Chegou a hora da Dubai Gaúcha enfrentar o clima

Foto: Bruno Peres/Agência Brasil

Por Carine Massierer*

Este artigo não é sobre Dubai, nem tampouco sobre a Porto Alegre em si, mas trata de uma das possíveis causas das constantes inundações que afetam a capital gaúcha, para que possamos refletir sobre a ação humana e a importância de uma comunicação não ludibriada com as obras de expansão, que acabam sendo “naturalizadas” nos cenários urbanos e modernos das cidades.

A afirmação “Porto Alegre já era Dubai antes de Dubai ser Dubai” é uma hipérbole que compara o desenvolvimento da capital gaúcha com o da cidade árabe, especialmente em relação a grandes projetos de aterro e urbanização. Em Porto Alegre foram muitas etapas de aterramentos. Os primeiros, ocorreram no século 19 com pequenos avanços e depois foram feitas ampliações significativas no centro histórico e na zona portuária. Na década de 1950, houve um grande projeto de aterramento na Avenida Praia de Belas, iniciado em 1956. Além disso, a expansão para as zonas Sul e Norte também ocorreu e foi concluída até o final de 1970. 

As maiores áreas de aterros foram construídas após a famosa enchente de 1941, um evento com o qual muitos consideravam que nunca encontrariam, mas que voltou a assombrar a população em maio de 2024, quando o estado do Rio Grande do Sul — e, em especial, sua capital — enfrentou a maior catástrofe de sua história. A imprensa, naquele momento, acabou trazendo o tema à tona, mas isso não serviu nem para uma mudança de postura da população com relação ao rio e muito menos para a discussão e ação política.

A imagem abaixo mostra o tamanho do problema em 2024 onde todas as áreas de aterro da capital alagaram:   

Imagem da publicação no Instagram nas páginas de @portoalegreoficial e @portoalegre com o seguinte título: Todos os ATERROS de Porto Alegre ALAGARAM. Publicação de 2024. Disponível no link: https://www.instagram.com/p/C7WZHHPuGue/?hl=pt

Nesta semana novos alagamentos ocorreram, apesar do cenário ser diferente do registrado em abril de 2024, quando os acumulados chegaram a 800 milímetros de chuva concentrados, comparados aos cerca de 500 milímetros deste ano.

Porém, a pane voltou a se instaurar entre os habitantes das áreas aterradas e a imprensa passou a monitorar a pauta e publicar todo o tempo matérias em nível local e nacional, como pode ser acompanhado pelo link: https://goo.su/qT6t39X

O que as pessoas não levam em conta é que o rio volta a tomar o seu curso um dia e que as mudanças climáticas existem e se tornaram parte da rotina diária dos humanos, que invadiram os espaços e os recursos hídricos em prol do progresso.

Chegou a hora da Dubai Gaúcha, Porto Alegre, enfrentar o clima novamente. É a natureza cobrando as ações humanas que seguem desenfreadas. Nesta semana, os humanos que vivem nestas terras seguem “tremendo nas bases” porque a busca por modernizar a área central e expandir a área urbana fizeram com que a água do Lago Guaíba e a ampliação do vento Sul novamente alagasse a parte mais próxima a ele.

Como ressalta Canclini em Cidadãos Substituídos por Algoritmos, as mudanças que fizemos inadvertidamente acabaram comprometendo todo o sistema e agora enfrentamos um colapso ecológico. Para enfrentar o clima é preciso a mudança de postura, inclusive da imprensa que praticamente não tocou no tema dos aterramentos diante das catástrofes das enchentes neste ano.

Ou seja, mesmo que os alagamentos voltem a ocorrer em áreas que foram aterradas e se tornem o centro das preocupações da população, as consequências, a cada novo evento climático que ocorre, são o centro dos debates e das ações midiatizadas, mas as causas, no caso os aterramentos, não voltam às discussões políticas e nem como manchetes na imprensa.

*Carine Massierer é jornalista, mestre em Comunicação e Informação pela UFRGS e integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental

A reprodução midiática da violência de gênero sofrida por Marina Silva

Por Letícia Pasuch* e Eloisa Beling Loose**

Foto: Lula Marques / Agência Brasil

Na última semana, a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, foi convidada para participar da Comissão de Infraestrutura do Senado em razão da criação de unidade de conservação da na Margem Equatorial, na Foz do Rio Amazonas, no Norte do Brasil. É nesta região que a Petrobras quer explorar petróleo. Marina defende que o Ibama faça um trabalho técnico seguindo as leis ambientais.

Ainda nessa reunião, foi debatido o asfaltamento da BR-319, estrada que liga Porto Velho (RO) a Manaus (AM). O tema é delicado no governo Lula há alguns anos. Enquanto parlamentares defendem que a rodovia possa diminuir o isolamento de estados como o Amazonas e Roraima do resto do país, defensores ambientais alertam que o asfaltamento seria vetor do desmatamento desenfreado na Amazônia.

Embora convidada para ser ouvida, a ministra foi alvo de ataques dos senadores Omar Aziz (PSD-AM), Marcos Rogério (PL-RO) e Plínio Valério (PSDB-AM). Enquanto Valério dizia que “mulher merece respeito, a ministra não” – o mesmo que, em março deste ano, já havia dito que queria enforcá-la –, Rogério acrescentava que a ministra deveria “se pôr no seu lugar”. Ela exigiu um pedido de desculpas para permanecer na audiência, mas não foi ouvida. Acabou deixando a reunião, sem ter apoio de nenhum político presente.

O episódio foi repercutido por diferentes veículos de imprensa, mas nem sempre evidenciando as causas estruturais que sustentam o repúdio à notória defensora da natureza. Este Observatório fez uma análise das notícias (excluindo, portanto, textos opinativos) entre os dias 27 de março e 3 de junho de 2025. Em grande parte dos veículos hegemônicos, não houve discussão acerca da intersecção entre a proteção ambiental e a violência política de gênero, que atravessam a situação.

