A água nas torneiras, o peixe que alimenta, o rio que é parente

Gustavo Lima/Arquivo Pessoal/Observatório de Jornalismo Ambiental

Por Patrícia Kolling*

Uma matéria publicada na Folha de S. Paulo relata que os níveis dos reservatórios de água em São Paulo estão abaixo dos registrados na crise hídrica de 2015. O texto traz dezenas de números para mostrar que o quadro é mais grave do que há 10 anos, quando a região viveu a maior crise hídrica de sua história. Os níveis dos mananciais estão caindo desde 2023 e a previsão é de que o mês de agosto será mais seco que o normal. O texto informa que “as chuvas só devem voltar com força suficiente para recuperar os reservatórios no fim de setembro, quando iniciar a primavera, a tendência é que o nível atual continue a baixar diariamente”.

Apesar das empresas responsáveis pelo abastecimento da região metropolitana de São Paulo dizerem não acreditar em uma nova crise hídrica, devido aos investimentos em infraestrutura de abastecimento, a situação exige preocupação, pois especialistas alertam que os últimos anos têm sido muito secos, e que entre as causas estão as mudanças climáticas e o desmatamento.

Quando se fala em desmatamento, é preciso dizer que ele acontece bem longe de São Paulo e apesar das áreas desmatadas na Amazônia terem diminuído, os números de desmatamento no Cerrado continuam a crescer. São as raízes profundas das plantas do Cerrado que abastecem os lençóis freáticos. É na região do Cerrado que estão oito das doze bacias hidrográficas do país. “Estudo do Instituto Cerrados, em parceria com o ISPN [Instituto Sociedade, População e Natureza], aponta que 88% de 81 bacias hidrográficas do bioma já tiveram redução de vazão causada pelo desmatamento entre 1985 e 2022.”

Enquanto em São Paulo a água pode faltar novamente nas torneiras e chuveiros, a série Exlcuídos do Clima, da Folha de S. Paulo mostra que para algumas populações o problema é ainda maior. A reportagem apresenta a situação do Quilombo Águas do Miranda, em Bonito (MS), localizado às margens do rio que dá nome à comunidade.  Para as famílias, a água do rio é fonte de renda, com a prática do turismo e da pesca artesanal. Com as secas constantes e as queimadas dos últimos anos, o nível das águas dos rios diminuiu e, consequentemente, a redução na quantidade de oxigênio na água levou à mortandade de peixes. Famílias que viviam da pesca e do turismo tiveram que buscar outras fontes de renda. “Aí você vai no rio para pegar um peixe para comer, você não pega, porque não tem. Quem sabe se virar, se vira de qualquer maneira”, reflete um morador da comunidade. Apesar das dificuldades, os moradores não desejam sair do quilombo, pois ali formam uma comunidade em que todos se ajudam.  Apesar do repórter manifestar uma preocupação com a perda dos costumes culturais da comunidade, ele não explora no texto aspectos relacionais e culturais da comunidade entre si e com o rio.

Mais ao norte do país, na Terra Indígena Xipaya, do Povo Indígena Xipai, passa o rio Iriri, que é o maior de Altarmira, sudoeste do Pará. “É como parte da família. O Rio sempre foi Rio, e Xipai sempre foi Xipai. São corpos diferentes entrelaçados como um só”, escreve Wajã Xipai, no portal Sumaúma. Para falar sobre o rio, a repórter indígena foi conversar com quem muito o conhece, os anciões da aldeia.  E, como ela diz, mergulhou nele até se afundar, ou seja, se aprofundou na temática “para que quem falasse fosse o próprio Iriri”.  Ela conta que o dia a dia dos Xipai gira em torno do rio. “As famílias saem para pescar nos pedrais em frente ao porto da aldeia ou mais distante dali. Às vezes, passam a tarde inteira na beira do Rio. As mães lavam roupa ou se banham. As crianças, que na maioria já sabem nadar, brincam na água […]. Os homens saem para a pesca, e as mulheres esperam que eles voltem para preparar os peixes para a refeição da família. À noite, as famílias se juntam numa roda e contam histórias do que viram e viveram no Rio ou na mata”. Dos indígenas, ela ouviu sobre a morte dos peixes, a cor esverdeada do rio, a falta de chuvas e que o rio não enche mais como antes. Com especialistas, ela foi entender por que isso acontece. No ano passado, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico declarou situação crítica de escassez hídrica no Rio Xingu e no Rio Iriri, seu afluente.

