Um “novo normal” também para os jornalistas

Imagem: Connor McManus/Pexels

Por Sérgio Pereira*


Os eventos climáticos têm aumentado em frequência e intensidade, como alertam os cientistas, e uma expressão passou a se popularizar a partir disso: “novo normal”. Nascida primeiramente na pandemia de Covid-19, em 2020/2021, passou a ser empregada de igual forma após os eventos extremos dos últimos anos, como as cheias de 2023 e 2024 no Rio Grande do Sul. O termo sugere a ideia de que precisamos entender que o mundo, como imaginávamos, não existe mais e que precisamos nos adaptar ao que vem pela frente.


As mudanças climáticas, antes ignoradas por uma parcela da sociedade, não estavam apenas batendo na nossa porta como também derrubando e carregando-a junto na correnteza. Até o presidente da Farsul, entidade conservadora ligada ao agronegócio, admitiu em entrevista ao Jornal do Comércio em março deste ano que “era” e que havia deixado de ser “negacionista sobre as mudanças climáticas”, o que provocou certa surpresa em alguns setores.


Poucos dias após essa declaração, Porto Alegre se viu novamente diante de um evento climático. Um temporal com ventos de 111 quilômetros por hora (medição superada apenas pelos 120 km/h registrados em 1º/10/2017 na capital) e chuvas intensas causaram destruição e novamente alagou parte da cidade. A população se viu mais uma vez em meio ao caos e tudo isso em menos de um ano após a grande enchente de 2024.


Se a sociedade precisa pensar em uma outra realidade, com novos desafios, precisamos igualmente refletir sobre um novo fazer jornalístico, com mais conhecimento científico e planejamento. Fritjof Capra, em 1982, já defendia que os jornalistas precisavam mudar e o “seu modo de pensar, fragmentário, deverá tornar-se holístico, desenvolvendo uma nova ética profissional baseada na consciência social e ecológica”. Outras rotinas se impõem ao trabalho dos profissionais de imprensa agora e devemos nos preparar para esse “novo normal”. Abaixo, deixo algumas propostas para reflexão com os colegas. São sugestões simples para enfrentarmos os tempos que estão por vir e, assim, não corrermos o risco de no futuro sermos arrastados pelos ventos da incerteza.


A prevenção precisa estar na pauta: conforme Alende Castro (2016), o jornalismo de prevenção “propõe a necessidade de vislumbrar os problemas, identificá-los, investigá-los e explicá-los ao público em vez de esperar que aconteçam para depois denunciá-los” (tradução nossa). O jornalista deve conhecer a realidade da sua região de cobertura e os seus perigos. Deve mapear os riscos e estar atento às crises em potencial. Por exemplo, se na sua cidade há chance de ocorrer desmoronamentos, é preciso pautar o assunto com frequência, alertar a população e cobrar providências das autoridades.

Uma pauta obrigatória, após as enchentes de setembro e novembro de 2023 no Rio Grande do Sul, proporia uma detalhada radiografia sobre os sistemas de proteção contra as águas do Rio Guaíba, em Porto Alegre. Isso poderia ter levantado questões importantes e, quem sabe, evitado algumas das consequências da cheia de abril/maio do ano seguinte. Esse mapeamento deve envolver todos os tipos de risco, não apenas os climáticos (secas, cheias, tornados, tempestades, terremotos, tsunamis…), mas também aqueles potencialmente provocados pela ação humana, especialmente a de escala predatória (mineração, indústrias de produtos tóxicos, barragens, usinas de energia, incêndios…). Essa sugestão vai ao encontro do Princípio da Precaução, que é um dos pressupostos do Jornalismo Ambiental.

Palavra certa no momento certo: as redações devem se familiarizar e padronizar o uso de determinadas expressões, observando o correto sentido e a devida definição de cada termo. Overbeck e Pillar, por exemplo, alertam para o uso incorreto de “desmatamento” para se referir a qualquer tipo de vegetação suprimida, quando o uso correto é apenas em áreas de florestas. Se recomenda aqui a criação de um dicionário específico. O “Manual para a cobertura jornalística dos desastres climáticos”, lançado recentemente pelo Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental, pode servir de ferramenta auxiliar para essa tarefa.

Contextualizar é conscientizar: cada texto envolvendo desastres ou riscos precisa ser devidamente contextualizado. Se uma encosta desaba, é importante buscar os motivos que levaram a essa crise. O jornalista deve buscar estudos científicos, referências e legislações ambientais que permitam ao consumidor de notícias compreender o que está acontecendo. Girardi e outros observam que o jornalista deve dar ênfase à contextualização na “expectativa de superar a fragmentação e a descontinuidade”, com “destaque para uma contextualização ampla, profunda e crítica (tecendo relações de causas e consequências) e a perspectiva sistêmica” (2020).