O jornal O Globo ouviu o senador Plínio Valério (PSDB-AM), que afirmou que, além de negar a possibilidade de pedir desculpas à ministra sob justificativa de que “não entra mais em casa”, afirma que o mundo está “chato” com a “cobrança de machismo”. O texto reproduziu as falas do parlamentar e as de Marina proferidas na audiência, mas ouviu apenas a versão de Valério na matéria. Apesar de usar o termo “ofendida” e “alvo de ataques”, outra notícia também se limitou a reproduzir os discursos no Congresso, sem um contexto maior sobre os motivos discutidos nas ofensas.

Já o Estadão publicou pelo menos 10 notícias sobre o acontecimento, além de outras três colunas de opinião. A única matéria que relaciona os ataques com a posição de liderança que Marina ocupa na área ambiental ouviu uma representante do clima do Reino Unido, que afirmou que Marina é respeitada mundialmente pela sua coragem e ressaltou a necessidade de haver mais mulheres na vida pública.

As demais notícias apenas repercutiram as falas e os posicionamentos de solidariedade de autoridades, mas sem, de fato, contextualizar os motivos dos ataques e sua relação com a violência política de gênero e a defesa do meio ambiente. Destaca-se que os textos relacionam o episódio como um “bate-boca”, com ressalvas para o uso da palavra “machismo”.

A Folha de S. Paulo seguiu na mesma linha. Foram identificadas seis colunas de opinião e oito notícias sobre o tema. A maioria dos textos encaixam-se no que chamamos de “jornalismo declaratório”, voltando-se mais para os benefícios econômicos, caso as propostas discutidas no Congresso sejam aprovadas, e menos para os impactos ambientais. Uma das matérias traz a informação de que o senador que hostilizou Marina assinou proposta que torna a matriz energética mais poluente e eleva a conta de luz dos brasileiros. Informa que ele assina propostas cujos conteúdos são inseridos sem relação com o tema principal, o que privilegia interesses de grupos parlamentares específicos – termo conhecido como “jabuti” no contexto político brasileiro. O texto evidencia o paradoxo entre a facilidade de assinar acordos de um lado, passando “boiadas” (termo popularizado pelo ex-ministro Salles), e os entraves relacionados à proteção do meio ambiente de outro. Quando o assunto é meio ambiente, enfrenta-se muita resistência dos atores que enxergam o tema apenas como entrave ao crescimento econômico; soma-se a isso a questão de gênero, que desafia a estrutura de poder estabelecida, dominada por homens. 

A BBC News produziu uma notícia que, além de contextualizar os motivos pelos quais a ministra foi ofendida, destacou que esse não foi o primeiro ataque do senador à Marina.  Aqui, há falas de outras ministras e da primeira-dama Janja da Silva, que se manifestaram em apoio à titular do ministério, salientando a gravidade do episódio de misoginia e “machismo” – palavra usada sem ressalvas no texto.

Por mais que algumas matérias tragam contextos relacionados aos impactos ambientais, pouco foi visto nos veículos hegemônicos a respeito das violências sofridas por Marina como algo a ser discutido, não apenas um episódio isolado. Uma exceção foi a reportagem da Agência Pública, publicada no dia seguinte, que apurou que ataques à Marina são reincidentes, mas não prioritários no Senado. A possibilidade de punição pela fala misógina proferida por Plínio Valério em março deste ano está parada na Comissão de Ética do Senado Federal, em exame técnico preliminar. O texto da Pública lembra que um pedido de abertura de processo disciplinar por quebra de decoro parlamentar foi feito logo após a fala, mas que não levou, até agora, a nenhuma punição ao senador. A matéria reforça a ideia de que a responsabilização por ações de combate a violência política de gênero seguem ineficientes, abrindo brechas para novos casos.

O Brasil de Fato, ao ouvir uma socioambientalista, ressaltou o padrão de perseguição que sofre quem defende a pauta ambiental, e que Marina Silva, uma mulher negra da Amazônia, devido à agenda que representa, é alvo de setores da extrema direita e da ala negacionista do Congresso.

A repercussão maior na produção de notícias ocorreu nos veículos mainstream, mas a maioria se limitou a reproduzir as falas dos parlamentares e a reação da ministra, pouco aprofundando as razões que a tornam alvo no contexto político de permissão para o avanço da agenda econômica neoliberal. Percebe-se que veículos especializados e independentes, ainda que tenham produzido menos notícias, trouxeram mais elementos sobre a relação da defesa ambiental e a posição de Marina como mulher negra da Amazônia, que reivindica outra política ambiental.

Além de expor a questão da violência política de gênero, é importante evidenciar a conexão da pauta ambiental com a desqualificação das mulheres em posição de liderança que defendem a preservação de seus territórios. Ativistas ambientais são perseguidos e assassinados, e, mesmo em espaços supostamente democráticos, defensores do bem comum sofrem violências rotineiramente. O fato da ministra ser mulher e amazônida traz aspectos que agudizam o quadro de intolerância dos setores mais conservadores da sociedade, que buscam manter tudo como está em prejuízo da maioria da população. 

*Jornalista formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e integrante do Observatório de Jornalismo Ambiental. E-mail: leticiampasuch@gmail.com.

** Professora do Departamento de Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, coordenadora do Observatório de Jornalismo Ambiental e do Laboratório de Comunicação Climática. E-mail: eloisa.loose@ufrgs.br

A invisibilidade da agricultura familiar nas coberturas das cheias

Foto: Pedro H. Tesch/Flickr

Jessica Thais Hemsing* e Cláudia Herte de Moraes**

Um dos papeis sociais do jornalismo é de oportunizar voz e vez. Em tempos de desastres, é necessário compromisso social para ouvir aqueles que são invisibilizados: pessoas da periferia, trabalhadores rurais, comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas, entre outros. Por isso é importante expor a realidade de quem vive à margem da atenção midiática, mas sofre mais constantemente com as mudanças climáticas, como é o caso dos agricultores familiares que lidam na terra e muitas vezes ficam sem a produção do próprio alimento em função de desastres socioambientais.

