A água nas torneiras, o peixe que alimenta, o rio que é parente

Gustavo Lima/Arquivo Pessoal/Observatório de Jornalismo Ambiental

Por Patrícia Kolling*

Uma matéria publicada na Folha de S. Paulo relata que os níveis dos reservatórios de água em São Paulo estão abaixo dos registrados na crise hídrica de 2015. O texto traz dezenas de números para mostrar que o quadro é mais grave do que há 10 anos, quando a região viveu a maior crise hídrica de sua história. Os níveis dos mananciais estão caindo desde 2023 e a previsão é de que o mês de agosto será mais seco que o normal. O texto informa que “as chuvas só devem voltar com força suficiente para recuperar os reservatórios no fim de setembro, quando iniciar a primavera, a tendência é que o nível atual continue a baixar diariamente”.

Apesar das empresas responsáveis pelo abastecimento da região metropolitana de São Paulo dizerem não acreditar em uma nova crise hídrica, devido aos investimentos em infraestrutura de abastecimento, a situação exige preocupação, pois especialistas alertam que os últimos anos têm sido muito secos, e que entre as causas estão as mudanças climáticas e o desmatamento.

Quando se fala em desmatamento, é preciso dizer que ele acontece bem longe de São Paulo e apesar das áreas desmatadas na Amazônia terem diminuído, os números de desmatamento no Cerrado continuam a crescer. São as raízes profundas das plantas do Cerrado que abastecem os lençóis freáticos. É na região do Cerrado que estão oito das doze bacias hidrográficas do país. “Estudo do Instituto Cerrados, em parceria com o ISPN [Instituto Sociedade, População e Natureza], aponta que 88% de 81 bacias hidrográficas do bioma já tiveram redução de vazão causada pelo desmatamento entre 1985 e 2022.”

Enquanto em São Paulo a água pode faltar novamente nas torneiras e chuveiros, a série Exlcuídos do Clima, da Folha de S. Paulo mostra que para algumas populações o problema é ainda maior. A reportagem apresenta a situação do Quilombo Águas do Miranda, em Bonito (MS), localizado às margens do rio que dá nome à comunidade.  Para as famílias, a água do rio é fonte de renda, com a prática do turismo e da pesca artesanal. Com as secas constantes e as queimadas dos últimos anos, o nível das águas dos rios diminuiu e, consequentemente, a redução na quantidade de oxigênio na água levou à mortandade de peixes. Famílias que viviam da pesca e do turismo tiveram que buscar outras fontes de renda. “Aí você vai no rio para pegar um peixe para comer, você não pega, porque não tem. Quem sabe se virar, se vira de qualquer maneira”, reflete um morador da comunidade. Apesar das dificuldades, os moradores não desejam sair do quilombo, pois ali formam uma comunidade em que todos se ajudam.  Apesar do repórter manifestar uma preocupação com a perda dos costumes culturais da comunidade, ele não explora no texto aspectos relacionais e culturais da comunidade entre si e com o rio.

Mais ao norte do país, na Terra Indígena Xipaya, do Povo Indígena Xipai, passa o rio Iriri, que é o maior de Altarmira, sudoeste do Pará. “É como parte da família. O Rio sempre foi Rio, e Xipai sempre foi Xipai. São corpos diferentes entrelaçados como um só”, escreve Wajã Xipai, no portal Sumaúma. Para falar sobre o rio, a repórter indígena foi conversar com quem muito o conhece, os anciões da aldeia.  E, como ela diz, mergulhou nele até se afundar, ou seja, se aprofundou na temática “para que quem falasse fosse o próprio Iriri”.  Ela conta que o dia a dia dos Xipai gira em torno do rio. “As famílias saem para pescar nos pedrais em frente ao porto da aldeia ou mais distante dali. Às vezes, passam a tarde inteira na beira do Rio. As mães lavam roupa ou se banham. As crianças, que na maioria já sabem nadar, brincam na água […]. Os homens saem para a pesca, e as mulheres esperam que eles voltem para preparar os peixes para a refeição da família. À noite, as famílias se juntam numa roda e contam histórias do que viram e viveram no Rio ou na mata”. Dos indígenas, ela ouviu sobre a morte dos peixes, a cor esverdeada do rio, a falta de chuvas e que o rio não enche mais como antes. Com especialistas, ela foi entender por que isso acontece. No ano passado, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico declarou situação crítica de escassez hídrica no Rio Xingu e no Rio Iriri, seu afluente.

Do sudeste ao norte do Brasil, esses três textos jornalísticos relatam, de formas diferentes, cenários da escassez de água no Brasil. Mostram, em números, em relatos e em histórias, como a falta de água impacta, de diferentes formas, a vida das pessoas, da fauna e da flora. São textos que estão em editorias e veículos diferentes, mas que se conectam não só pela temática da água, mas também pelo relato das pessoas. Sob a perspectiva do jornalismo ambiental, o ideal seria que esses três textos fossem base para um texto apenas, em que os leitores pudessem compreender as verdadeiras relações que existem entre água da torneira, as raízes do cerrado não desmatado, o peixe que é alimento, as crianças brincando no rio e a cosmovisão indígena que compreende o rio como parente. Porém, é preciso compreender que na maioria dos veículos de comunicação as práticas de produção não permitem a abrangência complexa das pautas, não oferecendo aos repórteres tempo e condições financeiras para a apuração. Mas, vale a reflexão, será que nós jornalistas já estamos preparados para de tirar as temáticas das caixinhas das editorias e conectá-las nas mais diferentes esferas da vida, como um rio se liga a seus afluentes e povos.  

