Um certo jornalismo e a cidade como “cenário de oportunidades”

Imagem: Instituto De Planejamento Urbano De Florianópolis (IPUF)

Por Míriam Santini de Abreu*

“Nas cidades, as fórmulas urbanísticas disseminadas pelo neoliberalismo a transformaram em um grande negócio: privatizações, desregulamentações, cidade empreendedora, competição entre cidades. (…) A cidade pode ser vista então como palco das relações sociais ou palco dos negócios, mas ela pode ser vista como o próprio negócio ou mercadoria. Há uma diferença entre ser suporte, palco onde as coisas acontecem, ou objeto central do processo de acumulação.” — Ermínia Maricato, arquiteta e urbanista, professora titular aposentada da USP¹

Se a disputa pelo espaço urbano e natural provoca conflitos, cabe evidenciar, na cobertura jornalística, se estão visibilizados os diferentes interesses e interpretações dos sujeitos implicados nesses conflitos. Espera-se a dita “pluralidade de fontes”, mas a quantidade de pessoas ouvidas necessariamente não garante pluralidade de opiniões, mesmo em coberturas anunciadas como robustas.

O jornal Notícias do Dia, único jornal impresso diário da Grande Florianópolis, comemorou 17 anos e, em agosto, lançou o projeto Super 17 ND para dedicar o mês ao debate sobre o futuro da região. O jornal pertence ao grupo ND, parceiro da Rede Record. O projeto teve oito cadernos temáticos, quatro videocasts e uma série de quatro seminários do chamado Fórum 2050. Segundo o grupo, a produção das reportagens envolveu mais de 40 profissionais durante quatro meses. 

A partir da análise de dois cadernos, “Plano diretor, desenvolvimento da cidade e oportunidades” (15 de agosto) e “Cidades sustentáveis e o saneamento” (22 de agosto), conclui-se que a cidade de Florianópolis é tomada como um “cenário de oportunidades” – como destaca o editorial do caderno sobre o Plano Diretor – mapeadas e interpretadas por um conjunto de fontes prioritariamente oficiais, empresariais e institucionais. A experiência de viver na “Ilha da Magia” por diferentes classes sociais passa praticamente ao largo das 44 páginas dos dois cadernos analisados.

O caderno sobre o Plano Diretor, com 24 páginas, tem 17 fontes, sendo apenas 3 delas ligadas ao meio universitário e críticas ao modelo do novo Plano Diretor de Florianópolis, aprovado pela Câmara Municipal em maio passado (Lei 739/23). O conjunto de fontes oficiais, empresariais e institucionais é interrompido em três únicos momentos: uma retranca de dois parágrafos sobre um engenheiro de software que escolheu Florianópolis para morar, uma notícia que abre com declaração aleatória de sete linhas de um morador do Centro, e outra retranca, de cinco parágrafos, sobre um casal que saiu do Norte da Ilha para morar em São José, município vizinho, em um apartamento do programa Minha Casa Minha Vida, em função dos altos valores do metro quadrado na Ilha.

A retranca é parte de uma reportagem de duas páginas que tem o mérito de levantar uma situação grave, a falta de habitação social na capital catarinense, que não faz esse tipo de moradia desde 2019 e, nos últimos 16 anos, construiu apenas 424 casas populares, número muito abaixo da média estimada pelo Ministério das Cidades. Mas o texto não desenvolve como tal situação aflige milhares de famílias em Florianópolis e no município vizinho, ambos na lista do metro quadrado mais caro do país.

Duas páginas do caderno são de conteúdo patrocinado, informado em tímida linha de pé de página, com comercial casado na página vizinha. Outras duas páginas, com duas fontes ligadas à construção civil, tratam cansativamente de novas tecnologias de materiais ligadas ao setor.

O caderno sobre saneamento, com 20 páginas, é ainda mais magro de fontes: apenas oito, sendo apenas uma fora do rol de fontes oficiais, empresariais e institucionais. Trata-se de uma moradora de São José que trabalha em Florianópolis e leva cerca de uma hora e meia do trabalho para casa, realidade esgotada em oito linhas. A frase que finaliza o único parágrafo afirma: “O trânsito congestionado e a falta de um sistema de transporte coletivo integrado são as principais causas do tempo elevado de deslocamento casa-trabalho”. Há um mundo de experiências vividas no espaço urbano da Grande Florianópolis insinuadas no curto parágrafo, mas apagadas no caderno. Como no do Plano Diretor, o caderno sobre saneamento também dedica uma página a conteúdo patrocinado com comercial casado.

O fato de a cobertura apostar mais em fontes protocolares, que deixam os textos sem a marca da rua, do vivido, impede o melhor aproveitamento de ganchos importantes, como o da reportagem intitulada “Mais de 40% da população de Florianópolis não tem acesso à rede de esgoto”. Parte expressiva dela parece alimentada por releases da Casan (Companhia Catarinense de Águas e Saneamento) e da Prefeitura.

Os dois cadernos, em especial o do Plano Diretor, tangenciam as críticas dos movimentos populares à lei aprovada em maio que revisou o Plano Diretor de Florianópolis. Na ocasião, foi ignorada, na votação e na mídia local, um Substitutivo Global dos movimentos que identificou 26 inconstitucionalidades, entre outras infrações, presentes no anteprojeto da Prefeitura.

O editorial do caderno sobre saneamento, no título, afirma que “Saneamento é o ponto-chave para uma cidade mais humana”, e que “a única forma de fazer isso é cuidando das pessoas”. Difícil é saber, no jornalismo do Grupo ND, onde param os cuidados e começam as oportunidades.

¹Palestra de abertura da 10° edição do Ciclo de Palestras “Quintas Urbanas” promovido pelo Núcleo de Análises Urbanas do Instituto de Ciências Humanas e da Informação da FURG. Disponível em: file:///C:/Users/2274/Downloads/5518-Texto%20do%20artigo-15608-1-10-20151203.pdf.

*Jornalista, doutora em Jornalismo, mestre em Geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e especialista em Educação e Meio Ambiente.  

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