As jornadas de agricultores familiares são intensas. Geralmente, trabalham entre 12 e 16 horas por dia. No campo, não tem final de semana. Não tem feriado. Enquanto muitos na cidade celebram datas como o Natal e o Ano Novo, eles seguem trabalhando para garantir comida na mesa de milhões. Dar voz a essas pessoas por meio dos veículos de comunicação é reconhecer sua importância e romper com a lógica de um jornalismo hegemônico que, muitas vezes, prioriza apenas o agronegócio ou simplesmente não considera os impactos dos desastres para a agricultura familiar. Um exemplo publicado neste Observatório foi o caso das queimadas no Amazonas em 2022, em que não houve menção às perdas dos agricultores.

Da mesma forma, durante as enchentes históricas que atingiram o Rio Grande do Sul em 2024, o portal UOL pouco abordou a situação da agricultura familiar. Mesmo após o auge da crise, em agosto de 2024, uma das poucas matérias que tangenciam o assunto mencionava, na generalidade, a importância de políticas públicas que promovam a diversificação da produção agrícola (31/08/2024). A abordagem, ainda assim, foi de maneira superficial, com a mesma narrativa de aumento de produtividade e intrigando uma disputa com o agronegócio, ao invés de realçar a realidade dos pequenos agricultores e as formas diferenciadas de uso da terra no contexto da crise climática. A falta de reportagens em 2024 não se justifica, pois haviam dados disponíveis em órgãos como a Emater/RS-AScar, que divulgou ainda em junho de 2024 que mais de 206 mil propriedades rurais foram afetadas pelas enchentes no RS.

Em contraste, Brasil de Fato, veículo de comunicação popular, publicou várias matérias sobre o tema no mesmo período, denunciando as desigualdades no campo, oferecendo uma perspectiva popular e de luta de classes, e dando visibilidade à realidade e necessidade dos agricultores familiares no enfrentamento da calamidade. Entre os destaques estão reportagens como Chuvas no RS destroem lavouras de arroz e hortaliças do MST e provocam prejuízo de R$ 64 milhões (17/05/2024), que revela as deteriorações causadas pelas chuvas em inúmeros assentamentos da reforma agrária, e Enchente no Sul arrasa lavouras de arroz orgânico do MST; prejuízos podem chegar a 10 mil toneladas (09/05/2024), que expõe o impacto direto no que diz respeito à produção agroecológica do país.

Embora seja responsável por grande parte dos alimentos que chegam à nossa mesa, a agricultura familiar quase sempre é esquecida nas coberturas jornalísticas sobre tragédias climáticas. Ou, ao menos, é a última a ser lembrada. Os agricultores perderam tudo com a enchente: a plantação, o sustento, o chão e suas casas. Mas não perderam a esperança e buscam se reerguer, mesmo diante da invisibilidade imposta pelos veículos hegemônicos.

* Graduanda em Jornalismo na UFSM, integrante do PET Educom Clima (UFSM), bolsista do Fundo de Incentivo à Extensão (FIEX), E-mail: jessica.thais@acad.ufsm.br

** Jornalista, doutora em Comunicação e Informação, professora na UFSM. Tutora do PET Educom Clima (UFSM) e líder do Grupo Mão na Mídia (CNPq/UFSM). Integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS) e do Laboratório de Comunicação Climática. E-mail: claudia.moraes@ufsm.br

Desigualdades, crise climática e o papel do jornalismo ambiental

Imagem: Isabelle Rieger / Sul21

Michel Misse Filho*

Soa cada vez mais anacrônico falar em crise climática e degradação ambiental sem que sejam pontuados as origens e consequências desiguais destes processos. Injustiça ambiental e climática, racismo ambiental, desigualdade socioambiental — seja lá o termo utilizado —, todos se referem à privação econômica e ao risco ambiental desproporcional a que estão submetidas parcelas socioeconomicamente vulneráveis da população, em geral não brancos, no campo ou na cidade, nas favelas e periferias.

Por muito tempo a produção de conhecimento sobre o tema ambiental negligenciou em grande parte essas nuances sociais, da academia ao jornalismo, passando pela formulação de políticas públicas. Ainda é comum que, na grande mídia, a cobertura ambiental seja feita em torno de grandes eventos — como as COPs e outras conferências —, grandes líderes ou em torno de tragédias ambientais. O jornalismo ambiental, porém, requer ir além do noticiário factual.

Um exemplo positivo foi, ainda em 2024, o especial de reportagens da Folha de São Paulo sobre desigualdades agravadas pela crise climática. A matéria alerta para a diferença de até 9º C de calor no bairro de Paraisópolis em comparação ao vizinho elitizado Morumbi, em São Paulo. Apesar da diferença entre os telhados, o principal fator indicado para a diferença é a vegetação. A desigualdade de arborização, como se pode supor, não é restrito ao caso em questão: constitui um padrão das cidades brasileiras, que certamente será destrinchado ao final deste ano, quando saírem os novos dados do Censo Demográfico. É papel do jornalismo, em conjunto à pesquisa científica, expor estes territórios e assimetrias.

Mais recentemente, na última semana a Folha publicou uma excelente matéria sobre a Ilha de Maré, o bairro mais negro de Salvador, impactado pelas indústrias e crise climática, com reclamações de contaminação química por parte dos moradores e falta de pescado. A reportagem é relativamente longa, com uma série de entrevistas de moradores atestando suas histórias e a gravidade da situação — dando voz às comunidades, como preza o bom jornalismo. Essas pessoas são remanescentes de um quilombo, com 97% da população formada por negros numa comunidade considerada rural, que sobrevivem da pesca artesanal, mariscagem e turismo. Há 20 anos eles pedem um estudo abrangente que meça os níveis de metal no mar.

É importante que reportagens deste tipo não estejam restritas aos especiais de reportagens como o organizado pela Folha, mas sejam pauta constante dos noticiários. A exposição constante das desigualdades ambientais — rurais e urbanas — é o primeiro passo para a aplicação de políticas públicas em territórios já acostumados com o esquecimento.

*jornalista, doutorando em Sociologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ) e mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS) e do Laboratório de Estudos Sociais dos Resíduos (Residualab – UERJ). E-mail: michelmisse93@gmail.com.

