Podemos repetir os mesmos erros? A reconstrução do RS na pauta dos portais de notícia

Centro Histórico de Porto Alegre 13 de maio de 2024 / Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Por Cláudia Herte de Moraes* e Luana Novaes Scatigna**

Seguimos acompanhando a situação do Rio Grande do Sul, que sofre de forma dramática as consequências de vários eventos climáticos extremos nos últimos meses, que atingiram mais de 2 milhões de pessoas no estado. O maior destaque foi dado a partir da inundação da capital Porto Alegre, durante o mês de maio de 2024. Entendemos que a tragédia gaúcha é um fato propulsor de várias abordagens e temas no jornalismo. Por esse motivo, a ponto de completarmos 60 dias das chuvas intensas, nossa atenção se volta para a chamada fase da reconstrução. Diante do desafio de que outros eventos extremos devem ocorrer no futuro, os investimentos de agora devem ser focados na construção de resiliências, como apontaram diferentes especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato ainda em maio. A partir do mês de junho, a maior parte das reportagens pontua a necessidade de recolocar a vida no RS em algum cenário de “normalidade”. 

Esta fase envolve inúmeras tarefas, especialmente advindas da intervenção dos poderes públicos, como pacotes de ajuda financeira e respostas governamentais. Diante disso, nos perguntamos de que forma os portais de notícias têm falado sobre esse processo? Para nossa análise crítica, selecionamos reportagens jornalísticas publicadas em portais brasileiros durante o mês de junho, excluindo-se artigos de opinião e publicações de portais de governos. Com a expressão “reconstrução da tragédia do RS” colocada na pesquisa avançada, filtradas pelo mês e por notícias mais relevantes do Google, foram analisadas quinze matérias de nove diferentes portais de notícias: Folha de São Paulo, Correio Braziliense, Terra Brasil, GZH, Correio do Povo, G1, O Globo, Sul 21 e CNN.

As enchentes recentes evidenciaram falhas no planejamento urbano do passado, que contribuíram para a vulnerabilidade do estado a eventos climáticos extremos. Os jornalistas precisam destacar os projetos sobre ocupação territorial e os fatos negligenciados no passado, para que haja uma  mudança de paradigma na reconstrução do estado. Também é necessário que se trate de forma mais ampla os princípios de sustentabilidade e resiliência. Isso inclui a implementação de medidas de gestão de riscos, com sistema de alertas à população, a integração de soluções de infraestrutura verde e a promoção de práticas socioeconômicas a partir dos limites ambientais.

Pautas como o auxílio anunciado pelo governo federal na recuperação das áreas afetadas e a visita do presidente Lula foram recorrentes no período analisado. Em meio a essas discussões, questões ambientais foram pouco citadas. Com a leitura das matérias, ficou evidente que a grande maioria abordou predominantemente questões políticas e econômicas relacionadas à reconstrução, e apenas três citaram informações socioambientais. 

As matérias encontradas com a temática ambiental abordaram propostas e preocupações pertinentes. Essas notícias destacaram um alerta vermelho para a reconstrução do estado, tendo em vista que algumas obras colocam em risco os meios de subsistência e a biodiversidade (Sul 21),  incluindo a necessidade de incorporar medidas de resiliência climática (Correio do Povo). Também o tema da  conservação ambiental e a importância de incluir ambientalistas no Conselho do Plano de Reconstrução do RS para sugerir uma série de ações relacionadas ao monitoramento, análise de risco e alerta, bem como medidas de adaptação e mitigação e resiliência climáticas (Sul 21).

