A boiada de Salles e o jornalismo ambiental

Imagem: captura de tela – Reportagem recente do site O Eco criado em agosto de 2004 para “dar voz a bichos e plantas, através daqueles que se interessam em protegê-los”.

Roberto Villar Belmonte*

No dia em que o Brasil passou a ser o segundo país mais afetado pelo novo coronavírus Sars-Cov-2, com mais de 330 mil casos oficialmente registrados e 21.048 mortes causadas pela Covid-19, o mundo descobriu que a pandemia não é apenas tratada como uma “gripezinha” pelos aloprados chefiados por Jair Bolsonaro, ela também vem sendo usada como cortina de fumaça para afrouxar ainda mais os regramentos ambientais. Foi o próprio ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, já condenado em primeira instância por improbidade administrativa, quem explicou sem cerimônias essa estratégia macabra em reunião ministerial gravada dia 22 de abril no Palácio do Planalto e divulgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na sexta-feira, 22 de maio: “Então para isso precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de Covid, e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas”.

Uma crise nacional e um megaevento sempre mobilizam a atenção da imprensa e, por consequência, agendam a opinião pública. Por isso quando ocorre confisco da poupança, vazamento de petróleo, desabamento de barragem da mineração, denúncias de corrupção e uma pandemia todos ficam atentos. Foi o que aconteceu com a realização da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento no Brasil em 1992: jornais, revistas, rádios e tvs mantiveram a pauta ambiental em destaque durante vários meses. No entanto, tão logo terminou a Cúpula da Terra promovida pela ONU no Riocentro e no Aterro do Flamengo, o assunto passou a ser o impeachment de Fernando Collor de Mello. E o meio ambiente voltou à marginalidade. Muito já se escreveu sobre esse apagão na cobertura de temas ambientais no país pós-Rio 92. Dizia-se na época até que os jornalistas interessados e/ou especializados eram tão poucos que caberiam em uma Kombi.

Não é mais o caso e por isso os desmandos do ministro condenado são denunciados com veemência pela imprensa brasileira, mesmo durante a pandemia, e também pelos correspondentes estrangeiros que atuam no país. Atualmente existem mais de 30 serviços especializados na cobertura de temas ambientais no Brasil, principalmente sites e portais. Na Região Sudeste, os principais jornais têm repórteres que acompanham de perto a área, uns cobrindo com uma perspectiva científica, outros pelo viés econômico, mesmo sem uma editoria de meio ambiente. A pauta ambiental não é mais vista como um assunto exótico dentro das principais redações, como era no final do século passado. Também não existia naquela época empreendimentos jornalísticos como A Pública – Agência de Jornalismo Investigativo, Repórter Brasil, The Intercept Brasil, Amazônia Real, Infoamazônia, O Eco e nem uma articulação de ONGs ambientalistas com uma produção de conteúdo tão qualificada como a do Observatório do Clima.

O que Salles quis dizer então com “momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa”? A eleição dos amigos e simpatizantes das milícias armadas teve um efeito semelhante à realização da Rio 92 no Brasil: a imprensa brasileira colocou o meio ambiente na pauta denunciando crimes e estultices oficiais. A sustentabilidade ambiental já não é mais só um tema exótico, ela passou a ser vista também como diferencial econômico por parte do empresariado. Além disso, o negacionismo climático e o terraplanismo do governo federal surpreenderam até mesmo os que sempre defenderam, à esquerda e à direita, o desenvolvimento a qualquer custo. Por isso as manobras e maracutaias do ministro condenado ocupam espaço de destaque na agenda pública. Com a chegada da pandemia, as pessoas estão bem mais preocupadas com a sua própria saúde, com a má gestão da crise e com o futuro da economia. Mas as denúncias ambientais continuam sendo publicadas.

Cinco dias antes do STF liberar a gravação do vídeo mostrando a reunião de Bolsonaro com seus ministros em linguajar de botequim, o site de jornalismo ambiental O Eco, criado em agosto de 2004, publicou a segunda parte de uma série que investiga a relação entre o mercado financeiro e a indústria da carne no Brasil. Na reportagem de perspectiva econômica Muito discurso, pouca prática: empresas “verdes” financiam indústria da carne na Amazônia, Fernanda Wenzel, Naira Hofmeister, Pedro Papini e Juliana Lopes mostram que os três frigoríficos que mais compram bois na Amazônia – JBS, Marfrig e Minerva – receberam 18 bilhões de dólares em investimento entre 2013 e 2019, apesar de estarem entre os dez processadores de carne do país com maior chance de promoverem o desmatamento. Todos investidores foram identificados. A matéria mostra que o mercado financeiro é bom de discurso verde, mas ainda deixa a desejar em suas práticas.

A reportagem faz parte de projeto que busca melhorar a eficiência dos acordos da carne e da soja, realizado por meio de uma parceria do site O Eco com o Imazon e apoio da Gordon and Betty Moore Foundation. O jornalismo ambiental praticado nos anos 20 do século XXI é mais experiente e preparado do que o da última década do século passado. Existem muito mais jornalistas interessados no tema, com diferentes níveis de engajamento com a causa ambiental, e mais iniciativas jornalísticas acompanhando de perto os problemas e as soluções possíveis. Prova disso foi a reação de toda a imprensa brasileira diante da confissão de culpa do ministro do Meio Ambiente do governo negacionista de extrema direita que parece gostar do caos produzido pelo avanço da pandemia. O apagão da cobertura ambiental ocorrido pós-Rio 92 não se repetirá durante o atual governo e nem tampouco nessa pandemia que tem, inclusive, causas ambientais. Salles e sua boiada cutucaram a onça com vara curta.

*Roberto Villar Belmonte é jornalista, professor e pesquisador dedicado à cobertura ambiental. Membro do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS).

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