*Patrícia Kolling, doutora em Comunicação pela UFRGS, docente no curso de Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso, Campus do Araguaia, integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). E-mail: patikolling@gmail.com

Produção de hidrogênio verde: menos discursos de persuasão e mais de precaução

Em dois meses, estaremos na metade da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP-26 (entre 1º e 12/11/2021), na Escócia. O acontecimento vai exigir dos países a apresentação de metas de redução das emissões dos gases de efeito estufa que sejam coerentes com o contexto do Antropoceno. Neste percurso, as notícias jornalísticas de meios de referência (como a Folha, o Estadão e o Valor Econômico) já persuadem leitores a respeito da produção de hidrogênio verde (H2V) com fontes renováveis (usinas eólicas e solares, mas também nucleares).


Essa persuasão, basicamente, se nutre de duas justificativas. A primeira é possibilitar a descarbonização global dos setores produtivos que mais poluem: siderurgia e mineração; indústria química; transporte aéreo e rodoviário (especialmente o de cargas pesadas); geração de eletricidade; produção de amônia e fertilizantes para agricultura. A segunda é atender às demandas de consumo dos países desenvolvidos, como Alemanha e França, entre outros europeus, e os Estados Unidos, ou seja, de importar H2V de modo a manter suas economias ativas. Os links, nas palavras em destaque neste texto, conduzem às notícias que basearam a nossa análise.


Segundo as notícias, o Ceará, através do Complexo Industrial e Portuário do Pecém, está mais avançado nos acordos com megaempresas transnacionais: a Enegix e a White Martins e, recentemente, com a EDP. Na sequência, o Rio de Janeiro tem memorando assinado com a Fortescue pelo Porto do Açu. Soubemos por outros meios, que Minas Gerais e Rio Grande do Sul também estão na disputa pela atração de investidores aos nominados hub’s de hidrogênio. Tanto os executivos como as megaempresas seguem os princípios da ESG (Environmental, Social e Corporate Governance) através das chamadas boas práticas ambientais, sociais e de governança corporativa. Contudo, não deixam claro como essas práticas vão frear a devastação da natureza e os consequentes efeitos da mudança do clima, já que a exploração capitalista vai continuar voraz sobre os territórios. Esta problematização tampouco é feita pela Folha e pelo Valor Econômico, que reportam em espaços específicos essas iniciativas no âmbito da ESG, como o hidrogênio verde, além da cobertura nas editorias convencionais. Age igualmente o jornal O Estado, que nomeou o espaço como Retomada Verde.


Se considerarmos o jornalismo como mais uma forma de conhecimento, assim como os teóricos Robert Park (1864-1944), Adelmo Genro Filho (1951-1988) e Eduardo Medistch, a reprodução das informações obtidas através das fontes oficiais não adere ao princípio do jornalismo de atendimento ao interesse público. Não por ter faltado o contraditório nas notícias, mas sim, pela restrita abordagem economicista/crematística, como se essa visão de mundo (particular) fosse universal no nosso país, um dos mais megabiodiversos (tanto em termos ecológicos como socioantropológicos). Um exemplo disso, a dramática questão da água no país reportada como “oportunidade de investimento em meio à crise hídrica e perspectiva de escassez no futuro” por O Estado.


De modo semelhante, notícia da Folha destacou o que seria uma boa prática ambiental pela Embraer através do “primeiro voo com um avião elétrico produzido pela fabricante no Brasil”. O detalhe é que o modelo Ipanema é “usado para pulverizar lavouras com pesticidas”. Até aqui, as notícias indicaram a proposta do norte global de descarbonizar os oligopólios econômicos como a licença que vai possibilitar o neoextrativismo no sul. O presidente da Siemens Energy na América Latina, Tim Holt, disse: “Todos os países [da América Latina] estão em ótima posição [para o hidrogênio verde], pela abundância de recursos renováveis, hídrico, solar e vento. Na Europa, não temos recursos naturais para produzi-lo em quantidade suficiente para todo o consumo. Então, temos a política de apoiar ativamente outros países, como Chile e Colômbia, para criar oportunidades de produção e exportação”.


Em 7 de setembro de 2020, O Estado exaltava “o potencial” e “a vocação” do Brasil para produzir hidrogênio verde enquanto explicava o processo de eletrólise da água. Que nesta semana da pátria possamos considerar tudo o que está em jogo nessa produção e na exportação do hidrogênio verde pelo Brasil. Só encontramos um texto [ainda que não jornalístico] contemplando os interesses das comunidades locais e populações dos países do nosso continente. Segundo Maximiliano PROAÑO, como a produção de H2V depende de eletricidade e água (sendo este o bem comum essencial à vida), o risco de escassez hídrica e seca nos territórios precisa ser avaliado. Além disso, alerta que utilizar água dessalinizada como alternativa à doce vai interferir na temperatura da água do mar, reduzindo o oxigênio e provocando graves danos à vida aquática. Esse é um relevante apontamento em meio à crise hídrica e energética que vivemos no Brasil, visto que há previsão de apagões no fornecimento de água e eletricidade dentro de um ano se não forem tomadas medidas adequadas.

Por tudo isso, acreditamos na prática jornalística como forma de conhecimento (produtora e reprodutora) sob princípios da ética cidadã diante dos bens comuns. No caso do H2V, cuja tecnologia está em desenvolvimento, incorporar o princípio da precaução pode fazer a diferença na interpretação sobre os fatos e os respectivos discursos. Recente artigo do nosso Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental concluiu que a “aplicação da ideia de precaução está ainda distante da discussão jornalística na academia e nas redações, apesar de todos os sinais de que estamos vivendo uma crise ambiental sem precedentes”.


*Eliege Fante é jornalista e pós-graduada pela UFRGS em Comunicação e Informação. Integra o Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS) e é associada ao Núcleo de Ecojornalistas (NEJ-RS). E-mail: gippcom@gmail.com.