Desigualdades, crise climática e o papel do jornalismo ambiental

Imagem: Isabelle Rieger / Sul21

Michel Misse Filho*

Soa cada vez mais anacrônico falar em crise climática e degradação ambiental sem que sejam pontuados as origens e consequências desiguais destes processos. Injustiça ambiental e climática, racismo ambiental, desigualdade socioambiental — seja lá o termo utilizado —, todos se referem à privação econômica e ao risco ambiental desproporcional a que estão submetidas parcelas socioeconomicamente vulneráveis da população, em geral não brancos, no campo ou na cidade, nas favelas e periferias.

Por muito tempo a produção de conhecimento sobre o tema ambiental negligenciou em grande parte essas nuances sociais, da academia ao jornalismo, passando pela formulação de políticas públicas. Ainda é comum que, na grande mídia, a cobertura ambiental seja feita em torno de grandes eventos — como as COPs e outras conferências —, grandes líderes ou em torno de tragédias ambientais. O jornalismo ambiental, porém, requer ir além do noticiário factual.

Um exemplo positivo foi, ainda em 2024, o especial de reportagens da Folha de São Paulo sobre desigualdades agravadas pela crise climática. A matéria alerta para a diferença de até 9º C de calor no bairro de Paraisópolis em comparação ao vizinho elitizado Morumbi, em São Paulo. Apesar da diferença entre os telhados, o principal fator indicado para a diferença é a vegetação. A desigualdade de arborização, como se pode supor, não é restrito ao caso em questão: constitui um padrão das cidades brasileiras, que certamente será destrinchado ao final deste ano, quando saírem os novos dados do Censo Demográfico. É papel do jornalismo, em conjunto à pesquisa científica, expor estes territórios e assimetrias.

Mais recentemente, na última semana a Folha publicou uma excelente matéria sobre a Ilha de Maré, o bairro mais negro de Salvador, impactado pelas indústrias e crise climática, com reclamações de contaminação química por parte dos moradores e falta de pescado. A reportagem é relativamente longa, com uma série de entrevistas de moradores atestando suas histórias e a gravidade da situação — dando voz às comunidades, como preza o bom jornalismo. Essas pessoas são remanescentes de um quilombo, com 97% da população formada por negros numa comunidade considerada rural, que sobrevivem da pesca artesanal, mariscagem e turismo. Há 20 anos eles pedem um estudo abrangente que meça os níveis de metal no mar.

É importante que reportagens deste tipo não estejam restritas aos especiais de reportagens como o organizado pela Folha, mas sejam pauta constante dos noticiários. A exposição constante das desigualdades ambientais — rurais e urbanas — é o primeiro passo para a aplicação de políticas públicas em territórios já acostumados com o esquecimento.

*jornalista, doutorando em Sociologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ) e mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS) e do Laboratório de Estudos Sociais dos Resíduos (Residualab – UERJ). E-mail: michelmisse93@gmail.com.

A repercussão internacional do desastre climático do Rio Grande do Sul

Imagem: Isabelle Rieger/Sul21

Por Michel Misse Filho*

O Rio Grande do Sul sofreu o maior desastre ambiental de sua história, e um dos maiores nacionais, num evento climático sem precedentes em território brasileiro. A cobertura da grande imprensa nacional foi intensa — ainda que incompleta — e veículos independentes tiveram importância de trazer à tona elementos políticos ofuscados do noticiário tradicional, como abordado na última coluna deste observatório. Quanto à cobertura internacional hegemônica, torna-se evidente o lugar secundário de crises climáticas quando ocorridas em países do sul global.

Não é como se o desastre tivesse sido pelas principais mídias ocidentais, mas a ocorrência de um evento de tal magnitude num país do norte global levaria a coberturas de seus semelhantes numa ordem de grandeza próxima, por exemplo, à destruição de New Orleans pelo furacão Katrina. Não foi o que se viu no caso gaúcho: há a publicação de matérias noticiando o desastre em seus primeiros dias, mas um esvaziamento do tema ao longo das semanas seguintes de maio e da intensificação do evento.

Começamos por uma pequena matéria da CNN, que comenta brevemente a influência do aquecimento global, logo antes de, surpreendentemente, citar apenas uma ajuda de Elon Musk frente à tragédia. A rede de notícias britânica BBC também publicou uma matéria bastante factual sobre o evento, ainda no início da tragédia, que também cita as mudanças climáticas. Já o New York Times publicou três matérias sobre o evento desde o seu início. A primeira é uma matéria curta, noticiando o início dos acontecimentos. Já a segunda (Imagens de uma cidade brasileira debaixo d’água) é uma boa reportagem, longa, contando a experiência de moradores atingidos e uma entrevista com Mercedes Bustamante, importante pesquisadora brasileira com experiência no Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), apresentando algumas das causas climáticas do evento e a severidade da situação. Após esta matéria, publicada ainda no início do desastre, há uma lacuna de semanas sem noticiar o caso: o vácuo de notícias é interrompido por uma matéria que trata dos milhares de animais domésticos sem lar — e, desde então, mais nada se noticiou sobre o assunto. Dentre os principais veículos hegemônicos, quem fez uma matéria em tom de “balanço geral” do desastre, ainda que pequena e incompleta, foi a revista The Economist, enfatizando como as mudanças climáticas estão deixando eventos extremos mais frequentes na região  gaúcha. Nos outros veículos tradicionais ocidentais, pouco se noticiou para além dos padrões verificados nas matérias citadas, com a quase totalidade das notícias ainda no início do desastre.