Das cheias às ondas de calor: Rio Grande do Sul no epicentro dos eventos climáticos extremos

Imagem: Alex Rocha/PMPA

Por Clara Aguiar e Eloisa Beling Loose**

Após as enchentes que submergiram parte do Rio Grande do Sul em maio de 2024, agora o estado se encontra diante de mais um evento climático: ondas de calor extremo. Enquanto os efeitos das cheias ainda são sentidos, o aumento das temperaturas intensifica ainda mais os desafios enfrentados pela população gaúcha. 

Em 4 de fevereiro, o estado registrou a maior temperatura dos últimos 115 anos, conforme o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). No município de Quaraí, os termômetros marcaram 43,8 °C. No dia 10, Porto Alegre foi a cidade mais quente do Brasil, com 37,9°C. No dia seguinte, a capital gaúcha marcou 39,8°C, registrando um novo recorde, com índices de sensação térmica alcançando os 60 °C.  

Além do desconforto térmico, os impactos diversos das ondas de calor vêm predominando nas manchetes dos jornais locais e nacionais: a estiagem já atinge mais de 90 municípios, a Justiça determinou o adiamento do início do ano letivo e projetos de lei foram protocolados para abordar as condições insustentáveis de trabalho ao ar livre em dias de calor extremo

O Jornalismo desempenha um papel fundamental ao informar a população sobre os riscos das mudanças climáticas e ao cobrar medidas efetivas de governantes. Mais do que noticiar recordes de temperatura, é essencial discutir caminhos para enfrentá-los. 

Na abertura do Jornal do Almoço, que foi ao ar no dia 10, a jornalista e apresentadora Cristina Ranzolin levantou a seguinte questão: “Os cientistas garantem que o calor extremo deve se tornar cada vez mais frequente, mas será que nós estamos preparados? Não é necessário termos planos emergenciais para enfrentar essas temperaturas? Leis e medidas que alterem o horário de trabalho, que prevejam distribuição de protetor solar, enfim, que nos protejam e adaptem a nossa rotina a essa nova realidade?”. 

Para debater sobre o que as cidades precisam fazer para enfrentar esse clima extremo, o JA convidou um grupo de especialistas: o climatologista da UFRGS, Francisco Eliseu Aquino; o especialista em saúde e segurança do trabalho, Luiz Alfredo Scienza; o deputado e vice-presidente da Comissão de Saúde da Assembleia Legislativa, Airton Artus; e o vice-presidente da Famurs, Márcio Amaral.

O debate – que abordou questões como gestão pública, infraestrutura, plantio de árvores e legislações trabalhistas diante das alterações climáticas – se estendeu ao longo de todo o programa, intercalado por outras notícias. A iniciativa é positiva, pois insere o assunto em diferentes momentos do noticiário, inclusive estando presente no espaço de  comentaristas – Rodrigo Lopes critica a posição do Governo do Estado em relação à organização do início das aulas.

Porém, mais do que falar de medidas paliativas, para encarar o calor extremo, valeria recordar o que vem contribuindo para gerar esse problema. É importante trazer medidas que possam mitigar os efeitos de ondas de calor, porém a perspectiva do factual, que se centra nos efeitos imediatos, deve ser alargada pelo Jornalismo. 

Uma das soluções apresentadas no telejornal, a instalação de mais aparelhos de ar-condicionado, para permitir o conforto térmico diante de altas temperaturas, colabora para o incremento das mudanças climáticas. Estima-se que o uso desses aparelhos seja responsável por 10% do consumo global de energia e entre 4% e 8% das emissões globais de gases de efeito estufa, de acordo o National Renewable Energy Laboratory e o Observatório Regional de Energias Renováveis da Cepal.

Quando se fala da necessidade de alteração da legislação trabalhista, por exemplo, um dos especialistas aponta para a necessidade de reconhecer os riscos das mudanças climáticas e seus impactos na saúde dos trabalhadores. Sem a percepção de riscos, é difícil que haja preocupação em mudar algo ou de se pensar em formas de evitá-lo. A imprensa é um espaço de visibilidade desses riscos, sendo relevante tratar deles antes que eles se transformem em algo concreto — nesse caso, o calor extremo. O que tem nos deixado mais vulneráveis às mudanças do clima? Que os próximos eventos possam ser debatidos em sua complexidade antes de sentirmos na pele uma das manifestações da crise climática.

*Clara Aguiar é estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). E-mail: claraaguiar14@hotmail.com.

**Eloisa Beling Loose é jornalista e pesquisadora na área de Comunicação de Riscos e Desastres. Coordenadora do Laboratório de Comunicação Climática (CNPq/UFRGS). E-mail: eloisa.loose@ufrgs.br.

A cobertura que é mais do mesmo: 2025 começa com chuvas acima da média em diversas cidades brasileiras

Imagem: Paulo Pinto/Agência Brasil

Por Clara Aguiar* e Eloisa Beling Loose**

O início de 2025, em diversas regiões do Brasil, foi marcado por uma série de eventos climáticos, que vem causando transtornos significativos e mobilizando esforços de emergência quase simultaneamente. Os primeiros dias do ano mostram que seguimos no ritmo de ebulição de 2024, que superou, pela primeira vez, a temperatura global de 1,5°C, o limiar climático apontado pelos cientistas, o que significa mais intensidade e frequência de eventos extremos.

Diante desse cenário, cabe ao jornalismo denominar o acontecimento de forma a não naturalizar o desastre. No primeiro texto do ano, o Observatório de Jornalismo Ambiental (OJA) analisou, no período de 04 de dezembro a 25 de janeiro, a cobertura do G1, portal de notícias da Globo e líder de audiência no jornalismo digital no país, sobre as chuvas intensas, alagamentos e enchentes que vêm afetando os estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais, Bahia, Santa Catarina e São Paulo – janeiro nem encerrou, mas já são muitos os casos reportados no País.

No Rio de Janeiro, Chuva forte provoca alagamentos e bolsões d’água na capital e Região Metropolitana do RJ (04/12/2024). Em Maricá, na rodovia RJ-106, Chuva deixa motoristas ilhados e trânsito congestionado na RJ-106, em Maricá.

No Espírito Santo, Chuva intensa no ES deixa desalojados, desabrigados e interdita rodovia; saiba quais cidades mais atingidas (08/01/2025). Vídeos mostram enchentes que causaram destruição e tiraram moradores de casas no ES (09/01/2025).