Do sudeste ao norte do Brasil, esses três textos jornalísticos relatam, de formas diferentes, cenários da escassez de água no Brasil. Mostram, em números, em relatos e em histórias, como a falta de água impacta, de diferentes formas, a vida das pessoas, da fauna e da flora. São textos que estão em editorias e veículos diferentes, mas que se conectam não só pela temática da água, mas também pelo relato das pessoas. Sob a perspectiva do jornalismo ambiental, o ideal seria que esses três textos fossem base para um texto apenas, em que os leitores pudessem compreender as verdadeiras relações que existem entre água da torneira, as raízes do cerrado não desmatado, o peixe que é alimento, as crianças brincando no rio e a cosmovisão indígena que compreende o rio como parente. Porém, é preciso compreender que na maioria dos veículos de comunicação as práticas de produção não permitem a abrangência complexa das pautas, não oferecendo aos repórteres tempo e condições financeiras para a apuração. Mas, vale a reflexão, será que nós jornalistas já estamos preparados para de tirar as temáticas das caixinhas das editorias e conectá-las nas mais diferentes esferas da vida, como um rio se liga a seus afluentes e povos.  

*Patrícia Kolling, doutora em Comunicação pela UFRGS, docente no curso de Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso, Campus do Araguaia, integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). E-mail: patikolling@gmail.com

A ponte informacional e o jornalismo independente na resistência do povo Guarani-Kaiowá

Imagem: Pedro Alves/Solidariedade Guarani-Kaiowá

Por Leda Evangelista* e Cláudia Herte de Moraes **

Como forma de valorizar o jornalismo independente e focado nos problemas reais dos povos originários, trazemos o caso das retomadas em Mato Grosso do Sul. As chamadas retomadas, são ações organizadas para garantir a efetivação dos direitos às terras da população indígena brasileira. O Brasil de Fato aponta que, com o agravamento do descumprimento constitucional em demarcar os TI no prazo de cinco anos – contando com a promulgação de 1988 – e o uso da tese do marco temporal – que reinterpreta a Constituição e afirma que os indígenas só teriam direito às terras se houvesse a data de promulgação de 5 de outubro de 1988 – surgiram as retomadas. 

Durante a noite de sábado, 3 de agosto, ao menos 11 Guarani-Kaiowá foram feridos em Douradina (MS), por capangas na retomada Kurupa’yty. O ataque foi denunciado à Força Nacional na segunda-feira, 29 de julho, que ignorou o chamado até o dia 9 de agosto. Acompanhada pelo Intercept Brasil, a retomada da Terra Indígena (TI) Panambi, em Lagoa Rica, teve início em 13 de julho, além da Kurupa’yty, foram realizadas duas ocupações ao longo de julho: Yvy Ajere e Pikyxy’yn.  

Como informa a Agência Pública, a trajetória dos Guarani-Kaiowá pela demarcação da TI Panambi começou em 2011, quando 12,1 mil hectares do território foram identificados e demarcados.  Entretanto, o processo está paralisado no Tribunal Regional Federal da 3° Região, em segunda instância da Justiça Federal. 

Em contramão, a Lei 14.703 e a PEC 40 buscam implementar a tese do marco temporal sobre os Kaiowá desde 2016. No mesmo ano, o juiz federal Moisés Anderson Costa Rodrigues da Silva, da primeira Vara Federal de Dourados, anulou o processo de demarcação da TI Panambi – a pedido de um fazendeiro – com a justificativa apresentada no marco temporal.

Assim, deu-se início à ocupação do TI Panambi em Lagoa Rica, que fica entre dois territórios retomados: Gwa’aroka e Guyra Kambiy. Em nota, o povo Guarani-Kaiowá relata o adoecimento de seu povo “ilhados pela soja, veneno e pela devastação”, a invisibilidade de um futuro às crianças e jovens Kaiowá decorrentes: da fome, de ameaças atravessadas pela milícia e a prisão estatal. 

Durante os meses de julho e agosto de 2024, o jornalista Leandro Barbosa acompanhou a retomada, a denúncia e o ataque em Douradina, e documentou em seu perfil do X (@Barbosa_Leandro) a rotina junto aos Kaiowá.  Em conjunto à sua cobertura, o fotógrafo Gabriel Schlickmann documentou a investida dos pistoleiros, as agressões e os relatos do povo Guarani-Kaiowá. 