O trabalho do jornalismo na cobertura da tragédia gaúcha, sob a perspectiva deste Observatório, tem várias fases e faces. Como já abordamos, é valiosa a tarefa da comunicação, em meio a tantas perdas e inseguranças, trazer elementos sobre as questões relacionadas às causas e conexões da catástrofe, bem como a preocupação com os desabrigados e sua relação com os riscos e mudanças climáticas. O quanto ainda a imprensa, em termos mundiais, dá menor importância a eventos do Sul Global, espelhando o impasse econômico e político da chamada governança global. Na nossa aldeia local, há a percepção que falta um aprofundamento em relação à apuração de responsabilidades por parte da imprensa hegemônica. Também ressaltamos o papel do jornalismo independente, que focaliza os direitos sufocados de grande parte da população e que são também invisibilizados na mídia tradicional. Ao mesmo tempo, visualizamos o esforço no enfrentamento do contexto de intensa desinformação, com mais apuração e verificação de fatos

Nesta fase de reconstrução, o jornalismo pode refletir melhor sobre diferentes projetos de desenvolvimento que estão sendo colocados ao público Os veículos podem desempenhar um papel essencial para uma mudança de paradigma, promovendo ações preventivas, como a necessária regeneração ambiental pós-desastre, que inclui a nossa própria relação com a natureza. No entanto, neste breve levantamento, percebemos que essa pauta de fundo não é tão tratada como deveria. 

Aprimorar a educação ambiental é essencial para qualificar o debate público sobre a reconstrução, pois este deveria estar baseado em efetiva participação social. É preciso ouvir gestores, cientistas, comunidades e os ecossistemas visando a incorporação da dimensão ambiental na cobertura jornalística, para cumprir com a responsabilidade de informar e educar o público sobre os desafios socioambientais. Portanto, o jornalismo deve apostar neste diálogo construtivo sobre soluções alternativas e sustentáveis para nosso estado, o que pode nos dar alguma esperança de que isso não se repita no futuro. 

 * Jornalista, doutora em Comunicação e Informação, professora na UFSM, Integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). Líder do Grupo Mão na Mídia (CNPq/UFSM). E-mail: claudia.moraes@ufsm.br

**Estudante de Jornalismo na UFSM, voluntária de iniciação científica. E-mail: luana.novaes@acad.ufsm.br.

Ciclone extratropical repete a pergunta: onde está a prevenção?

Roca Sales depois da chuva / Imagem: Guilherme Hamm/Secom

Por Cláudia Herte de Moraes* e Taís Busanello**

A frequência de grandes ciclones tropicais aumentou nas últimas quatro décadas, segundo o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) (2021). Estudos sobre eventos extremos concluíram que temos alta confiança de que “a mudança do clima causada pelo homem aumenta a precipitação intensa associada a ciclones tropicais”. Neste início de setembro, um ciclone extratropical foi a principal causa de inundações, chuvas intensas, granizo e vendavais que afetaram 98 municípios gaúchos, causando 47 mortes confirmadas em 12 de setembro (ainda há desaparecidos), cerca de 5 mil desabrigados e 20 mil desalojados. Considerada a maior tragédia natural em 40 anos, a destruição e a calamidade saltam aos olhos. Assim como a falta de prevenção.

No jornalismo gaúcho e nacional, vivemos o impacto da super notícia, em que há a proliferação de matérias sobre um fato, destacando especialmente o sofrimento humano e as perdas e danos relacionados. O valor-notícia desta tragédia coletiva exigiu uma ampla cobertura midiática para atender o interesse público. Contudo, exigiria também a apuração de informações em mais camadas para a mobilização do necessário debate público sobre os meios possíveis de tornar as cidades resilientes aos efeitos das mudanças climáticas.

Tendo isso em conta, ao analisar a cobertura da revista Veja sobre as cheias de 2010 no Sul e Sudeste, pesquisadoras afirmam que “a tarefa do jornalismo seria observar e atuar de forma ativa na crítica à realidade”, abordando desastres de grande magnitude com políticas recentes sobre a situação da habilitação das populações vulneráveis. (MORAES, GIRARDI, 2011, p.11).

Desta forma, o destaque deste comentário semanal está no papel do jornalista ambiental frente aos acontecimentos dramáticos no que concerne a explanação das problemáticas e questões ao poder público, considerando o dever jornalístico, principalmente em cobertura de eventos extremos, de ser “política, social e culturalmente engajado” (BUENO, 2007, p. 36).

