Imprensa precisa desideologizar a cobertura do MST  

Imagem: Acervo MST

Por Sérgio Pereira*

No final de janeiro, o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra completou 40 anos de luta pela reforma agrária no Brasil. Para marcar a data, a entidade lançou a “Carta Compromisso do MST com a Luta e o Povo Brasileiro”, um documento que reafirma o seu compromisso “com o povo brasileiro e com a construção de uma nação mais justa e igualitária através da luta e da construção da Reforma Agrária Popular”.

A imprensa hegemônica brasileira, até o momento, praticamente ignorou o aniversário de 40 anos da organização, que para o linguista, filósofo e sociólogo norte-americano Noam Chomsky, “é o movimento popular mais importante e estimulante do mundo”, conforme seu o discurso de 2003 no Fórum Social Mundial realizado em Porto Alegre. Sua capacidade de mobilização, sua organização e a quantidade de filiados (mais de 400 mil famílias) comprovam isso.

O movimento também é conhecido por ser o maior produtor de arroz orgânico da América Latina e por ter aberto diversos estabelecimentos comerciais com produtos sem pesticida em várias cidades do país, além de manter um serviço de vendas on-line.

O MST também recebeu alguns pequenos espaços na mídia alternativa, recentemente, por suas ações sociais em desastres naturais causados pelas mudanças climáticas, como as enchentes no Rio Grande do Sul ou suas doações para a população da Faixa de Gaza.

O jornal O Estado de S.Paulo fez uma única referência à data em uma notícia da editoria de Política, postada em 27/01/24, com o título “Ministros de Lula enaltecem MST em evento de 40 anos do movimento e saem aplaudidos”. O texto cobre evento com a participação de quatro ministros do governo federal, restringindo-se a relatar declarações de autoridades. Outros veículos impressos, como O Globo e Zero Hora, no entanto, ignoraram totalmente.

Exceção foi a Folha de S.Paulo, que produziu o especial “MST, 40 anos” em seu site. O jornal postou no final de janeiro oito textos lembrando “a trajetória, os conflitos e as mudanças em quatro décadas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra”:

Apenas analisando os títulos acima já é possível verificar uma tendência. A utilização de alguns termos nos títulos denota o enfoque negativo: “irrisória”, “sob cerco”, “critica”, “desilusão”, “ruptura nebulosa”, “mais distante” e “frustrado”.

A palavra “invasões”, por exemplo, é citada em quatro dos oito títulos. O MST repudia esse termo e defende o uso de “ocupações”, expressão cujo significado legal se enquadra com fidelidade às ações do movimento.

Não se trata aqui de mera discussão semântica. O que se deve lembrar é que há diferenças entre “invadir” e “ocupar”, com suas implicações no mundo do direito. Carol Proner, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e do Grupo Prerrogativas, explica que ocupação não é o mesmo que invasão. A Constituição Federal de 1988 define o conceito de uso social da terra e os critérios para que seja legítimo, que não degrade o meio ambiente, que não se faça por meio de trabalho escravo ou análogo e que seja produtiva.

Carol Proner acrescenta: “A ocupação de terras tem sido historicamente a forma pela qual os movimentos camponeses chamam a atenção para este compromisso de direitos fundamentais e da necessidade de que a propriedade venha acompanhada de uma função social. Confundir os dois conceitos propositalmente é uma forma de negar a luta pela terra e os legítimos sujeitos de direito, assim reconhecidos pela Declaração da ONU sobre Direitos dos Camponeses”. (Brasil 247, 2023)

A Folha, como vários jornais brasileiros, prefere ignorar a doutrina jurídica para, em clara manifestação ideológica, criminalizar o movimento camponês. Por sinal, nestas quatro décadas, o MST teve sua imagem emoldurada na imprensa como uma organização envolvida em “invasões”, “conflitos”, “destruição” e “mortes”, mesmo que as vítimas sejam em sua imensa maioria do próprio MST.

O texto intitulado “Arroz orgânico do MST tem produção quase irrisória, mas virou marca simbólica”, por sua vez, busca minimizar a importância do movimento após a grande repercussão da entrevista, em agosto de 2022, do então candidato à presidência Luiz Inácio Lula da Silva para o Jornal Nacional.

Naquela ocasião, o MST foi parar no Trending Topics, após Lula afirmar que o movimento era “o maior produtor de arroz orgânico do Brasil”. A declaração levou a milhares de manifestações nas redes sociais, algumas elogiando a fala de Lula e outras, ligadas à extrema direita, colocando em dúvida a informação. Com o texto da Folha, fica a comprovação de que a fala do atual presidente não apenas tinha procedência, como estava alicerçada em dados. O MST, por sinal, é o maior produtor de arroz orgânico do Brasil e da América Latina, conforme admite o jornal.

A Folha, porém, ignora que a produção de orgânicos ainda está em desenvolvimento – e não apenas no Brasil. Os números mostram que a produção e o consumo de orgânicos crescem em todos os continentes. Mas trata-se de um mercado que ainda está se construindo, enfrentando burocracias, insumos com preços elevados e a falta de apoio institucional, entre outras questões.

A imprensa hegemônica brasileira, que se diz imparcial, precisa desideologizar sua cobertura do MST. A entidade precisa virar pauta seguindo os princípios de noticiabilidade, que são citados nos diversos manuais de redação. Seriam mais isentos os jornais se olhassem para o movimento camponês da mesma forma que veem as organizações patronais. Mas, para isso, precisam assumir definitivamente a ideia da imparcialidade. E não apenas quando lhes interessa.

*Jornalista, servidor público, mestre em Comunicação pela UFRGS e integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (UFRGS/CNPq). E-mail: sergiorobepereira@gmail.com.

Referências

PRONER, Carol.Ocupação não é invasão. Brasil 247, São Paulo, 02 de mai. de 2023. Disponível em: https://www.brasil247.com/blog/ocupacao-nao-e-invasao?amp. Acesso em: 5 fev. 2024.

OLEGÁRIO, Polianna Teixeira; ZIEMANN, Marcos Afonso Lopes. Apontamentos Teóricos Sobre o Processo de Reforma Agrária no Brasil a partir da Observação em Campo no Assentamento Che Guevara. In: ANDRÉ, O. et al. Globalização, Regionalização e as Novas Ruralidades! [s.l: s.n.], 2017. p. 230-265. Disponível em: <https://dspace.unila.edu.br/bitstream/handle/123456789/2733/Livro%20Andre%20%26%20Silvia%20-%20Orgs%20-Agbook.pdf?sequence=1&isAllowed=y&gt;. Acesso em: 9 fev. 2024.

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