Ao se apresentar em um das paisagens do pós-ataque, dia 3 de agosto, Leandro atribuí ao Intercept, que está em colaboração com os profissionais na cobertura, “o único veículo presente numa retomada inidígena que tem sido violentamente atacada”. O período de um mês e meio na Retomada Kurupa’yty trouxe uma reportagem de denúncia. Nomeada Depois do tiro, a fome, o texto do The Intercept Brasil, constrói, justamente, o “após” ao ataque e a permanência da comunidade.

No ataque de sábado, 3, ao menos onze indígenas foram feridos a bala por milicianos ruralistas e seus capangas. “A noite ontem foi pesada, triste e revoltante. Hoje sigo acompanhando os desdobramentos desse ataque previsto aos Kaiowá, porém ignorado pelas forças de segurança estadual e federal…”, tuita Leandro no dia seguinte, 4 de agosto, com registro de Gabriel aos cuidados de um Kaiowá.

As publicações de Leandro no X atingiram quase 500 mil usuários da rede, além dos relatos do jornalista e dos Kaiowá, “A importância de se investir no jornalismo independente tá nisso. A gente consegue trabalhar, produzir e ajudar a pautar temas por vezes invisibilizados”, escreve Leandro. O jornalista também realizou uma vaquinha para compra de alimento ao povo Guarani-Kaiowá, que arrecadou dinheiro suficiente para, pelo menos, três meses de medicação a um Kaiowá que foi vítima de uma bala na cabeça e, aproximadamente, 3 mil em comida e mobilidade.

Outro fato grave é que, segundo o  Conselho Indigenista Missionário – CIMI, os ataques são uma reação provocada por vídeos de desinformação, como reportado por Leandro Barbosa, na Agência Pública em 19 de agosto: as informações falsas correm em grupos de mensagens, e apontam cometimento de crimes sem comprovação pelos indígena, enquanto que os desmentidos não diminuem a violência contra os territórios. Aleḿ disso, a “desinformação alimenta movimentos ideológicos que têm atuado para promover despejos ilegais, como o movimento Invasão Zero, citado com recorrência por produtores rurais e políticos do estado”.

Fazer jornalismo é uma forma de apurar, trazer para o debate público e fomentar o engajamento em causas socioambientais de extrema importância. Podemos entender mais sobre a grande ofensiva que sofrem os povos originários há séculos, neste relato dos jornalistas Leandro Barbosa e Gabriel Schlickmann. Os jornalistas buscam ocupar as redes para fazer chegar as informações apuradas junto aos povos em luta, fatos que são quase sempre sonegados ou trazidos muito rapidamente em veículos de comunicação corporativos. Neste sentido, o Jornalismo Ambiental se faz presente de forma fundamental, em seu compromisso com a escuta de vozes que denunciam a ferocidade do avanço da economia intrusiva, responsável pela ameaça constante às diversidades biológica e sociocultural. 

 *Graduanda em Jornalismo na UFSM, voluntária de Iniciação Científica no Grupo Mão na Mídia (CNPq/UFSM). E-mail: leda.evangelista@ufsm.br

** Jornalista, doutora em Comunicação e Informação, professora na UFSM, Integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). Líder do Grupo Mão na Mídia (CNPq/UFSM). E-mail: claudia.moraes@ufsm.br

A luta indígena é dramática e urgente

Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Por Cláudia Herte de Moraes*

A luta indígena deve ser de todos nós. É um ponto crucial para o enfrentamento dos desafios do Brasil e do mundo, diante da “queda do céu” que se aproxima, nos servindo da metáfora de Davi Kopenawa que, em seu livro, traz a preocupação dos povos originários sobre o possível colapso do sistema que sustenta nossa vida. Na resenha da obra no site Outras Palavras, Álvaro Faleiros descreve nosso contexto: “No velho e requentado discurso neocolonial, o território brasileiro é riscado por fronteiras – “agrícola”, dos “negócios”, do “desenvolvimento”, da “civilização”… Fronteiras ou fronts de uma guerra de conquista que busca incorporar cada novo rincão ao projeto uniformizante do capitalismo extrativista global.”

No domingo de Carnaval, dia 11 de fevereiro de 2024, a Escola Acadêmicos do Salgueiro do Rio de Janeiro fez ecoar seu samba na avenida e trouxe uma reflexão dramática sobre o sofrimento do povo Yanomami, que enfrenta uma emergência humanitária, decretada desde 2023, logo após o início do governo atual do presidente Lula (e foi tema deste Observatório). No samba, a frase “Eu aprendi o português, a língua do opressor/ Pra te provar que meu penar também é sua dor/ Falar de amor enquanto a mata chora/ É luta sem flecha, da boca pra fora” traz a denúncia de que não bastam palavras e postagens em apoio à luta indígena, precisamos partir para a ação. Como trazido pelo Brasil de Fato, foi um desfile histórico na Sapucaí, que reafirma a trajetória de luta dos Yanomami.