Em Minas Gerais, Chuvas deixam 25 mortos e mais de 50 cidades em situação de emergência em Minas Gerais (14/01/2025). Quase 100 cidades mineiras decretam situação de emergência ou calamidade pública por causa de temporais; veja lista (19/01/2025). 

Na Bahia, Temporais deixam moradores ilhados e alagam ruas de cidades em diferentes regiões da BA (15/01/2025).

Em Santa Catarina, o cenário também foi preocupante. Chuvas provocam situação caótica com estragos e desabrigados no litoral de SC; cidades decretam emergência (16/01/2025). Balneário Camboriú recebe em um dia quase todo o volume de chuvas esperado para janeiro; VÍDEOS mostram situação caótica (16/01/2025). 

Já em São Paulo, no dia 24 de janeiro, ocorreu o terceiro maior volume de chuva já registrado desde o início das medições do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), em 1961, conforme aponta a matéria “FOTOS: São Paulo tem 3ª maior chuva da história, segundo Inmet” (25/01/2025). O artista plástico Rodolpho Tamanini Neto, de 73 anos, morreu afogado depois que uma enxurrada atingiu a sua casa, como relatado em “Corpo de artista plástico que morreu após enxurrada invadir sua residência é velado em SP” (25/01/2025). 

É percebido que nas notícias do G1 são atribuídas às chuvas a responsabilidade exclusiva pelos acontecimentos, personificando-as como agentes autônomos que “provocam”, “causam” ou “deixam” danos e vítimas. Essa abordagem, amplamente evidenciada nos títulos destacados, como “Chuva forte provoca alagamentos” e “Chuvas deixam 25 mortos”, contribui para a não responsabilização humana ou questionamento acerca das causas geradoras do problema. Embora a chuva seja o fenômeno imediato, desencadeador do processo, ela não é a única responsável pelos desastres relatados.

Os desastres não são apenas “naturais”, mas também resultados de uma série de fatores como a ocupação desordenada do solo, a falta de planejamento urbano, o desmatamento e a ausência de políticas públicas eficazes para a prevenção e mitigação de riscos – aspectos que criam situações de vulnerabilidade. Quando o jornalismo escolhe por eleger a chuva (ou outro fenômeno da natureza) como responsável por tragédias acaba por ignorar fatores derivados de escolhas humanas, contribuindo com a ideia de que desastres são inevitáveis, o que enfraquece a urgência em adotar medidas preventivas. 

“Ao personificar as forças da natureza e considerá-la um inimigo externo (“o rio invadiu”, “a chuva matou”), podemos desresponsabilizar a ação/inação humana”, afirma trecho do Manual para a Cobertura Jornalística dos Desastres Climáticos, desenvolvido pelo Grupo de Jornalismo Ambiental do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pelo Grupo Estudos de Jornalismo do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

A personificação das “forças da natureza” reforça uma narrativa que posiciona os desastres como algo “fora do nosso alcance”, resultado de uma suposta “força maior” contra a qual os seres humanos não teriam controle ou capacidade de resistência. Essa perspectiva ignora o papel ativo que as ações humanas desempenham na amplificação ou mitigação desses eventos. É preciso que o campo jornalístico desnaturalize os desastres, pois quando se atribui exclusivamente à natureza a origem dos problemas, perde-se a oportunidade de enxergar a conexão entre os fenômenos naturais e as escolhas políticas, econômicas e sociais que agravam seus impactos. O desastre só ocorre onde há processos de vulnerabilização em curso.

Há anos cientistas das Ciências Sociais e Humanas apontam a importância de se nomear de forma adequada os desastres, mas grande parte da comunidade jornalística segue reproduzindo o que é mais visível na eclosão do problema, desconsiderando questões crônicas que são os viabilizadores de desastres. Isso ainda é mais sério quando há nos títulos das notícias a reprodução de autoridades públicas que invocam os fenômenos naturais para justificar a sua inoperância. Quando deixaremos de cobrir os efeitos da crise climática, provocada pela ação humana, como algo desconectado do nosso modo de vida?

*Clara Aguiar é estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). E-mail: claraaguiar14@hotmail.com.

**Eloisa Beling Loose é jornalista e pesquisadora na área de Comunicação de Riscos e Desastres. Coordenadora do Laboratório de Comunicação Climática (CNPq/UFRGS). E-mail: eloisa.loose@ufrgs.br.

O Jornalismo entendeu a crise ecoclimática?

Imagem: Mauro Schaefer

Por Heverton Lacerda*

Ao longo deste ano de 2024, os pesquisadores do Observatório do Jornalismo Ambiental, ligado ao Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental (GPJA) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), produziram uma série de artigos críticos com foco na atuação da imprensa diante das questões climáticas. Foram 46 textos – contando com este, que finaliza o ano – com diversas abordagens e reflexões. A relação de títulos, com os respectivos links, está mais abaixo. É uma ótima sugestão de leitura de férias para quem ainda não leu e quer ter um panorama sobre como o jornalismo brasileiro tem se relacionado com a realidade ambiental e com seus públicos neste período.

Abrir um texto, já no título, com uma pergunta é uma opção que pode ser até interpretada como uma irresponsabilidade, ainda mais quando a resposta tende a não ser totalmente conclusiva. Nesse caso, é possível que alguém considere haver até uma certa prepotência do escritor, que carece de dados de uma pesquisa ampla, caso haja a pretensão de respondê-la. Já adianto aqui que não tenho essa intenção, mas que também não é uma pergunta retórica. Trata-se de uma inquietação que me parece importante compartilhar com leitores que talvez possam ajudar a elucidá-la ou a ampliar a reflexão sobre o tema. 

Além de uma questão de difícil conclusão, fica claro que tenciono com um possível neologismo. Entendo, particularmente, que a crise climática que estamos vivenciando tem ligação direta com o descaso ecológico a partir do qual a sociedade está indicando o rumo a seguir. O clima não está mudando só por pressão extraterrena – como, por exemplo, devido à intensa atividade do Sol – e pela propalada ciclicidade das mudanças climáticas. Existe, como já identificado pela ciência há algumas décadas, uma forte influência das atividades humanas. Essas atividades, a exemplo da mineração de carvão e extração de petróleo, causam impactos ambientais e estão no início de processos de geração de poluentes climáticos. Os problemas, que vão muito além disso, se somam e se retroalimentam em uma escalada ecocida de difícil recuperação.

