Cais Mauá: Com quantos adjetivos negativos se (des)faz um espaço?

*Eutalita Bezerra

Imagem: Captura de tela do site do Jornal do Comércio

Nos últimos quatro ou cinco anos, por conta da minha pesquisa de doutorado, investiguei a cobertura acerca das construções (ou destruições) nas áreas de Cais no Brasil. Em certo momento, buscando uma analogia entre o que ocorria no Cais José Estelita, em Pernambuco, no qual um conjunto de empreiteiras leiloou o terreno à beira do rio e propôs erguer ali um paredão de edifícios, e um possível futuro do Cais Mauá, em Porto Alegre, folheei as publicações tradicionais da cidade. A expectativa era de traçar paralelos entre as narrativas. O silêncio sobre o assunto era de tal forma significativo que inviabilizou a análise.

No último ano, porém ,tenho percebido um crescimento das discussões sobre o assunto nas páginas gaúchas, possivelmente mobilizado pelo já inaugurado Cais Embarcadero e por novas possibilidades para a região. Um exemplo pode ser visto no último dia 15 de junho, em que duas publicações foram feitas pelo Jornal do Comércio, ambas tratando de uma possível “revitalização” e exploração econômica da antiga área portuária de Porto Alegre.

A primeira delas, intitulada, “ ‘Projeto Cais Mauá é emblemático e único no País’, diz responsável no BNDES”, publicado sob a cartola “Patrimônio”, trata especialmente dos esforços do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, instituição responsável pelo estudo que vai sugerir ao Estado o formato para atrair interesse do setor privado naquela área.

Ao tratar sobre o espaço, convém destacar os termos utilizados, seja para descrevê-lo ou para apontar os caminhos já tomados: espaço degradado, desafio, concessão fracassada, conjunto deteriorado. O tombamento de alguns dos armazéns pelo patrimônio histórico também é citado como um entrave, inclusive apresentado como um dos responsáveis pela rescisão de um contrato anterior para obras na região.

Apesar de tantas agruras, o Banco parece enxergar ali potencialidades. Sua localização privilegiada, no centro da cidade, bem como seus mais de três quilômetros de extensão, o tornam de tal maneira “único” que merece a atenção do Departamento de Ativos Imobiliários da instituição financeira. Ao mesmo tempo, este, segundo a publicação, evitou comentar o potencial da área, bem como o volume de investimentos esperado.

Já a segunda publicação vem na coluna Pensar a Cidade, tutelada pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio Grande do Sul, com a cartola “Urbanismo”. Sob o título “Estudo sobre o Cais Mauá inicia com escuta ao público”, informa acerca dos primeiros de dez workshops propostos pelo Consórcio Revitaliza, grupo de oito empresas delegadas, junto com o BNDES, pelo estado para definir o melhor uso para a área.

O texto descreve os encontros como reuniões para apresentar “levantamentos iniciais sobre a área, bem como coletar sugestões sobre como poderia ser usada e qual a percepção das pessoas sobre o Cais e sua relação com a cidade”. O primeiro encontro teria ocorrido apenas com empresários e o segundo, apontado como “dia de maior debate”, recebeu a comunidade local, do entorno ou com algum interesse direto na área.

Professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, representantes de entidades da sociedade civil, como o Observatório das Metrópoles e da Associação Amigos do Cais do Porto, foram nominados no texto como vozes dissidentes. O texto admite, ainda, novas reuniões com entidades de arquitetura, universidades e imprensa sobre as “singularidades criativas que caracterizam o local”. O mesmo texto também admite que em pelo menos dois dos encontros serão realizadas devoluções, informando o que se pode ou não incorporar ao projeto a partir das contribuições recebidas.

Nesta publicação, embora o caminho pareça mais aberto que aquele vislumbrado noutras oportunidades ao se discutir o futuro de áreas de Cais, a naturalização do olhar para o espaço como apenas um ativo,necessariamente nos chama a atenção, mas não é o ponto mais importante neste momento. O que nos atinge com mais propriedade é o fato de que, mesmo quando em abertura a contribuições que fujam da lógica acumuladora e espoliadora, não há qualquer menção ao potencial impacto ambiental decorrente de sua utilização. Não é possível, aliás, dizer que esse assunto não foi tratado na reunião. Mas é plenamente factível afirmar que, caso tenha sido, o jornal não tomou como importante o suficiente para ser citado num texto que conta com três subtítulos.


Ao jornalismo, especialmente em momentos decisivos como este, em que o impacto de um empreendimento de grande envergadura não é analisado em sua potencialidade e nos seus riscos, cabe reforçar que o silêncio também é narrativa. E aqui retomo o olhar ao que ocorreu em Pernambuco: lido como um não-lugar pelos jornais, o terreno do Cais José Estelita, hoje e adiante, serve a uma ínfima parte da população. Seguirá com a expectativa do que poderia ter sido e não foi.


Para um destino diferente, os jornalistas precisam explanar as questões ambientais envolvidas nessa pauta hoje. É mister admitir que este não pode ser um assunto para segundo momento, quando as definições “sobre o que se pode ou não incorporar ao projeto”, como dito anteriormente, já estejam tão cristalizadas que seja impossível enxergar outros caminhos.

* Jornalista, Doutora em Comunicação e Informação pela UFRGS. Membro do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental. E-mail: eutalita@gmail.com

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