Enquanto o samba da Acadêmicos do Salgueiro fez uma grande homenagem ao povo Yanomami, no maior espetáculo da terra, é preciso lembrar que estamos em pleno vigor da Lei 14.701 (antigo PL 2903, da tese do Marco Temporal) que foi aprovada em setembro e na segunda rodada, em dezembro de 2023, o Congresso Nacional derrubou os vetos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) aos pontos mais críticos. Com isso, foram institucionalizadas várias violações constitucionais. A luta segue, em arenas jurídicas e no chão da floresta. O debate sobre o MT também foi abordado aqui no observatório.

Em 7 de fevereiro é celebrado o Dia Nacional de Luta dos Povos Indígenas. Nesta data, morria o nativo Sepé Tiaraju, no ano de 1756, do povo Guarani, importante liderança indígena pertencente aos Sete Povos das Missões. Este dia pretende trazer visibilidade às pautas dos povos originários brasileiros, infelizmente cada vez mais focada na própria sobrevivência. Em reportagem do G1 Amazônia, destaca como se dá a luta histórica dos indígenas pela defesa dos territórios, ouvindo indígenas, associações e pesquisadores, apontando como o sistema colonialista ainda se materializa na destruição ambiental e na negação dos direitos. 

O tema é recorrente e terrivelmente triste, pois não cessam as mortes de indígenas em todo território brasileiro. Em 21 de janeiro, foi assassinada Maria de Fátima Muniz, a Pajé Nega Pataxó Hã Hã Hã, na Bahia.  As investigações em curso demonstram que há uma combinação nefasta que se articula contra os direitos dos indígenas, incentivada até mesmo por benesses indevidas do Estado brasileiro, como apontado na notícia de 9 de fevereiro, da APIB: “Segundo testemunhas, o ataque teve a participação de integrantes do “Invasão Zero” e colaboração de policiais militares. A perícia comprovou que o tiro fatal partiu do filho de um fazendeiro.”

No entanto, os conflitos são cada vez mais frequentes nos territórios, possivelmente resultado dos últimos anos de um governo que insuflou pessoas e grupos armados contra os mais vulneráveis e protetores de suas terras e florestas. Também pela vigência do Marco Temporal e ligações políticas locais, como traz a reportagem do Nexo Jornal sobre a violação das terras de território Uru-Eu-Wau-Wau em Rondônia. 

O premiado documentário “Somos Guardiões”, recentemente entrou em cartaz no catálogo da Netflix. No destaque da Revista Fórum, Edivan Guajajara é o primeiro cineasta indígena a dirigir um filme no streaming e fala sobre a importância de trazer sua visão e unir forças para frear o problema ambiental e humano na Amazônia. A obra retrata os crimes ambientais e a violência contra os povos indígenas no país, mas especialmente a força daqueles que resistem há mais de 500 anos à invasão e exploração de seus territórios. Após assistir este documentário, fica nítido que precisamos mudar agora! Enquanto os indígenas e seus territórios são dilapidados, não chegaremos a impedir a queda do céu. 

Cada vez mais os jornais e publicações não hegemônicos despontam na cobertura das pautas indígenas, juntando-se à cobertura dos veículos jornalísticos tradicionais – que nem sempre conseguem apontar as ligações e complexidades de fatos históricos e entrelaçados com poderes colonialistas em nossa sociedade. Por isso, para apoiar e entender mais sobre a luta indígena, os espaços da visibilidade indígena nas plataformas digitais são muito relevantes, como a @apiboficial e as organizações regionais de base @apoinme_brasil | @coiabamazonia | @arpinsuloficial | @cons.terena | @atyguasu | @yvyrupa.cgy | @arpinsudestesprj

 * Jornalista, doutora em Comunicação e Informação, professora na UFSM, Integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). E-mail: claudia.moraes@ufsm.br.

Racismo ambiental persiste na cobertura das inundações em Santa Catarina

Imagem: Satélite do Google Maps mostra situação da véspera na barragem. Acesso: 12 out. 2023, 15h.

Por Eliege Fante*

Poucos dias após o alívio com a decisão do STF, contrária à tese do marco temporal, os povos originários da Terra Indígena Ibirama – Laklãnõ sofrem com reveses dos governos e da grande imprensa.