Daí a ideia de que a crise não é só climática nem só ecológica, mas sim a soma dessas duas dimensões diretamente interligadas, sem desconsiderar ainda outras possíveis camadas que incidem sobre esse ponto. Sim, o tema é complexo e, por isso, exige abordagens à altura. O jornalismo é capaz de fazer isso, mas, para tanto, precisa fazer valer suas melhores características. Cabe ressaltar ainda que o jornalismo é feito por humanos, uma das espécies que integra a biodiversidade da Terra. A amplitude do olhar, a empatia, a ética, o desprendimento e os sentidos de precaução e prevenção precisam estar presentes, cooperando com a boa prática do fazer jornalístico. 

O percurso de pesquisas acadêmicas sobre Jornalismo Ambiental, com mais de 15 anos de dedicação ao tema no âmbito do GPJA, tem apontado caminhos significativos. Os pressupostos desse jornalismo engajado com as pautas de defesa da vida apontam para a relevância da contextualização correta, da visão sistêmica, da mudança de pensamento, da antecipação dos riscos – o princípio da precaução. Isso tudo buscando a desnaturalização da visão hegemônica sobre os fatos e a aproximação com os interesses da cidadania e da ecologia enquanto condição necessária à manutenção da vida no planeta.

Se 2023 foi o ano mais quente já registrado na história humana, 2024 está na fila pedindo passagem. Os dados de temperatura máxima e média deste ano ainda não estavam consolidados no momento da publicação deste texto, mas o saldo de eventos climáticos extremos, amplamente noticiados, já davam indícios de que a crise climática não pode mais ser negada e precisa ser enfrentada com urgência. 

O jornalismo é obrigado a noticiar catástrofes, contar mortes e contabilizar prejuízos, mas não deve se ater a isso. Não é mais possível reduzir manchetes e reportagens climáticas a meras notas de pé de página. A pauta ganhou espaço nas redações. Mas como isso está sendo feito e que impactos tem gerado na população? Encerro com isso, com mais uma pergunta para te propor buscar respostas na produção deste ano do nosso grupo. Insira seus comentários. Os links seguem abaixo. Boa leitura e um ótimo final de ano! Que 2025 seja bem melhor!

  1. Pessoas e cultura valorizadas na editoria de meio ambiente
  2. De Cop em Cop, onde estão os avanços?
  3. 2023 foi chamado de o ano dos extremos, o que falar de 2024?
  4. A crise climática na cobertura jornalística das catástrofes em Valência e Porto Alegre
  5. Sul21 e o jornalismo a serviço da pauta ambiental nascida no cotidiano
  6. Em um mundo mais seco, jornalismo deve ser terra fértil para compartilhamento de soluções
  7. Questões ambientais se diluem no debate público e na cobertura jornalística sobre as eleições municipais em Porto Alegre
  8. Observação do tema desastre climático nas eleições de Porto Alegre constata descompasso entre a campanha e a preocupação da população
  9. Lembrança do desastre climático que atingiu Porto Alegre foi para o ralo de onde saíram as águas fétidas que inundaram a cidade 
  10. Como Zero Hora pauta a questão climática no contexto eleitoral de POA
  11. Jornalismo e o “espírito da época” nas cheias de maio
  12. Há cortina de fumaça nas eleições municipais?
  13. Enchentes e seus desdobramentos na disputa pelos votos na eleição de Porto Alegre
  14. A questão climática no centro das eleições de Porto Alegre
  15. A ponte informacional e o jornalismo independente na resistência do povo Guarani-Kaiowá
  16. O LIXO – do luxo de ser manchete ao silenciamento do Jornalismo no pós-enchente
  17. Eleições no horizonte: pauta ambiental municipal e o papel do jornalismo
  18. Mais do que carvão: por um jornalismo que acredite noutras potencialidades da economia candiotense 
  19. Racismo ambiental: mídia independente traz debate silenciado no jornalismo corporativo
  20. Jornalismo de soluções ou mais do mesmo: o insuficiente discurso da reconstrução
  21. Podemos repetir os mesmos erros? A reconstrução do RS na pauta dos portais de notícia
  22. Pequenas notícias, grandes negócios
  23. A responsabilidade da imprensa hegemônica na catástrofe climática do RS
  24. A repercussão internacional do desastre climático do Rio Grande do Sul
  25. O papel dos veículos independentes na cobertura da catástrofe do Rio Grande do Sul
  26. Com apuração e checagem, jornalismo mostra ações antiambientais na base do desastre climático no RS
  27. Tragédia no RS: jornalismo deve abordar causas e conexões entre eventos climáticos extremos
  28. Acerca do cavalo no telhado: circulação e desinformação noticiosa
  29. A inserção dos refugiados e deslocados climáticos na cobertura da catástrofe no RS
  30. RS embaixo d’água: observações neste início da cobertura do desastre
  31. O desafio da cobertura ambiental para além das catástrofes
  32. Recorde de conflitos no campo: qual a repercussão para além do release?
  33. Por que um ingrediente do veneno utilizado na Guerra do Vietnã é aplicado na agricultura familiar brasileira?
  34. Quem ganha com a exploração do carvão?
  35. Livro e blog sistematizam pesquisas e práticas de Jornalismo Ambiental em Santa Catarina
  36. Água pra que quero se não te venero?
  37. Clima, condições de trabalho e desafios de jornalistas em coberturas
  38. Inteligência Artificial e o Princípio da Precaução
  39. Jornalismo ambiental não hegemônico prova seu impacto no debate público
  40. Dengue além dos números: por que a doença ainda mata no Brasil?
  41. Imprensa precisa desideologizar a cobertura do MST
  42. A importância do contexto na notícia climática
  43. Alerta para o jornalismo ambiental: minoria compreende jargões ambientais
  44. O jornalismo precisa falar no racismo ambiental
  45. A falta da cobertura sobre os efeitos colaterais do “progresso”

*Heverton Lacerda é jornalista, especialista em Ciências Humanas: Sociologia, História e Filosofia, mestrando em Comunicação Social, integrante do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental (UFRGS/CNPq) e presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN).

