Pequenas notícias, grandes negócios

Imagem: Tânia Rêgo / Agência Brasil

Por Heverton Lacerda (@hevertonlacerda)*

Simples alteração na legislação ambiental ganha pouco destaque na imprensa, mas tem grande potencial de agravar impactos ecológicos.

Diferente das grandes catástrofes ambientais, provocadas tanto por eventos climáticos extremos, acidentes ou crimes ecológicos que causam grandes danos, mortes e comoção social, pequenas alterações na legislação ambiental até surgem no radar das grandes redações, mas não ganham o destaque necessário em função dos impactos que promovem.

É o caso da Lei nº 14.876, de 31 de maio de 2024, que modifica a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938 de 1981) e exclui o cultivo de eucalipto, entre outras espécies de árvores plantadas para fins de corte, da lista de atividades consideradas potencialmente poluidoras e utilizadoras de recursos ambientais. A lei foi proposta pelo senador Álvaro Dias (Podemos), ex-governador do Paraná, e teve a sanção do presidente Lula. Com a medida, as empresas de silvicultura, que produzem monoculturas de eucalipto, pinus e outras espécies, não precisam mais de licenciamento ambiental, nem pagar a Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental (TCFA) ao Ibama. Na prática, a nova lei flexibiliza a legislação, enfraquece o sistema de fiscalização e desonera grandes empresas de celulose, inclusive multinacionais, como é o caso da chilena CMPC, com operação no Rio Grande do Sul, e gigantes do setor como Klabin,  Suzano, Bracell, Arauco e Internacional Paper, com atuação no Mato Grosso do Sul, entre outras. 

Um estudo da Universidade Federal de Lavras – Erosão hídrica pós-plantio em florestas de eucalipto na bacia do rio Paraná, no leste do Mato Grosso do Sul – aponta que a erosão hídrica, o desgaste provocado na superfície terrestre por ação das chuvas, interfere na cobertura do solo e influencia no escoamento das águas. Esse fator seria um gancho (termo jornalístico) perfeito para relacionar, por exemplo, com as situações que ampliaram os impactos das enchentes em comunidades do Rio Grande do Sul.  A questão poderia ser relacionada com o corte de matas ciliares das margens do rio Taquari que tiraram as proteções do curso d’água e, respectivamente, das cidades atingidas pelo alagamento.

O tema da legislação da silvicultura é tão importante e está tão ligado às questões ecológicas e climáticas que a falta de debate – ou da promoção do amplo debate pela imprensa – gera um vácuo de informação perigoso, que só interessa às motivações políticas e econômicas do negócio.

Em setembro de 2023, o portal Sul 21, que tem dado grande atenção à pauta ambiental no Rio Grande do Sul, noticiou que “Sob crítica de ambientalistas, Consema aprova novo Zoneamento Ambiental da Silvicultura”. Na linha de apoio da manchete, o jornalista Luciano Velleda expõe que “Áreas de plantio poderão ser quatro vezes maior, com potencial de causar mais perda dos campos nativos do Pampa”.  Naquele período, os gaúchos também enfrentavam problemas com as enchentes. Ao jornalismo do Sul 21, que tem ambientalistas entre suas fontes, não faltou faro para perceber que “Enquanto o governo estadual e a sociedade civil se mobilizam para socorrer a população das cidades do Vale do Taquari devastadas pela enchente que já matou 48 pessoas, enquanto especialistas e ambientalistas debatem as causas e consequências da mudança climática e como isso afeta o Rio Grande do Sul, o Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) aprovou, na última quinta-feira (14), a atualização do Zoneamento Ambiental para a Atividade da Silvicultura (ZAS) no estado”. Essa “atualização” amplia a área infestada por pinus e eucaliptos de, aproximadamente, um milhão para mais de quatro milhões de hectares.