A pressa é inimiga da apuração jornalística, ainda mais quando há um desequilíbrio no acesso às fontes oficiais. Relacionado à cobertura do fechamento das comportas da Barragem Norte, ocorrido sábado (07/10), no município de José Boiteaux (SC), situada no Território Indígena (T.I.) Xokleng, Guarani e Kaingang (Terra Indígena Ibirama – Laklãnõ), vimos, ouvimos e lemos repetições de discursos de fontes oficiais do governo de Santa Catarina, em espaço desproporcional e em detrimento de outras fontes desta pauta: as indígenas. Espalhar informações simplificadas e limitadas gera o risco de produzir desinformação e de colher comentários racistas contra os povos originários e de ódio de todos os lados.

“A diversidade de racionalidades é o maior patrimônio da espécie”, lemos neste texto do falecido geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves, cujo destaque incentiva a escuta plural de todas as partes envolvidas numa pauta. Neste sentido, traremos a seguir informações relevantes a serem consideradas na produção jornalística dada a complexidade do tema, e que mesmo disponíveis, não são trazidas ao grande público.

Sobre o racismo ambiental, diferentemente do que vem sendo noticiado, o governo de Santa Catarina não teria cumprido o acordo com os povos da Terra Indígena Ibirama – Laklãnõ. É o que consta na decisão judicial da manhã desta quinta-feira (12/10), a qual determina que União e Estado de Santa Catarina tem 24 horas para cumprir as “medidas mitigatórias acordadas e assentadas”, e que o estado catarinense deve “apresentar relatório técnico relativo à operação excepcional da barragem (com eventuais recomendações de novas intervenções – abertura/fechamento de comportas), considerando as previsões e ocorrências de novas precipitações na bacia coletora”. As referidas medidas constantes na decisão judicial publicada no final da noite de 07 de outubro, são sete: Desobstrução e melhoria das estradas; Equipe de atendimento de saúde em postos 24 horas; Três barcos para atendimento da comunidade; Ônibus para atendimento da comunidade até a cidade; Água potável na aldeia; Fornecimento de cestas básicas; Ficou acordado que após as comportas serem fechadas algumas casas ficarão submersas e por esse motivo deverão ser construídas novas casas para essas famílias, em local seguro e longe do nível do rio.

Sobre o racismo ambiental, a Barragem Norte é uma das três no estado utilizadas para conter cheias do Rio Itajaí-Açu, cuja capacidade de reserva de 355 milhões de metros cúbicos de água pode causar alagamentos e até inundação em uma área de aproximadamente 870 hectares do Território Indígena Laklãnõ Xokleng. É importante utilizar o conversor de Hectômetro para demonstrar o real volume de água. Estes fatos já foram registrados em cheias anteriores, daí o clamor dos indígenas (dias antes de 07/10) pelo não fechamento das duas comportas diante da grave ameaça de deixar embaixo d’água diversas aldeias do T.I. Essas e outras fundamentais informações constam no documentário de 2015 “Enchente – O outro lado da Barragem Norte”, de 37 minutos, que expõe as desumanas condições vivenciadas no território desde a construção da Barragem Norte. A internet e as redes sociais facilitam uma aproximação entre comunicadores e jornalistas indígenas, por isso é necessário buscar informações em perfis como o da Juventude Xokleng e da comunicadora Ingrid Satere Mawé.

Sobre o racismo ambiental, se o fechamento das comportas está relacionado com a manutenção da data da Oktoberfest em Blumenau (início em 11/10), este foi um debate adjacente aos impactos do evento climático extremo em Santa Catarina, mas presente nas redes sociais indígenas e de direitos humanos. O Cacique Alison Voia de Lima da Aldeia Sede da T.I. Laklãnõ Xokleng confirma (07/10/2023) o posicionamento da sua comunidade de não fechamento das comportas da barragem do território indígena. E contou o que ouviu durante a reunião com autoridades do estado de Santa Catarina: “Por causa dessas comportas que estão abertas a oktober vai ser suspendida por uma semana.

Além do Cacique Xokleng, o prefeito de Taió, Alexandre Purnhagen, também aludiu ao megaevento, na noite de terça (10/10), o fechamento de comportas da barragem do município. Ao pedir a reabertura das comportas à autoridade estadual da Defesa Civil, o prefeito afirmou: “Eu vou culpar a Oktoberfest. Taió também faz parte deste estado. Eu não estou preocupado com bilheteria de Oktober, eu estou preocupado com vida de taioense. Vocês precisam abrir estas comportas. Blumenau não precisa ter todas as ruas na condição de seco.