As lições da Comunicação de Risco: isso vale não apenas para os jornalistas de veículos de comunicação, já que é útil para os assessores de imprensa que trabalham em órgãos públicos, principalmente aos ligados à área de segurança e prestação de socorro. É importante que o repórter tenha algum conhecimento sobre sistema de gestão de riscos. Precisa dominar o vocabulário tanto das denominações técnicas como das populares. Há diversos cursos nesta área, como o do Centro Knight para o Jornalismo nas Américas, sobre como cobrir a crise climática e combater a desinformação. Ou do Instituto Reuters, que oferece um curso de jornalismo ambiental da Oxford Climate Journalism Network.

Sistematização na divulgação de alertas: com a adoção de avisos por parte da Defesa Civil em algumas comunidades, a imprensa passa a ter papel fundamental na multiplicação dessa informação. Importante, então, que os jornalistas discutam e planejem as formas mais rápidas e eficazes de difundir esses alarmes e deliberar sobre a necessidade de se criar formas para enfatizar os diferentes níveis de perigo (a exemplo das bandeiras verde, amarela e vermelha utilizadas pelos salva-vidas). Isso vale principalmente para as mídias eletrônicas, mas envolve também as impressas para os alertas a longo prazo.

O que fazer em situações de risco: os jornalistas expostos aos perigos precisam passar por cursos específicos para enfrentar esse tipo de situação. Há poucos dias viralizou uma imagem de uma repórter de TV do RS, em uma transmissão ao vivo, enfrentando os primeiros sinais dos fortes ventos do temporal de abril deste ano. As empresas de comunicação precisam preparar os profissionais para esse tipo de situação e observar a necessidade do fornecimento e uso de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) quando for o caso. Um bom exemplo vem da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), que oferece em seu site, gratuitamente, o curso “Segurança para jornalistas”, abordando temas como primeiros socorros e gerenciamento de conflitos, entre outros.

Seguro de vida: os jornalistas que se expõem a situações de perigo e seus dependentes precisam estar devidamente assegurados. Por isso, as empresas jornalísticas deveriam contratar apólices de seguro para os seus profissionais, para dar um mínimo de segurança aos familiares de seus trabalhadores. As entidades de classe que representam os jornalistas podem incluir nas convenções coletivas cláusulas de proteção aos seus associados para os casos de cobertura de riscos, já que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) não estabelece obrigatoriedade para esse tipo de caso.

Protocolos de reação: para as situações de risco, as redações precisam estabelecer previamente um protocolo tanto de cobertura como de segurança para seus profissionais. Da mesma forma que as empresas, a partir da década de 1980, proibiram os seus repórteres de se oferecerem na troca por reféns em casos de motim em presídios, o mesmo princípio protetor deve nortear as situações de emergências climáticas. Já para a cobertura, importante que esse protocolo tenha em mente a necessidade de que os jornalistas busquem fontes que permitam compreender o fenômeno, suas causas e consequências, além de incluir o termo “mudanças climáticas” quando de eventos extremos e de exceção, como a enchente de 2024 no Rio Grande do Sul.

Outra visão de trabalho: em dias de alerta da Defesa Civil, as empresas jornalísticas devem flexibilizar o teletrabalho para seus jornalistas que não estão cobrindo os desastres in loco. Editores, diagramadores e repórteres que podem exercer suas atividades em casa, devem ser preservados. A imprensa também deveria defender o home office para todos os ramos de atividade quando as autoridades recomendarem o chamado “fique em casa” diante da previsão de eventos climáticos severos.

Desde o seu surgimento, no século XVII, a atividade jornalística tem se aprimorado e modificado, adaptando-se principalmente às evoluções tecnológicas, aos avanços da sociedade e às exigências do mercado de trabalho. O exercício da profissão, portanto, precisa seguir no caminho da atualização agora a partir das mudanças climáticas, que estão nos impactando diretamente e com uma frequência e força cada vez mais perigosas.

Referências:


ALENDE CASTRO, Silvia. Comunicar el riesgo desde la anticipación – El periodismo de prevención em la prensa gallega: una propuesta, Anuario Electrónico de Estudios em Comunicación Social “Dissertaciones”, v. 10, nº 2, p. 20-38, 2016.


AMARAL, Márcia Franz; LOOSE, Eloísa Beling; GIRARDI, Ilza Maria Tourinho (Organizadoras). Manual para a cobertura jornalística dos desastres climáticos – 1ª ed. Santa Maria, RS: FACOS-UFSM, 2024. Disponível em: https://jornalismoemeioambiente.com/wp-content/uploads/2025/02/manual-para-a-cobertura-de-desastres-climaticos.pdf
CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação: a Ciência, a Sociedade e a Cultura Emergente. 25. ed. São Paulo: Cultrix, 1982.


GIRARDI, Ilza Maria Tourinho; LOOSE, Eloisa Beling; STEIGLEDER, Débora Gallas; BELMONTE, Roberto Villar; MASSIERER, Carine. A contribuição do princípio da precaução para a epistemologia do Jornalismo Ambiental. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde, Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, p. 279–291, 2020. Disponível em: https://www.reciis.icict.fiocruz.br/index.php/reciis/article/view/2053

OVERBECK, Gerhard Ernest e PILLAR, Valério De Patta. Forest-biased terminology does not help to include open ecosystems in conservation policies. Perspectives in Ecology and Conservation, v. 22, n. 4, p. 328–330, out. 2024.