A análise da repercussão internacional ocidental de um evento gravíssimo como o ocorrido mostra um holofote para um país do sul global menor do que o esperado, ainda que as mudanças climáticas sejam, supostamente, pauta importante destes jornais. O ofuscamento de desastres nos países em desenvolvimento acaba por espelhar, ainda, a ausente ajuda dos países desenvolvidos aos efeitos da crise climática  — o presidente Lula já havia cobrado as nações ricas neste sentido, em 2023, após enchentes na mesma região do Rio Grande do Sul. Concluímos que as injustiças climáticas são materiais e simbólicas: promovem perdas materiais e humanas proporcionalmente maiores para as populações mais vulneráveis, percorrendo os territórios em escala intraurbana, doméstica e internacional; mas tais desigualdades também atravessam os mecanismos simbólicos, nas redes de comunicação internacional, evidenciando territórios “mais importantes” do que outros.

*Jornalista, doutorando em Sociologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ) e mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS) e do Laboratório de Estudos Sociais dos Resíduos (Residualab – UERJ). E-mail: michelmisse93@gmail.com.


Procura-se a faceta “ambiental” dos problemas urbanos no jornalismo

Imagem: Pixabay

Por Michel Misse Filho*

Problemas ambientais urbanos são antigos e, em sua faceta moderna, estão presentes ao menos desde as primeiras revoluções industriais — ainda que não recebessem a alcunha “ambiental” no significado de hoje. Eles fazem parte, intrinsecamente, do imaginário da emergência das grandes cidades modernas europeias: fumaças das indústrias, rios poluídos, a falta de saneamento e as ruas entulhadas de lixo.

A eclosão de movimentos ambientalistas a partir da década de 1960, num primeiro momento, ainda parecia vir da terra “natural” — a questão dos pesticidas, por exemplo — e de uma ideia unificada do planeta, sob o medo da guerra nuclear. A razão talvez seja as próprias origens de um pensamento ambientalista: algo “romântico” ainda no século XIX, de valorização do natural em oposição ao urbano; e algo também “científico”, focado na conservação de florestas e proteção de parques naturais. De toda forma, apesar dessas origens, o fato é que os movimentos que se seguiram ao ambientalismo dos anos 1960 incluíram, nas décadas seguintes, as questões urbanas e a justiça social no seio do movimento. O ambientalismo migrava de um campo puramente “natural” e “científico” para abarcar também a arena política das grandes cidades.

A pauta ambiental urbana permeia, há décadas, o ambientalismo, as conferências internacionais e o próprio jornalismo. No entanto, ainda hoje é comum que as pessoas façam uma associação direta entre “temas ambientais” e “temas rurais”, como se distantes da cidade. Uma pequena análise da editoria de Meio Ambiente do portal G1 mostra que, das últimas 30 notícias (ao longo de todo o mês de outubro) nenhuma trouxe uma pauta ambiental urbana. A página é tomada por algumas notícias da maior importância: incêndios no pantanal, seca na Amazônia, garimpo ilegal, marco temporal, emissão de gás metano pela agropecuária etc. Outras são notícias mais soft, dificilmente enquadráveis como “jornalismo ambiental”, e sim como “notícias sobre (ou no) meio ambiente”: o prêmio de fotografia pela foto de um tigre; o resgate de uma loba-guará e a caça de um tatu-galinha pelo caseiro de uma fazenda.

A situação muda um pouco quando analisamos a Folha de SP. Lá a gente “lembra” que cidades também são afetadas, como na invasão de fumaça de incêndios florestais sobre a maior cidade boliviana; e na descoberta, por pescadores, de uma garrafa PET de 25 anos atrás em plena Baía de Guanabara. Obviamente, situações extremas como as inundações em cidades no Sul do país também costumam entrar na conta de notícias — mas persiste a escassez de matérias não impulsionadas por tragédias. A realidade urge que o jornalismo dito “ambiental” cruze, com mais frequência, as vielas e ladeiras das grandes cidades brasileiras, mostrando a face ambiental e cotidiana de nossos históricos — e desiguais — problemas urbanos.

*Jornalista, doutorando em Sociologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ) e mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS) e do Laboratório de Estudos Sociais dos Resíduos (Residualab – UERJ). E-mail: michelmisse93@gmail.com.