Diferentemente da reivindicação indígena, o pedido do prefeito de Taió teria sido atendido horas depois, considerando a notícia do governo estadual sobre a abertura gradativa das comportas das barragens (Sul, em Ituporanga, e Oeste, em Taió), exceto da Barragem Norte, a que atinge o território indígena. Mas, a notícia do início da tarde desta quinta-feira (12/10) apresenta a situação das três barragens como fechadas

O megaevento turístico iniciou em Blumenau, na véspera deste feriado de Dia das Crianças, apesar do alerta vigente da Defesa Civil de alto risco de “temporais localizados em todo o estado com possibilidade de chuvas fortes, descargas elétricas, ventos intensos e queda de granizo. Alagamentos, deslizamentos, enxurradas e inundações graduais, o risco permanece muito alto”. Mas, foi suspenso novamente, na manhã do feriado, devido aos riscos de alagamentos no município. O retorno da programação ficou para o final da tarde desta sexta-feira (13/10).

Sobre o racismo ambiental, o relato da indigenista Georgia Fontoura sobre a reunião realizada na tarde de sábado (07/10), na T.I. Laklãnõ Xokleng, aponta o descumprimento, pelo governo catarinense, do acordo feito através do secretário de infraestrutura do estado com as demais autoridades, “de enviar mantimentos, barco, remédios e atender as famílias isoladas e atingidas pela cheia do lago de contenção”, considerando a desativação desde 2014 e não execução do plano de contingência. Três dias depois, Georgia publicou informações mais completas no artigo “As chuvas e os bugreiros” com outros indigenistas na Revista Fórum. E, sobre a mesa de negociação de domingo (08/10), o deputado Marquito (Psol) relata o pedido ao governador de Santa Catarina para que mantivesse o acordo firmado com os indígenas através do secretário. “A motivação do governador de ter colocado as forças de segurança e ter fechado as comportas sem uma análise técnica e política foi um grande erro”, afirmou.

Enquanto isso, a preferência na cobertura de pautas que ligam indígenas à violência, como aponta o Minimanual Como cobrir temas indígenas, confirmou-se na cobertura do chamado “confronto” entre indígenas e polícia militar na noite de 07 de outubro para o fechamento das duas comportas. É urgente problematizar:

1 – “as consequências que poderá provocar na vida e no território desta população, cuja sobrevivência também passou a estar em risco. Questiona-se ainda o uso excessivo da força que resultou em indígenas feridos”, conforme Nota da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC);

2 – as declarações da Defesa Civil estadual referente aos impactos negativos causados pela barragem no T.I. Laklãnõ Xokleng na palestra “de instrução e sensibilização sobre a presença indígena em Santa Catarina e Blumenau para policiais militares do 10º Batalhão da PM”;

3 – a condenação em 2017, segundo indigenistas, do estado de Santa Catarina, da União e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) em “implementar ações compensatórias e de segurança relativas à Barragem Norte”, o que não teria sido cumprido;

4 – a recente decisão do Supremo Tribunal Federal de rejeitar a tese do marco temporal em processos demarcatórios, que é favorável ao povo da Terra Indígena Ibirama – Laklãnõ, após um dos maiores julgamentos da história do STF, foram onze sessões. O julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1017365 está relacionado a um pedido do Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina de reintegração de posse de uma área localizada em parte da Reserva Biológica do Sassafrás (SC). A tese da repercussão geral (Tema 1.031), a partir deste julgamento, será utilizada na resolução de ao menos 226 casos semelhantes.   

No decorrer da semana, notícias continuaram insistindo na culpabilização do povo indígena. Referente à veiculação de informações sobre a suposta negativa de abertura das comportas, o cacique Setembrino Camlen esclareceu que esta decisão é da defesa civil e do governo do estado. “Não é que a comunidade não está deixando operar a barragem, a comunidade não vai impedir que a equipe faça o trabalho que quer fazer. Estamos aqui num momento difícil, a comunidade está se deslocando das aldeias, estão ilhados, tem casa deslizando, então o pessoal está vindo com medo e por isso estão acampando.” Há mesmo muito a ser ouvido. O jornalismo possui as condições, mas a grande imprensa brasileira conseguirá mudar o padrão de cobertura?

*Jornalista, doutora em Comunicação e Informação, membra do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental UFRGS/CNPq e assessora de comunicação da Rede Campos Sulinos.

