pernambuco). “Antes do fazer o sepultamento, acabaram reocupando a sede da fazenda, a imprensa toda lá, aí no outro dia compararam o assassinato dos dois com uma das vacas que os trabalhadores mataram na sede da fazenda. (…)A manchete era ‘Trabalhadores revoltados mataram uma vaca que estava para ter neném’ e mostraram a forma como os trabalhadores carnearam a vaca.” (MELO, 2008, p.152).

Hanna Ayoub alerta, ao analisar conteúdo editorial do jornal Folha de S.Paulo, que “o MST tem sido vítima de manipulação por parte da imprensa, que tem feito isso rotineiramente ao longo dos últimos vinte anos. E tem feito com conhecimento de causa, com objetivos claros de defesa da classe dominante, da qual os proprietários dos meios de comunicação fazem parte. Com base nos seus próprios interesses de classe, a grande imprensa produz um processo de manipulação que resulta na construção de uma ‘realidade’ artificial” (2006, p.92)

E quando é impossível encontrar um enfoque negativo, a orientação é ignorar. Durante a pandemia da Covid-19, por exemplo, os sem-terra promoveram pelo país diversas doações de alimentos para ajudar quem ficou sem renda durante os períodos de maior disseminação da doença. O gesto, no entanto, foi ignorado pelos principais veículos de comunicação. Para a imprensa só existe um MST, o das “invasões” e da “destruição”. E nunca o da produção de orgânicos, o da agricultura familiar, o da lavoura sem pesticida e da solidariedade.

*Jornalista, servidor público, mestrando em Comunicação e Informação pela UFRGS e integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Meio ambiente

Referências

AYOUB, Ayoub Hanna. Mídia e Movimentos Sociais: a satanização do MST na Folha de S. Paulo. 2006. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) — Universidade Estadual de Londrina, Londrina, PR, 2006.

MELO, Paula Reis. Tensões entre Fonte e Campo Jornalístico: um estudo sobre o agendamento mediático do MST. 2008. Tese (Doutorado) – Ciências da Comunicação, Unisinos, São Leopoldo/RS, 2008.

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