*Sérgio Pereira é jornalista, servidor público, doutorando em Comunicação pela UFRGS e integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (UFRGS/CNPq). E-mail: sergiorobpereira@gmail.com.

Como comunicar as novas propostas de recuperação do Arroio Dilúvio?

Imagem: Simulação do passeio de caiaque / Instituto de Pesquisas Hidráulicas e Núcleo de Tecnologia Urbana da UFRGS

Por Matheus Cervo*

No dia 27 de maio de 2021, o Zero Hora publicou uma notícia sobre a proposta do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) e do Núcleo de Tecnologia Urbana (NTU) da UFRGS para revitalização do Arroio Dilúvio de Porto Alegre. A notícia é exposta pelo jornal Zero Hora como um “jornalismo de soluções”, o que é descrito como “o debate de saídas para problemas relevantes, com diferentes visões e aprofundamento dos temas (…), visando o aprofundamento da sociedade”. De início, a notícia afirma que o Dilúvio é um “símbolo dos problemas de saneamento” de Porto Alegre, já que se trata de um córrego com 17,6 quilômetros de extensão que se encontra há muitas décadas poluído.


As obras que realizaram a canalização e a retificação do arroio são um problema para a cidade até hoje, tanto em relação às questões ambientais referentes às águas urbanas quanto em relação à impossibilidade de aproximação e uso do arroio devido à estrutura urbanística criada. Não é trivial que esse projeto tenha surgido e que esteja sendo noticiado em 2021 – afinal, as obras de revitalização da orla do Guaíba seguem o seu curso após as polêmicas causadas, e o Dilúvio deságua justamente em uma parte do trecho três da reforma urbanística. Desde o ano passado, existem equipes que estão realizando um projeto de limpeza e revitalização em uma parte do arroio de aproximadamente dois quilômetros.


Neste ano, idealiza-se uma intervenção em um trecho pequeno que fica no cruzamento da avenida Ipiranga e da avenida Cristiano Fischer – o que também não é trivial, posto que essa localização está próxima do complexo institucional da PUCRS. Um dos proponentes deste projeto é Fernando Dornelles, professor adjunto do IPH. O pesquisador docente expôs ao Zero Hora que esse projeto vislumbra uma paisagem urbana que tenha exposições de arte, espaços para apresentações, cafeterias flutuantes, aluguel de caiaque e outras formas de revitalização. Contudo, expôs também que esse seria um projeto urbanístico piloto que poderia limpar apenas uma pequena parte do Arroio Dilúvio, já que a complexidade da limpeza total desse curso d’água envolve questões muito mais complexas como a resolução dos problemas de saneamento básico da população – um problema clássico em Porto Alegre.


Como não se cogita um projeto mais complexo que realizaria de fato a despoluição do dilúvio, o Zero Hora relata que os pesquisadores estão avaliando a construção de uma galeria nas laterais para desviar parte do fluxo d’água que “não seria possível tratar”. Almeja-se instalar ecobarreiras e wetlands em várias partes do curso do arroio, mas a finalidade principal é revitalizar esse trecho que fica próximo à PUCRS para que as águas sejam desfrutadas por moradores urbanos que possuem um estilo de vida muito específico. O próprio jornal escreve alguns pequenos parágrafos sobre a duração desse problema ambiental na nossa cidade, mostrando como outras gestões municipais tentaram realizar projetos mais complexos do que esse.


Em 2012, professores da UFRGS e da PUCRS lançaram um plano de ação que listava 171 ações consideradas necessárias para realmente recuperar a bacia e despoluir toda água. Entre essas inúmeras ações, o próprio Zero Hora destaca que essa equipe propusera a criação de políticas públicas para saneamento básico, regularização fundiária, educação ambiental, trânsito (entre outras) para que fosse possível uma real recuperação do Arroio Dilúvio. Importante lembrar também que, poucos anos antes dessa proposta, foram feitas pesquisas antropológicas na UFRGS acerca da memória desse curso d’água relacionado aos problemas socioambientais de Porto Alegre, o que culminou no documentário chamado Habitantes do Arroio.


Essas informações são fundamentais para realizar uma genealogia deste conflito na nossa cidade e para recuperar a memória dos espaços urbanos, já que um arroio de 17,6 quilômetros de extensão é um espaço muito grande para ser reduzido à uma área urbana de classe média/alta como as redondezas da PUCRS. Por isso, acredita-se que o Zero Hora poderia ser mais crítica e propor um “jornalismo de soluções” que esteja unido aos princípios básicos do jornalismo ambiental desenvolvido pela UFRGS. Afinal, uma das bases desse tipo de jornalismo é o pensamento crítico e sistêmico, o que pode envolver a recuperação da memória de certos conflitos socioambientais para que seja possível propor soluções que realmente aprofundem os problemas citadinos que temos. Falta uma cobertura jornalística por parte de Zero Hora que tenha uma pluralidade de vozes maiores.

* Cientista Social com ênfase em antropologia e atual mestrando do programa de Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) com bolsa Capes.