Trazemos aqui o exemplo do jornalista André Trigueiro (Globo News), com 30 anos de experiência na cobertura de temas ambientais, incluindo os eventos climáticos extremos e os consequentes desastres enfrentados pela sociedade, crescentes em quantidade e potência destrutiva nas duas últimas décadas. É um dos raros profissionais preocupados com a cultura da prevenção, definitivamente esquecida por nossos governantes. No vídeo que viralizou após a reação do governador Eduardo Leite, de acusar o jornalista de ter falta de empatia, Trigueiro apenas exercia a função autorizada pela sociedade aos jornalistas: a de perguntar, inclusive as questões que não vão agradar o poder constituído. Porque é um dever ético do jornalismo checar as informações junto aos órgãos e fontes do poder público, a fim de que esclarecimentos sejam prestados, ainda mais importante considerando-se a perspectiva de prevenção e de redução de danos.

Os alertas sobre as previsões meteorológicas que subsidiam as ações de prevenção foram dadas, inclusive desmentindo outra fala infeliz do governador gaúcho. Tanto que, se houve alguma falta de prevenção governamental diante dos alertas de chuvas extremas no acontecimento do ciclone deste início de mês, o Ministério Público está apurando o papel dos órgãos públicos na fase anterior ao desastre.

A tragédia motiva a reflexão também sobre como os cidadãos devem atuar quanto aos riscos. Com estreia nesta semana, um novo programa do jornal Brasil de Fato RS vai discutir diretamente o tema: Mudanças climáticas e eventos extremos, estamos preparados?. Também é preciso reivindicar das autoridades públicas uma gestão de riscos, ações pré-desastres para além do socorro após o caos se instalar. Enfim, uma visão de médio e longo prazos. O artigo publicado no Brasil de Fato RS traz importante discussão: o que falta para a declaração de emergência climática no estado? Neste sentido, recomendamos acompanhar a audiência pública sobre mudança climática no RS, dia 18 de setembro, proposta pelo deputado estadual Matheus Gomes (PSol).

O jornalismo questiona, mobiliza, esclarece. Aos jornalistas, cabe o incentivo para cobrir os temas ambientais e dos riscos considerando o princípio da precaução, que converge numa perspectiva de prevenção. Por isso, o papel do jornalismo é fiscalizar o cumprimento das ações estabelecidas nos planos de adaptação e de mitigação às mudanças climáticas dos estados, dos municípios e do país como um todo. E mais: a sociedade carece da circulação de informações completas sobre as medidas para conter o aumento da temperatura global muito além da descarbonização dos setores econômico-produtivos maiores responsáveis pela emissão dos gases de efeito estufa. Dessa maneira, é preciso relacionar a cobertura dos desastres aos temas da mitigação e da adaptação como ações preventivas aos efeitos das mudanças climáticas. São necessárias respostas e soluções de e para toda a sociedade. 

 * Jornalista, doutora em Comunicação e Informação, professora na UFSM, Integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). E-mail: claudia.moraes@ufsm.br

** Estudante de Jornalismo na UFSM, bolsista de Iniciação Científica.  E-mail: tais.busanello@acad.ufsm.br

Referências

BUENO, Wilson da Costa. Jornalismo Ambiental: explorando além do conceito. Desenvolvimento e Meio Ambiente, n. 15, p. 33-44, jan./jun. 2007. Editora UFPR.

MORAES, Cláudia Herte de; GIRARDI, Ilza Maria Tourinho. As Cheias de 2010 na Revista Veja: a Narração Jornalística Diante do “Inesperado”. Revista Ação Midiática – Estudos em Comunicação, Sociedade e Cultura Universidade Federal do Paraná Programa de Pós Graduação em Comunicação Vol 1. Nº 2. Ano 2011. Disponível em: < https://revistas.ufpr.br/acaomidiatica/rt/metadata/26422/17636 > Acesso em: 12 set. 2023