De Cop em Cop, onde estão os avanços?

Imagem: Agência Senado

Por Carine Massierer*

Sempre que se aproxima uma edição da Conferência do Clima (COP) das Nações Unidas (ONU) ampliam-se os espaços para o tema ambiental na imprensa no Brasil e exterior. Nesta semana e na próxima, acontece a 29ª COP em Baku, no Azerbaijão, portanto, podemos nos preparar para várias abordagens, muitas delas resumindo a questão ambiental a disputas políticas, questões econômicas e promessas, uma vez que o evento movimenta a economia turística e tem em jogo muitos interesses.

Em 2024 se completam nove anos do Acordo de Paris, mas o ritmo de emissões de gases do efeito estufa, discutido na ocasião, não diminuiu. Pelo contrário, segundo matéria da Agência Pública, COP do Clima: os riscos a cada meio grau do aquecimento global, no ano passado as emissões cresceram 1,3% e até dezembro poderemos chegar a uma temperatura média com aumento de 1,5%C, quebrando o recorde.

Isso mostra que precisamos agir hoje para não haver uma piora da crise climática, uma vez que 2024 foi um ano de extremos. As mudanças climáticas fizeram parte de nosso dia a dia em todos os cantos do planeta, com dilúvios e longas ondas de calor que ultrapassaram os 40ºC, dentre tantos outros desastres socioambientais, como alerta Claudia Herte de Moraes, em artigo do Observatório de Jornalismo Ambiental.

Observando a cobertura da COP29 e também avaliando como o tema da emergência climática impacta o debate público, percebe-se que a imprensa brasileira apenas repercute os compromissos assumidos pelo governo federal. Também se verifica que, mesmo que a população esteja mais preocupada com o tema ambiental e os desastres socioambientais, ela não demanda dos representantes que estes estejam comprometidos com as ações de fato, tanto para a diminuição das emissões, para a prevenção e adaptação aos eventos extremos. O jornalismo, portanto, não pode abrir mão da interpretação dos fatos, não deve apenas noticiar as COPs ano a ano sem contribuir, de fato, trazendo o aprofundamento dos conteúdos e complexificando essa pauta.

Imagem: Captura de tela das principais notícias do Google sobre a COP29, acesso em 13 de novembro de 2024.

A Agência Pública tem feito matérias desde antes da COP29 e está acompanhando o evento trazendo matérias mostrando se de fato há um comprometimento efetivo entre as nações para redução de emissões. O governo brasileiro manifestou a intensão para que isso ocorra e apresentou proposta e dia 11 de novembro representantes de países que estão na Conferência fizeram um acordo para aprovar o arcabouço de regras que serão usadas para criar um mercado de carbono global sob o Acordo de Paris, no qual se comprometeram com metas de redução de emissões de gases de efeito estufa.

Esperamos de Cop em Cop, de fato, depois de nove anos do Acordo de Paris, estejamos cientes que os efeitos globais das mudanças climáticas não estão distantes e podem no afetar a qualquer momento.

*Carine Massierer é jornalista, mestre em Comunicação e Informação pela UFRGS e integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental

2023 foi chamado de o ano dos extremos, o que falar de 2024?

Imagem: Isabelle Rieger/Sul21

Por Cláudia Herte de Moraes*

O fim de ano se aproxima e neste momento a imprensa já se organiza na tarefa de realizar reportagens especiais, retrospectivas e trazer perspectivas para o próximo período. Ao pensar sobre 2024, poderíamos dizer que foi um ano de extremos, mas 2023 já havia sido. Ano passado, o jornal O Globo titulou assim o seu especial: “2023, o ano em que o futuro de extremos e fúria das mudanças climáticas se tornou o presente: Furacões no deserto, dilúvios e longas ondas de calor de mais de 40ºC assolaram o planeta”. 

Observando a cobertura do desastre socioambiental do Rio Grande do Sul em 2024 e também como o tema da emergência climática impactou o debate público, político e eleitoral em Porto Alegre, apontou-se que, embora a população esteja mais preocupada com o tema, não demanda dos representantes que estes estejam comprometidos com as ações ambientais, tanto para a diminuição das emissões, quanto para a prevenção e adaptação aos eventos extremos. O jornalismo, portanto, não pode abrir mão da interpretação dos fatos, não deve apenas noticiar as tragédias, trazendo comoção quando a cidade estava debaixo d’água, mas necessita aprofundar e complexificar essa pauta. Como anotaram Isabelle Rieger e Ilza Girardi, o jornalismo, de maneira geral e com algumas exceções, deixou de apontar o desastre climático de forma mais aprofundada no cenário eleitoral, relacionando os projetos em disputa, e de como as escolhas e definições das políticas públicas e dos representantes eleitos são parte do problema ou da solução. O jornal Correio do Povo, em análise de Sérgio Pereira, mereceu reconhecimento ao fazer entrevistas aprofundadas com as candidaturas debatendo a questão das enchentes na capital.

Entre as principais notícias ambientais de 2024, tivemos também a intensificação de queimadas e a crise climática em diversos biomas brasileiros, particularmente na Amazônia, com uma seca histórica. Por exemplo, de janeiro a outubro, a WWF divulgou que os incêndios “cresceram 51% na Amazônia, 69,5% no Cerrado e 639% no Pantanal em comparação ao mesmo período em 2023”. As queimadas, em grande parte criminosas, aumentam os níveis de gases de efeito estufa e ameaçam a biodiversidade e a saúde pública, além de gerar impactos econômicos significativos. São muitos fatos graves neste cenário e o público pode ter dificuldade em acompanhar, daí porque Débora Gallas indica a necessidade de o jornalismo apontar e debater soluções para as crises, estabelecendo um ponto de análise para a ação.