A aprovação pelo Consema é criticada porque o órgão, que deveria servir para aprovar políticas de proteção ambiental, está dominado por entidades do setor empresarial e tem maioria decisiva do governo gaúcho, que, por sua vez, nas gestões de Eduardo Leite (PSDB), e na anterior, de José Ivo Sartori (MDB), está à serviço do mesmo setor empresarial que domina o Conselho. As alterações do ZAS, que até então tinha redação dos técnicos ambientais da Fundação Estadual de Proteção Ambiental do RS (Fepam), foram feitas às pressas, nos mesmos moldes (modus operandi) do que foi executado na flexibilização do Código Estadual do Meio Ambiente pelo governo Leite em 2019, que alterou diversos dispositivos legais em apenas 75 dias, um contraste com a construção do Código original, que foi debatido com a sociedade durante nove anos e aprovado por unanimidade. Um tema dessa magnitude e proporção não deveria ser alterado apenas em gabinetes.

A reflexão que proponho aqui não está, necessariamente, ligada à existência ou à falta de inclusão das notícias nas páginas e telas da imprensa, mas sim à forma como os fatos ambientais são tratados por jornalistas e veículos.

Na linha oposta do exemplo que apresentei acima, do Sul 21, uma mídia não-hegemônica – nos termos propostos pela pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental e professora da Ufrgs Eloisa Loose Beling –, trago uma concepção de abordagem publicada pela jornalista Gisele Loeblein no jornal Zero Hora, um veículo hegemônico com relações comerciais com os setores do agronegócio e da silvicultura. A chamada da pequena matéria, pouco mais do que uma nota, que apresenta apenas um lado da questão, promete oferecer respostas para “O que muda com a lei que tirou as florestas plantadas da lista de atividades poluidoras”. Logo no primeiro parágrafo, a jornalista diz que “A implementação no Rio Grande do Sul da lei federal que exclui a silvicultura das atividades consideradas poluidoras precisa passar por análise do Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema)”. Para o leitor que não conhece o contexto do Consema, como explicado acima, pode parecer que a lei só passará a integrar a regulamentação estadual após um órgão de proteção ambiental aprova-la. Isso seria o suficiente para tranquilizar esse leitor. Mas a matéria não para por aí, ela segue com a nota da Secretaria Estadual do Meio Ambiente (faltou a palavra “Infraestrutura”, que passou a fazer parte do nome da Secretaria no governo Leite).

Imagem: Captura de tela portal gaúchazh.clicrbs.com.br

Percebe-se que a nota da Secretaria é a informação que abre a matéria, dizendo que precisa “passar pela análise do Consema”. As demais falas que integram a matéria são do presidente da Indústria Brasileira de Árvores, Paulo Hartung, que comemorou a medida e criticou os “entraves burocráticos” que “vinham ‘travando investimentos’”; e do representante da Federação da Agricultura do Estado (Farsul), Domingos Velho Lopes, que informa haver uma projeção de ampliação de 322 mil hectares de “floresta plantada” para o período 2020 a 2023.

Neste caso, não foram ouvidos ambientalistas, nem pesquisadores das universidades sobre o tema, um caso claro de desinformação proposital em um veículo da maior empresa jornalística do Rio Grande do Sul, o Grupo RBS, afiliado à Rede Globo.

Espero que, com a reflexão sobre esse tema – que pode parecer menor do que realmente é, daí o título “Pequenas notícias, grandes negócios”, inspirado no tradicional programa “Pequenas empresas, grandes negócios” –, tenhamos conseguido, mais do que apontar o dedo para um ou outro exemplo, colaborar com o processo de amadurecimento e evolução de um jornalismo consciente diante das pautas ambientais. Uma prática jornalística com visão abrangente sobre os reflexos e interconexões ecológicas, sociais e, inclusive, de relações geopolíticas relacionadas ao uso e exploração do ambiente natural para fins comerciais e de sobrevivência, é fundamental.

Temos o desafio de abordar temas complexos, muitas vezes vitais, e prepara-los para serem apresentados à sociedade com integridade, linguagem adequada e uso de recursos disponíveis para propiciar maior compreensão às pautas e exercer a confiabilidade inerente à nossa profissão, entregando informações fidedignas e importantes.

*Jornalista, especialista em Ciências Humanas: Sociologia, História e Filosofia, mestrando em Comunicação (PPGCOM/UFRGS), integrante do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental (UFRGS/CNPq) e presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN).

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