O Pampa, o jornalismo gaúcho e o juiz Wakefield 

Pampa do RS perde vegetação nativa – Foto: Diego Pereira/Divulgação Sema 

Por Sérgio Pereira*

Em “Traffic” (2000), filme do laureado diretor Steven Soderbergh, o ministro da Suprema Corte Robert Wakefield (interpretado por Michael Douglas) ganha notoriedade por seu incansável combate às drogas. Essa fama o leva a assumir o cargo de chefe do departamento de combate ao tráfico dos EUA. O magistrado vive entre viagens, palestras e reuniões, todas envolvendo o foco de sua luta moral. Na sua visão, o tráfico de narcóticos está corroendo as entranhas do país e é preciso agir. Um dia, no entanto, tudo muda na sua vida quando, para seu espanto, descobre que sua única filha, a adolescente Caroline (papel de Erika Christensen), era uma dependente química. Ele então decide se retirar da vida pública para priorizar a reabilitação da filha, que acredita ter negligenciado enquanto se dedicava à causa antidrogas. 

Wakefield é mais do que um personagem, é um símbolo da visão equivocada que por vezes nos absorve e nos faz lançar o olhar para aquilo que está distante, desprezando o que está bem abaixo dos nossos olhos. 

Saindo agora da ficção, podemos refletir que equívoco idêntico ao do ministro Wakefield pode ser observado em grande parte da imprensa. Por exemplo, quando veículos regionais dão espaço para noticiar ações de facções que agem longe de sua área de abrangência, como o Primeiro Comando da Capital (PCC) ou o Comando Vermelho (CV), sem se preocupar com o crime organizado em seus estados. Ou quando repercutem toda e qualquer declaração polêmica do alto comando de Brasília, mas desprezam falas controversas de importantes políticos locais. 

E também é o que acontece em geral com o jornalismo gaúcho quando o assunto envolve o Bioma Pampa. Destruição na Amazônia, queimadas no Pantanal, tragédias ambientais mundo afora, por exemplo, ganham mais espaço na imprensa do RS do que a destruição ambiental que acontece de forma gradativa na metade sul do Estado. 

Na semana passada, por exemplo, o Mapbiomas divulgou novo relatório sobre o bioma sulino. Conforme o estudo, o Pampa hoje é o segundo bioma brasileiro com o menor percentual de cobertura de vegetação nativa (fica atrás apenas da Mata Atlântica). A rede global e multi-institucional, formada por universidades, ONGs e empresas de tecnologia, revela ainda que, no ano passado, “45,6% do Pampa estavam ocupados por algum tipo de uso antrópico, com predomínio do uso agrícola (agricultura e mosaico de usos: 41%) e da silvicultura (4%), além de outros, como áreas urbanas e mineração”. 

O Mapbiomas também denuncia que o Pampa, de 1985 a 2024, registrou a maior perda proporcional de vegetação nativa nos últimos 40 anos dentre todos os biomas brasileiros. Um dos principais motivos para essa redução é o crescimento voraz do plantio da soja. Conforme a análise técnica, entre 1985 e 2024, “a área plantada com essa oleaginosa passou de 827 mil hectares para 3,2 milhões de hectares – um aumento de 385%”. 

Apesar da gravidade dos dados revelados, a imprensa gaúcha, que invariavelmente se orgulha de valorizar a cobertura local, praticamente ignorou o alerta. Nas edições impressas, os tradicionais Zero Hora, Correio do Povo e Jornal do Comércio nada trouxeram. Uma rara exceção foi uma nota de 1,2 mil caracteres, sem assinatura, na plataforma digital GZH, com o título “Áreas ocupadas por atividades humanas ultrapassam a cobertura de vegetação nativa do Pampa”. O texto pinça dados do texto divulgado pelo Mapbiomas, sem contextualizar, sem repercutir o fato com autoridades fiscalizadoras, grupos ambientais ou até mesmo com os representantes do setor do agronegócio ou da soja especificamente.  

Ao contrário dos veículos gaúchos, no entanto, os sites da revista Veja, da CNN Brasil e do Brasil de Fato souberam valorizar a notícia. O texto da Veja, por sinal, assinado pelo jornalista Ernesto Neves, abre no melhor estilo, alertando que o Bioma Pampa “vive uma erosão silenciosa”. E é esse silêncio que está contribuindo para a destruição do bioma sulino.  

*Jornalista, servidor público, doutorando em Comunicação e Informação pela UFRGS e integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS).

Deixe um comentário