O olhar da comunicação pública no primeiro ano da enchente no Rio Grande do Sul

Série de reportagens produzida pela Agência Brasil aborda o histórico fenômeno climático sem tratar de meio ambiente

Isabelle Rieger/Sul21

Por Luciano Moraes Velleda*

A efeméride de um ano da enchente que devastou o Rio Grande do Sul em 2024 ganhou destaque na mídia nacional nos últimos dias de abril e no começo de maio. A Agência Brasil, uma agência pública de notícias vinculada a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), enviou o repórter Pedro Rafael Vilela ao estado para produzir uma série de 11 reportagens, publicadas entre os dias 27 de abril e 1º de maio. 

Ao todo, o material inclui duas entrevistas com prefeitos (o mandatário da Capital, Sebastião Melo, e o prefeito de Cruzeiro do Sul, Cesar Leandro Marmitt), duas reportagens tendo construções como personagens (o Mercado Público de Porto Alegre e um casarão/restaurante em Arroio do Meio que resistiu a enchente), uma entrevista com o secretário da Casa Civil do governo federal para o apoio à reconstrução do RS, Maneco Hassen, além de outra reportagem dando conta dos embates políticos entre a União e o governador Eduardo Leite devido a demora para o início dos projetos de proteção contra cheias nas cidades da região metropolitana – o governo federal disponibilizou R$ 6,5 bilhões para essa finalidade, mas nenhum centavo foi usado até agora, sendo que cabe ao governo estadual elaborar e executar os projetos. 

A série de reportagens ainda inclui uma breve análise da situação do RS um ano depois, entre o caos da tragédia e o esforço de recuperação, assim como quatro matérias focadas no problema de moradia das milhares de pessoas que perderam suas casas e ainda lutam para ter uma nova residência. 

Embora trate de uma tragédia climática, as reportagens não abordam os muitos aspectos ambientais do RS que emergiram junto com as águas no último ano. Sem essa importante contextualização, as matérias focam em dados objetivos da reconstrução do estado, como investimentos em obras para recuperação da infraestrutura, incluindo os sistemas de proteção contra cheias e, principalmente, os números dos programas habitacionais que tentam dar conta de atender milhares de pessoas que perderam suas casas. Embora divulgue bons dados do cenário atual da reconstrução, no conjunto, a série peca pela ausência de visão ambiental da tragédia.

As duas entrevistas com os prefeitos chamam a atenção. No caso do prefeito de Porto Alegre, a reportagem não aborda nenhuma das questões polêmicas que envolvem as responsabilidades da Prefeitura na dimensão da tragédia. O caminho escolhido pelo repórter foi dar voz ao prefeito para tratar da reconstrução dos diques e comportas que compõem o sistema de proteção da Capital, assim como os entraves no avanço dos  projetos de moradia. 

O prefeito da Capital também diz que as causas do alagamento não foram as casas de bombas que não funcionaram – cuja manutenção é sua responsabilidade –, preferindo enfatizar que o problema da enchente na cidade foi a falha de proteção dos diques, construídos há muitas décadas, compondo um discurso que o isenta de responsabilidade – ainda que a manutenção dos diques e comportas também esteja sob a alçada do governo municipal. Apesar de haver informações de especialistas que contestam a análise do prefeito, a entrevista não o questiona nesse sentido.

A ausência de uma postura mais incisiva do repórter tem sido uma característica da Agência Brasil, que não costuma confrontar de modo mais veemente suas fontes. Embora, ressalte-se, não há nada que estabeleça que uma agência pública deve ser menos contestadora.

Bem diferente é a entrevista com o prefeito de Cruzeiro do Sul, Cesar Leandro Marmitt. Sincero, ele conta não ter recurso para contratar um terceiro engenheiro para trabalhar nos projetos de moradia que irão reassentar centenas de famílias que perderam suas casas, diz não ter sequer um ginásio para ser um ponto de referência num plano de contingência e afirma não ter dúvidas de que a sua cidade e outras do Vale do Taquari, não têm condições de enfrentar novamente um cenário parecido com o de 2024. “Com todas as palavras, eu vou dizer, nós não estamos preparados para enfrentar uma nova cheia deste porte. Não estamos preparados mesmo”, disse. 

A franqueza do prefeito de Cruzeiro do Sul dá a dimensão da dificuldade e dos desafios das cidades gaúchas para se recuperarem da tragédia e se prepararem para não sofrer algo semelhante novamente no futuro. Essa possível abordagem, todavia, não é tratada nas reportagens.

O aspecto mais humano da série está nas matérias cujo enfoque é a situação de moradia das vítimas da enchente. Mesclando dados dos projetos e programas habitacionais com histórias de vida, as reportagens mostram a ausência do lar como um dos aspectos mais dramáticos da trágica enchente. Ao todo, a série da Agência Brasil traça uma breve síntese da atual situação habitacional das vítimas da maior chuva já registrada no RS, ao mesmo tempo em que passa ao largo das muitas e importantes questões ambientais que afligem o território gaúcho.

*jornalista, sócio do Sul21, integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental.

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