2024 efetivamente não ficará esquecido, pois foi o ano mais quente já registrado no Hemisfério Norte, como noticiou o GZH. Estes dados saltam em vários noticiários mundo afora, assim como o espaço para as conferências internacionais. A revista Carta Capital avalia que “novembro é um mês decisivo para a agenda climática global: saímos da COP 16 de biodiversidade, em Cali, na Colômbia, e seguimos para a reunião do G20 no Rio de Janeiro, a COP 29 em Baku, Azerbaijão”. Ou seja, de ano a ano, o mundo assiste às Conferências ambientais que entregam anúncios e acordos, porém com pouco impacto, já que são dificilmente convertidos em ações efetivas. Um outro exemplo, sobre a definição de como se dará o financiamento para a transição energética, tema discutido há décadas sem acordo efetivo. Com isso, o lobby do petróleo se mantém forte como podemos observar no caso brasileiro, mesmo o país sendo a sede da COP 30 em 2025 na cidade de Belém (PA), há disputa interna no governo Lula sobre a exploração de petróleo na Foz do Amazonas no litoral do Amapá. Apesar de um recente parecer pelo indeferimento da licença ambiental, assinado por 26 técnicos, como noticiou o Clima Info, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) deu prosseguimento ao processo. Na reportagem da DW, ficam evidentes os possíveis prejuízos ambientais de tal empreendimento, e de como o caso da Foz do Amazonas pode abrir precedentes para facilitar outros licenciamentos questionáveis, assim trazendo um contexto importante ao leitor. 

De uma maneira geral, encontramos diariamente notícias ambientais e climáticas, em função de que os efeitos do aquecimento global e da superexploração da natureza exaurem os limites do planeta e já fazem parte do nosso cotidiano. O jornalismo em várias frentes está atuante. No entanto, é preciso refletir sobre as formas de abordagem destes temas, para que as pessoas consigam exercer a cidadania plena de direitos, que inclui o direito ao ambiente equilibrado e à participação nas definições das políticas ambientais. Se a era dos extremos climáticos já chegou, no jornalismo é preciso abandonar a superficialidade na abordagem ambiental e climática, para dar lugar ao olhar sistêmico, como um exercício diário para a compreensão do que está em jogo na pauta climática. Portanto, cada vez mais o jornalismo precisa manter o foco para uma cobertura complexa, que evidencie os interesses, conflitos, causas, consequências, desafios e soluções. 


*Jornalista, doutora em Comunicação e Informação, professora na UFSM. Integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). Líder do Grupo Mão na Mídia (CNPq/UFSM). E-mail: claudia.moraes@ufsm.br

A crise climática na cobertura jornalística das catástrofes em Valência e Porto Alegre

Imagem: Valência/Espanha, 30/10/2024 , uma enchente repentina em Valência, no leste da Espanha, deixou ao menos 92 pessoas mortas, segundo as autoridades locais. A força das águas arrastou carros, transformou ruas de vilarejos em rios e interrompeu linhas ferroviárias e rodovias. /RS/Fotos Públicas

Por Míriam Santini de Abreu*

“Devastadora”, “trágica”, “catastrófica” e “apocalíptica” são adjetivos que a imprensa espanhola está usando para se referir aos efeitos da já caracterizada “maior chuva do século”, que devastou principalmente a comunidade de Valência. A imprensa brasileira também tem se utilizado dos mesmos adjetivos na cobertura. Postagens nas redes sociais estão divulgando notícias vindas do país europeu e associando o fato com as enchentes de abril/maio no Rio Grande do Sul. É oportuno, portanto, analisar a cobertura jornalística espanhola para investigar como estão posicionados os debates sobre a crise climática e a relação com a violenta DANA (depressão isolada de alto nível), fenômeno provocador das violentas chuvas e que ocorre quando o ar frio desce sobre as águas quentes do Mar Mediterrâneo.

Às 18h45 desta quarta-feira (30), o jornal El Mundo o assunto na capa, enquanto no El País, cujo slogan é “El periódico global”, as notícias mais bem posicionadas tem relação com a eleição presidencial nos Estados Unidos. No El País, a matéria principal, intitulada “95 muertos y decenas de desaparecidos en la peor gota fría del siglo en España”, destaca o mesmo fato do El Mundo, o número já confirmado de mortos: “Al menos 95 muertos y decenas de desaparecidos por la DANA”.

O El Mundo traz como primeira retranca outro fato que certamente irá merecer farta cobertura nos próximos dias: a demora do acionamento do sistema de alerta de Valência. O jornal também dá destaque para os motivos pelos quais a DANA foi tão violenta. A notícia traz análises de meteorologistas e destaca-se o seguinte trecho: “En este episodio, ha influido también un factor muy vinculado al cambio climático: la temperatura del agua del mar, pues en la costa de Valencia estaba entre un grado y dos por encima de la media en esta época del año. ‘No es una anomalía tan significativa como la de otros momentos del año, pero sin duda ha contribuido a que haya habido más lluvia’, afirma.”

Captura de tela das capas do El País e El Mundo às 18h45 de 30/10/2024

O El País aborda o fato em uma retranca de dois parágrafos na qual afirma que o Mediterrâneo mais quente que o normal, para esta época do ano, é a chave para a virulência das chuvas.

Em nota, a Metsul Meteorologia analisou dados da chuva na comunidade espanhola de Valência, comparou-os aos do desastre no Rio Grande do Sul e concluiu que a precipitação em pontos de Valência superou o acumulado em 24 horas de qualquer cidade gaúcha no evento do fim de abril e o começo de maio.  Mas, segundo a nota, “se considerado o período prolongado de instabilidade que atingiu o Rio Grande do Sul os volumes foram parecidos ou o dobro do que choveu em um só dia na região mais castigada da Espanha

Os dois veículos trazem reportagens descritivas sobre os impactos da DANA em diferentes localidades, medidas imediatas das autoridades públicas, serviços disponíveis aos atingidos, previsão meteorológica para as próximas horas e postagens de redes sociais feitas por moradores. Do ponto de vista da crítica da cobertura jornalística, seriam de grande valia estudos mais aprofundados para comparar o trabalho desenvolvido pelos jornais e jornalistas espanhóis com o dos congêneres do Rio Grande do Sul, a partir das premissas do jornalismo ambiental.

* Jornalista, doutora em Jornalismo, mestre em Geografia e especialista em Educação e Meio Ambiente