Alguns apontamentos sobre o marco temporal no Portal Metrópoles

Imagem: Lula Marques/Agência Brasil

Por Eutalita Bezerra*

As mais recentes movimentações políticas relacionadas ao meio ambiente brasileiro têm sido tema de intensos debates e alcançado grande interesse da população. De acordo com dados do Google Trends, a pesquisa por “Marco temporal das terras indígenas” subiu mais de 850% somente nesta semana, momento em que Congresso e o Governo Federal estão em lados opostos. Discutiremos, neste texto, a abordagem do assunto por parte do portal Metrópoles, um dos sites mais visitados do país atualmente.

Considerando publicações feitas desde a aprovação no Congresso do regime de urgência para votação do marco temporal, em 24 de maio, até o dia 30, às vésperas da votação, o portal publicou cinco vezes sobre o assunto, sendo uma delas um extenso texto patrocinado. Este indica que a revisão do marco “pode prejudicar o país” e se ancora na ideia de que haverá um “risco de crise agrária sem precedentes”, além de um “impacto negativo bilionário para o agronegócio”. A publicação é patrocinada pela Associação dos Produtores de Soja e Milho (Aprosoja), Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa) e a Associação Mato-Grossense dos Produtores de Algodão (Ampa).

Além do conteúdo pago, o assunto também foi exposto no Blog do Noblat, hospedado no Metrópoles. Na publicação intitulada “Bancada ruralista desenterra PL do marco temporal para driblar STF”, se faz um breve histórico do assunto e destaca-se que a movimentação do referido projeto de lei é patrocinada pela bancada ruralista. Embora seja um espaço opinativo, o texto é objetivo e não traz uma análise dos fatos.

Outras três publicações foram feitas no mesmo período. Em “Marco temporal e desmonte de ministérios: Congresso esvazia meio ambiente“, os jornalistas exploram as perdas políticas da gestão da Ministra Marina Silva. Neste são citadas entidades contrárias ao marco temporal, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), o Greenpeace Brasil e o Instituto Socioambiental (Isa), e são ouvidos apenas pessoas que estão ao lado da causa indígena: a Ministra Sonia Guajajara; a presidente do Partido dos Trabalhadores, Gleisi Hoffmann e a Deputada Federal Célia Xakriabá.

Outra publicação feita no mesmo período tem como principal fonte a presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Joênia Wapichana. O texto intitulado “Marco Temporal viola direitos indígenas, afirma presidente da Funai” ouve exclusivamente Joênia, destacando a inconstitucionalidade da pauta proposta pela bancada ruralista, bem como os motivos pelos quais, para as entidades representativas dos povos originários, a manutenção do marco temporal representaria uma violação aos direitos indígenas.

Por fim, em “Mark Ruffalo pede que Lula impeça marco temporal das Terras Indígenas“, o Portal Metrópoles explora a publicação feita pelo intérprete de Hulk em suas redes sociais. Conhecido pelo ativismo ambiental, Ruffalo se manifestou sobre o assunto, compartilhando uma publicação da deputada Celia Xakriabá e convidou outros artistas a fazerem o mesmo. A publicação também não ouviu a bancada do agro, que trouxe o assunto novamente à tona.

Embora as mídias tradicionais habitualmente ofereçam maior espaço ao peso econômico das pautas ambientais, no caso do Metrópoles este ponto de vista foi levantado apenas na publicação paga. O Metrópoles discutiu, nessa semana, sobre direitos indígenas ouvindo principalmente os próprios indígenas, dando espaço às entidades que os representam e localizando o leitor sobre o assunto — que ainda é desconhecido para muitos, dada a exploração superficial que vem recebendo. Apesar da publicação paga, o Portal não perdeu a oportunidade de se diferenciar dos demais. Parece que é um caminho.

* Jornalista, mestra e doutora em Comunicação e Informação pela UFRGS. Membro do grupo de pesquisa Jornalismo Ambiental. Email: eutalita@gmail.com.

A repercussão do prêmio Goldman para liderança indígena do Tapajós

Imagem: Reprodução da notícia no jornal Folha de S. Paulo.

Por Ângela Camana*

Nesta semana, os principais jornais do Brasil e do mundo estamparam em suas páginas a foto de Alessandra Korap Munduruku: na terça-feira (dia 25) a liderança do Tapajós recebeu, em São Francisco, nos Estados Unidos, o prêmio Goldman, conhecido como o “Nobel do Ambientalismo”. A imprensa brasileira narra a conquista como um reconhecimento da luta de Alessandra Munduruku e destaca as articulações que recentemente impediram as atividades da mineradora Anglo American no território Munduruku.

À Folha de S. Paulo, Alessandra argumentou: “dizem que ganhamos uma batalha contra uma poderosa mineradora. Mas não achamos ela poderosa. O que é poderoso para nós são os nossos rios, nossas terras, nossos espíritos”. É impactante perceber como as declarações da premiada convocam os grandes portais a reconhecerem outros entes e escalas de importância no mundo, algo ainda raro nestes espaços. Além disso, em suas entrevistas, Alessandra destaca o caráter coletivo deste prêmio e sempre remete aos esforços de seu povo e daqueles que a antecederam na defesa do território na Amazônia – algo que, no mínimo, desestabiliza um jornalismo acostumado a perfis laudatórios centrados em uma única personagem quando de grandes vitórias.

Passados 100 dias do início do Governo Lula, como este Observatório já repercutiu, o Prêmio Goldman tem se mostrado um excelente gancho para a retomada da pauta das demarcações de terras indígenas – ainda mais no momento em que ocorre a 19ª. Edição Acampamento Terra Livre em Brasília. A expectativa é que, ainda nesta semana, haja a homologação de novas áreas.

Bem que seja um momento de celebrar mais este reconhecimento da trajetória de Alessandra Korap Munduruku e das lutas dos povos do Tapajós por seus territórios, vale mencionar que a liderança também é frequente nas páginas policiais, visto que sofre ameaças constantes. Fica a expectativa de que o bom jornalismo não se exima na cobertura das reivindicações dos povos indígenas – e não restrinja tais pautas aos momentos de premiações ou, pior, violências.

* Jornalista e socióloga. Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisadora colaboradora no Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental e no grupo de pesquisa TEMAS – Tecnologia, Meio Ambiente e Sociedade. E-mail: angela.camana@hotmail.com.


Vidas indígenas importam na imprensa e para o mundo

Imagem: Reprodução da edição de 3 de novembro de 2021 da CNN Brasil.

Por Carine Massierer*

A importância do ser humano e da espécie humana em seu habitat nunca esteve tão em xeque. Na semana passada, o artista indígena Jaider Esbell foi encontrado morto em seu apartamento, em São Paulo, e a notícia foi repercutida em publicações impressas, em rádios, nas emissoras televisivas e na internet. A causa da morte segue desconhecida. O artista plástico, que pertencia à etnia makuxi, assentada na reserva indígena Raposa Serra do Sol, também se destacava como escritor, ativista e educador.

Natural de Roraima, Esbell foi reconhecido lá fora, no exterior, a ponto de o Centre Pompidou adquirir duas obras suas recentemente, como contou sua marchande Socorro de Andrade Lima, da galeria Millan, que representava o artista, ao Correio Braziliense.

Até final de outubro, sua instalação “Entidades” (que apresentava duas cobras infláveis gigantes) esteve no Parque Redenção, integrando a programação do 28° Porto Alegre em Cena. Suas obras também estão na mostra coletiva “Moquém_Surarî: arte indígena contemporânea”, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), durante a 34ª Bienal de São Paulo que vai até final de novembro.

A matéria da CNN sobre tal acontecimento nos traz uma reflexão. Assim como outras publicações, essa também apresentou apenas o fato, a notícia do falecimento de um indígena que ganhou expressividade e reconhecimento público. E, independentemente da causa, trata-se da morte de mais um indígena e do enfraquecimento das lideranças e dos representantes sociais dos povos tradicionais. A imprensa tem feito seu papel noticiando, mas é preciso ir além, como fez a Agência Pública, em final de outubro, ao publicar uma entrevista da antropóloga Lúcia Helena Rangel, que coordenou o relatório do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).

Imagem: Reprodução da publicação de 28 de outubro de 2021 da Agência Pública.

Com base no acompanhamento contínuo feito por missionários espalhados em todo o Brasil e em uma série de dados oficiais, o CIMI detectou que, desde 2015, não havia tantos registros de violência contra indivíduos e territórios indígenas. Em 2020 foram pelo menos 182 vítimas conhecidas, número recorde em 25 anos. Ao todo, os homicídios de indígenas tiveram um aumento de mais de 60% na comparação com o ano anterior, 2019.

Com este levantamento é possível perceber que as vidas indígenas importam e que os povos tradicionais estão desprotegidos. O jornalismo, enquanto parte de um sistema de informação pública, deveria, ao menos, dar mais expressão à cultura indígena e seus representantes não só em momentos onde o factual impera, como no caso da morte de Esbell, mas ampliar e diversificar a cobertura para que a população entenda que eles estão sendo historicamente dizimados.

*Carine Massierer é jornalista, mestre em Comunicação e Informação pela UFRGS e integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS).